Cabe reclamação para assegurar autoridade de decisão proferida em recurso repetitivo?
9 de setembro de 2024, 7h04
Uma das grandes alterações do sistema processual civil introduzido pelo CPC, em 2015, foi o regime de precedentes qualificados. A fim de assegurar uniformidade de tratamento para casos idênticos (artigo 926 do CPC), proporcionando mais igualdade e segurança jurídica, o CPC estabeleceu que os juízes e tribunais observarão uma série de decisões, enunciados e orientações, dentre as quais os “acórdãos (…) em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos” (artigo 927, IV, CPC).
Nos termos do artigo 928 do CPC, as decisões proferidas em recursos repetitivos constituem espécie do gênero “casos repetitivos”, ao lado das decisões proferidas em incidente de resolução de demandas repetitivas. Tratam-se, portanto, de duas espécies (IRDR e IRR) de um mesmo gênero (casos repetitivos).
De modo a constranger autoritativamente à observância desses acórdãos, impondo-a quase coercitivamente (precedente “vinculante em sentido forte”), o CPC estabeleceu, originalmente, o cabimento de reclamação para “garantir a observância de enunciado de (…) precedente proferido em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência” (artigo 988, IV, CPC, redação original). Ou seja, ao que tudo indica, o sistema de precedentes original assegurava o cabimento da reclamação tanto no caso de recursos repetitivos como no de incidente de resolução de demandas repetitivas.
No entanto, ponderando entre a isonomia e a estabilidade da prestação jurisdicional, o Código estabeleceu, quando promulgado, que seria “inadmissível a reclamação proposta após o trânsito em julgado da decisão” (artigo 988, § 5º, CPC, redação original).
Toda essa formulação do sistema de precedentes qualificados teve grande apoio dos tribunais superiores (especialmente do STJ e do STF), os quais vislumbravam nele alternativas para desafogar seus acervos e prestar jurisdição mais uniforme. Os tribunais superiores tinham intenção, portanto, de fazer uso intenso desse sistema, o que acabou se confirmando, no caso do STJ, com mais de 1.200 recursos especiais repetitivos afetados em menos de dez anos da inauguração do sistema.
Efeitos colaterais
No entanto, um dos possíveis efeitos colaterais da proliferação de julgamentos repetitivos era o cabimento de reclamações. Trocar recursos especiais e agravos de instrumento por reclamações poderia frustrar um dos objetivos do sistema.
Assim, em vista dessa possibilidade (e, supostamente, atendendo às solicitações do STJ e do STF), o legislador alterou os mecanismos antes mesmo do início da vigência do Código. Promulgada ainda durante a sua vacatio, a Lei nº 13.256/2016 modificou o artigo 988 em dois pontos.
Remédios legislativos esquizofrênicos
Primeiro, onde constava o cabimento de reclamação para garantir a autoridade de julgamentos em “casos repetitivos” (lembre-se: gênero das espécies IRR e IRDR), passou a constar o cabimento de reclamação para “garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas” (redação atual do artigo 988, IV). Ou seja, o gênero foi trocado por uma das espécies. A implicação lógica nessa mudança seria, em princípio, a exclusão da outra das espécies — o IRR.
A segunda mudança, contudo, é que revela a “esquizofrenia” anunciada no título deste artigo. Na redação original, o CPC previa, digamos, um termo final para o cabimento da reclamação: o trânsito em julgado. No entanto, o risco da proliferação de reclamações estava também na falta de um termo inicial: se a reclamação fosse cabível em qualquer fase do processo, então até mesmo uma decisão liminar poderia suscitar, desde logo, uma nova ação diretamente nos tribunais superiores.[1]
A cautela contra esse risco foi estabelecer o cabimento da reclamação somente depois de esgotadas as instâncias ordinárias. Assim, a reclamação teria lugar no espaço entre a publicação do acórdão em segundo grau e o trânsito em julgado. Contudo, a redação que literalmente foi dada ao inciso II do § 5º do artigo 988 causa a confusão aqui abordada. Veja-se: “[é inadmissível a reclamação] II — proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias”.
Afora a menção ao cabimento de reclamação para assegurar a autoridade de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral (figura que não consta no caput do artigo 988, o qual estabelece as hipóteses de cabimento), o CPC afirmou o cabimento da reclamação em caso de decisão que contrariar acórdão proferido em julgamento de recurso repetitivo.
Se fosse um filme, diríamos que o CPC tem um defeito de continuidade.
Ora, a mesma lei que excluiu o cabimento da reclamação no caso de IRR, estabeleceu a partir de quando a reclamação em caso de IRR é cabível. Com uma mão mata, com a outra ressuscita. A mim isso soa esquizofrênico.
Com a palavra, o STJ e o TST
Mas, afinal, cabe reclamação em caso de afronta a acórdão proferido sob o rito de recursos repetitivos?
Segundo o STJ, a resposta é um rotundo “não”. Desde que sua Corte Especial, em 2020, afirmou o descabimento,[2] o entendimento vem sendo sustentado nos demais órgãos julgadores.[3]
E atravessando a avenida da praça dos tribunais superiores, como isso está no TST?
O Tribunal Superior do Trabalho não seguiu o mesmo embalo do STJ no que tange à afetação de temas repetitivos: contra os mais de 1.200 temas do seu irmão da Justiça Comum, o irmão da especializada tem menos de 30. Nada obstante, só em 2024 foram cinco afetações (quase o dobro da média anual desde que o CPC foi promulgado, sinalizando um incremento no uso da sistemática de julgamentos repetitivos).
O trabalho no tema, portanto, ainda tem espaço para se desenvolver.
O Regimento Interno do TST afirma, expressamente, o cabimento da reclamação para “garantir a observância de acórdão proferido em (…) julgamento de recursos repetitivos” (artigo 210, III). Em princípio, dir-se-ia que o TST diverge do seu irmão-vizinho.
Jurisprudência do TST
Entretanto, embora nunca tenha afirmado, com todas as letras, o descabimento de reclamação para assegurar decisões proferidas em recursos de revista repetitivos, a jurisprudência do TST sobre o assunto faz pairar alguma dúvida a respeito da sua interpretação dessa controvérsia.
Filtrando pelas expressões “cabimento” e “repetitivo”, encontram-se apenas 24 acórdãos proferidos pelo Pleno e pela SbDI1 (órgãos com competência para julgar recursos de revista repetitivos — e, logo, para julgar as reclamações que procuram assegurar sua autoridade). Nem todos tratam efetivamente da reclamação em recurso repetitivo.
Dentre os que tratam, logo os três primeiros afirmam expressamente o cabimento.[4]
No entanto, entre os anos de 2021 e 2022, foram proferidas decisões cuja fundamentação põe em dúvida o entendimento do TST.
Esgotamento de instâncias ordinárias
Conforme uma dessas decisões, “a reclamação não é sucedâneo de recurso, sendo incabível quando apresentada em fase processual em que existe decisão sujeita a recurso específico”.[5]
Em outro caso, afirmou-se o descabimento da reclamação ao fundamento de que ela (litteris:) “não deve ser utilizada como sucedâneo de recurso, de modo a devolver a matéria diretamente a esta Corte sem o devido esgotamento das instâncias ordinárias. No caso, o Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região negou seguimento ao recurso de revista interposto pela reclamante, parcialmente admitido, o que ensejou a interposição do agravo de instrumento autuado como ARR-2592-06.2016.5.11.0008. Há, portanto, inadequação da via eleita, porquanto a reclamante pretende utilizar a reclamação para substituir o recurso de revista. Precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal”.[6]
Em uma terceira reclamação, ajuizada para denunciar a afronta a IRR por acórdão proferido em julgamento de recurso ordinário pelo TRT, afirmou-se que, “ao tempo da propositura da reclamação, ainda se encontrava em curso o prazo para interposição dos recursos cabíveis — situação que perdura até o momento, visto que pendem de julgamento, no processo principal, embargos de declaração em face do acórdão vergastado”.[7]
Como se vê, o TST afirmou que a reclamação não cabe como “sucedâneo recursal”. No primeiro caso, cabia recurso de revista. No segundo, o recurso de revista havia sido interposto e pendia de julgamento. No terceiro, pendia julgamento de embargos declaratórios ao acórdão já publicado. Em nenhum dos casos a reclamação foi considerada cabível.
Sucedâneo recursal
Ora, se é necessário esgotar as instâncias ordinárias para abrir-se a via da reclamação (artigo 988, § 5º, II, CPC), mas não se pode deixar transitar em julgado o acórdão acerca do qual se reputa a contrariedade a IRR (artigo 988, § 5º, I, do CPC), então o momento oportuno para ajuizamento da reclamação é após a publicação do acórdão e antes do trânsito em julgado. Mas esse é exatamente o prazo para a interposição do recurso de revista. E se a reclamação não pode funcionar como “sucedâneo recursal” (e, logo, enquanto for cabível recurso de revista, não cabe reclamação — como afirmou o TST nas decisões acima), então, quando caberá?[8]
Já em 2023 encontram-se reclamações ajuizadas após a prolação do acórdão e antes do trânsito em julgado para assegurar a autoridade de acórdãos proferidos em recursos repetitivos que acabaram conhecidas pelo TST.[9] Em 2024 há decisões que deixam de admitir a reclamação, no caso de recursos repetitivos, em razão da ausência do esgotamento da instância ordinária.[10]
Ao que parece, o TST, discordando do STJ, admite reclamação para aferir possível contrariedade a acórdão em recurso repetitivo. No entanto, ainda pairam dúvidas sobre o momento oportuno.
Os casos ainda são poucos. É preciso movimentar o sistema para viabilizar o esclarecimento das controvérsias e a consolidação dos entendimentos. Como dizem os antigos, “é no andar da carroça que as melancias se acomodam”.
[1] Aqui é importante ressaltar que, no caso de decisões que afrontam súmulas vinculantes e decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade (ADI, ADC, ADO, ADPF), a reclamação é cabível em qualquer fase processual, sendo desnecessário aguardar o esgotamento das instâncias ordinárias – pelo menos segundo a estrita regulamentação legal. Art. 988, III, IV e § 5º, II, do CPC.
[2] Rcl 36.476/SP, Relatora Min. Nancy Andrighi, Corte Especial (STJ), publicado em 06/03/2020.
[3] Por exemplo: AgInt na Rcl n. 41.103/SP, relator Ministro Teodoro Silva Santos, Primeira Seção, julgado em 20/8/2024, DJe de 28/8/2024; AgInt na Rcl n. 46.785/PR, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, julgado em 30/4/2024, DJe de 6/5/2024.
[4] “Encontra-se previsto no artigo 988, IV, do CPC, com a interpretação a partir do seu § 5º, o cabimento da Reclamação, quando não observada tese firmada em acórdão que julga incidente de recursos de revista repetitivos, sem qualquer restrição quando se tratar de decisão proferida por membro ou órgão integrante do mesmo tribunal responsável pela tese de aplicação obrigatória. Trata-se de interpretação extraída do novo regramento introduzido pelo CPC, que implementou incontáveis mudanças e fez com que o instituto deixasse de ter sede e normatização exclusivas na Constituição Federal” (Rcl-5751-50.2017.5.00.0000 e Rcl-7601-42.2017.5.00.0000, ambas julgadas pela Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Claudio Mascarenhas Brandao, DEJT 09/11/2018). No ano seguinte, pretendia-se, “com respaldo no art. 988, IV, do CPC, a cassação dos acórdãos proferidos pela Segunda Câmara da Primeira Turma do TRT da 15ª Região, em recurso ordinário e embargos de declaração, na reclamação trabalhista nº 0012094-91.2014.5.15.0051, sob a alegação de inobservância do acórdão proferido pela SBDI-1 Plena do TST, nos autos do processo nº IRR-000849-83.2013.5.03.0138.” (Rcl-1000922-72.2018.5.00.0000, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, DEJT 14/06/2019).
[5] Rcl-1001130-51.2021.5.00.0000, Tribunal Pleno, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 02/12/2021.
[6] Rcl-1000949-55.2018.5.00.0000, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Claudio Mascarenhas Brandao, DEJT 12/09/2022.
[7] Rcl-1000437-67.2021.5.00.0000, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Lelio Bentes Correa, DEJT 11/02/2022
[8] Quando muito poder-se-ia admitir que a oposição de embargos declaratórios pode levar à complementação da decisão proferida na instância ordinária, empurrando o prazo da reclamação cinco dias para frente. Mas após o prazo dos embargos, já com recurso de revista interposto, o que fazer para ajuizar a reclamação antes do trânsito em julgado?
[9] Por exemplo: Rcl-1000731-85.2022.5.00.0000, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Relatora Ministra Delaide Alves Miranda Arantes, DEJT 10/11/2023; Rcl-1000684-14.2022.5.00.0000, Tribunal Pleno, Relator Ministro Luiz Jose Dezena da Silva, DEJT 01/12/2023.
[10] Por exemplo: Rcl-1000919-44.2023.5.00.0000, Tribunal Pleno, Relator Ministro Sergio Pinto Martins, DEJT 09/04/2024.
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