SEGUNDA LEITURA

O importante papel dos rábulas na consolidação da Justiça no Brasil

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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8 de setembro de 2024, 8h00

Rábulas, na linguagem popular, provisionados, na linguagem oficial, eram profissionais sem graduação em Direito que exerciam a advocacia, reconhecidos de alguma forma pelo poder público. Hoje, com o Brasil liderando a nível mundial o número de graduados em Direito, é difícil imaginar que no passado houvesse falta de profissionais habilitados ao exercício das profissões jurídicas.

Vladimir Passos de Freitas

Vladimir Passos de Freitas

Para que isso possa ser compreendido, é preciso lembrar que Portugal, ao contrário da Espanha, não promoveu a criação de universidades em nosso território. Para que se tenha uma ideia da diferença, a Universidade Nacional Maior de São Marcos, no Peru, a mais antiga das Américas, foi fundada em 12 de maio de 1551.

No Brasil, foi somente após a Proclamação da Independência, em 1822, que vieram a ser criados, no ano de 1827, os seus dois primeiros estabelecimentos na área do ensino jurídico, as faculdades de Direito de São Paulo (SP) e de Olinda (PE). Consequentemente, eram grandes as dificuldades para encontrar-se bacharéis em Direito, não apenas para o exercício da advocacia, mas também do Ministério Público e da magistratura.

Essa carência levou à permissão de que os juízes municipais pudessem ser pessoas de destaque na comunidade, mas sem a exigência do curso superior, requisito apenas para os juízes de Direito. Quanto aos juízes de paz, com maior razão, não tinham formação jurídica. A isso, somavam-se as dificuldades da vida nas pequenas comarcas. Sem os recursos agora existentes e vencimentos pouco sedutores, poucos eram os interessados em ocupar cargos públicos.

Vejamos um exemplo do exercício de função pública por um profissional não graduado em Direito. No início da República, a Justiça Federal tinha suplentes de juiz federal substituto e eles, frequentemente, não eram bacharéis em Direito. Um exemplo disso pode ser encontrado em um pedido de Justificação formulado no ano de 1914, em Rio Negro (PR). A audiência realizou-se na sala da Justiça Estadual, que se localizava na Casa da Câmara Municipal. As testemunhas foram ouvidas pelo suplente, constando na ata que se tratava do cidadão Salvador Saboia, o que leva tranquilamente à conclusão de que não era bacharel, pois, se o fosse, seria tratado de doutor [1].

Mas foi mesmo no âmbito da advocacia que o exercício através de pessoas com prática, os provisionados, vulgarmente conhecidos como rábulas, foi mais comum. A Lei de 22 de setembro de 1828 permitia aos que não fossem graduados em Direito advogar nos locais em que não houvesse bacharéis formados, para tanto submetendo-se a um exame perante os presidentes dos Tribunais das Relações (nome que se dava aos atuais Tribunais de Justiça).

Esta permissão aos cuidados dos tribunais perdurou até 1930, quando foi editado o Decreto 19.408, em 18 de novembro, criando a Ordem dos Advogados do Brasil. A partir de então, cessou a competência dos tribunais. Esse decreto regulamentava a Corte de Apelação do Distrito Federal e, isolado da matéria restante, o artigo 17 criou a Ordem dos Advogados do Brasil. Referido dispositivo foi regulamentado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros e, aprovado pelo governo, foi editado o Decreto 20.784, de 1931 [2], que disciplinou a permissão para advogar no artigo 12 e seguintes. Ressalte-se que o parágrafo único do referido artigo permitia a inscrição de provisionados.

Rábulas notáveis

O Brasil contou com rábulas que alcançaram grande notoriedade, seja por seus méritos pessoais ou pela esperteza que demonstravam na condução de suas defesas, principalmente perante o Tribunal do Júri. Entre eles cita-se Luiz Gama, natural de Salvador, filho de uma africana criada em casa de família rica, graciosa e inteligente. Viveu ela com um homem que pagou por sua alforria e com ele teve o filho Luiz, que, desde logo, destacou-se pela inteligência. Após exercer algumas atividades profissionais, passou a exercer a advocacia na sua cidade e depois em São Paulo. Atendendo os escravos nas suas diversas necessidades, tornou-se conhecido pela inteligência e combatividade. Nas palavras de Pedro Paulo Filho, “empenhava-se de corpo e alma, fazia-se matar pelo bem… Pobre, muito pobre, deixava para os outros tudo que vinha das mãos de algum cliente mais abastado” [3].

Mas pouco se sabe dos rábulas Brasil afora. Dificilmente nos Tribunais de Justiça serão encontradas as provisões autorizando o exercício da advocacia. Preservar a memória nunca foi mérito do poder público no Brasil. No Paraná, tal qual em outros estados, existe este tipo de dificuldade. Não há registros dos provisionados que exerceram a profissão nos primeiros anos da província ou durante a República, conforme pesquisas feitas na corte e, da mesma forma, após 1930 na Ordem dos Advogados do Brasil, seccional paranaense. No site do Ministério Público do Estado do Paraná há boas informações sobre estes práticos, porém não há dados específicos sobre os que atuaram no estado [4].

Uma das dificuldades é que as famílias não apreciam revelar a condição de um ascendente que tenha sido rábula. Consideram tal condição depreciativa, preferem ignorá-la, fazendo crer que o antepassado era advogado.

Uma forma de desvendar casos de atuação de rábulas é a consulta a processos antigos arquivados. Evidentemente, é uma pesquisa difícil, porque exige que sejam localizados e examinados dezenas de processos antigos, manuscritos em letra nem sempre compreensível, a fim de verificar-se em quais a defesa dos interesses da parte tenha sido feita por um provisionado.

Outra forma, quiçá mais fácil, é a consulta a antigos livros de notas nos Tabelionatos. Nessa linha, constatou-se na página 23 do Livro 22 do Tabelionato de Notas e Protesto de Guaratuba que, em 16 de agosto de 1922, Anna Márcia de Souza e sua filha constituíram bastante procurador Antonio de Souza Miranda, professor público, para a defesa de seus interesses em liquidação de herança dos bens do finado C. Carlos da Silva, podendo, para tanto, advogar a seu favor, assinar recibos perante o Juízo de Direito da Comarca de Paranaguá, assumindo a obrigação de pagar-lhe um mil réis (1:000$000).

Ao contrário do que se imagina, os rábulas não estavam presentes apenas no tempo da Colônia ou do Império, mas, sim, até há algumas décadas. Recordo-me de quando exercendo as funções de promotor de Justiça em Jacupiranga (SP), participei de audiência criminal com um rábula estabelecido no município de Pariquera-Açu (SP). Era um homem forte e combativo, exerceu muito bem o seu papel.

Outro exemplo, este contudo do Ministério Público. No estado da Paraíba, comarca de Cuité, no período de janeiro de 1937 até o ano de 1961, o farmacêutico e dentista Diomedes Lucas de Carvalho atuou como promotor de Justiça. As únicas restrições eram participar de julgamento no Tribunal do Júri e recorrer assinando sem o promotor para o Tribunal de Justiça, estas privativas de agente do Ministério Público. Promovia também execuções fiscais e se manifestava em inventários defendendo os interesses da Fazenda Pública. Segundo relatos orais, exercia tais funções muito bem.

Finalizando, é possível afirmar com absoluta certeza que foram os rábulas que no passado promoveram a defesa de milhares de pessoas nas questões jurídicas existentes, principalmente para as pessoas de condições econômicas mais desfavoráveis.


[1] BRASIL. Memória online da Justiça Federal do Paraná. Processo nº 1155. Justificação presidida por Suplente. Disponível em: https://memoriaonline.jfpr.jus.br/uploads/r/justica-federal-do-1o-grau-no-parana/ 8/e/4/8e48d223f62a93ed6dda96b367218efd37a8eb6ca23798e2b51ffb0784fb0e46/0791_Compressed.pdf. Acesso em: 27 jul. 2024.

[2] Planalto. Decreto 20.784, de 13 de dezembro de 1931. Disponível em: https://planalto.gov.br/Ccivil_03/decreto/1930-1949/D20784.htm. Acesso em: 6 set. 2024.

[3] PAULO FILHO, Pedro. Famosos rábulas no Direito brasileiro. Leme: J. H. Mizuno, 2007, p. 108.

[4] MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ. Os nossos rábulas. Disponível em: https://site.mppr.mp.br/memorial/Pagina/Os-nossos-rabulas. Acesso em: 16 mai. 2024.

Autores

  • é professor de Direito Ambiental e Sustentabilidade; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador federal aposentado, ex-presidente do TRF-4. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e do Ibrajus ( Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário).

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