Paixão em dose dupla

Advogado divide a vida entre o Ministério da Justiça e as rodas de samba do Rio de Janeiro

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8 de setembro de 2024, 8h53

No aniversário de 37 anos do sambista e advogado Tomaz Miranda, em 13 de julho, ele começou a música às 19h30 em ponto, como prometera — algo raro no Rio de Janeiro. Cantando e tocando cavaquinho, Miranda puxou “São José de Madureira”, imortalizada na voz de Beth Carvalho.

Tomaz Miranda (segundo da direita pra esquerda) toca e canta em seu aniversário no Baródromo, no Rio de Janeiro

O local que escolheu para a celebração foi o Baródromo, que fica no Maracanã, Zona Norte do Rio. É um bar temático de Carnaval. Camisetas dos desfiles das escolas de samba, de diversos anos, estão penduradas no teto. Nas paredes e pilastras, há fantasias, adereços e tamborins. A águia símbolo da Portela encara os músicos, do outro lado do ambiente. Acima deles, um letreiro de neon escrito “Eu ❤️ Carnaval”. Uma pintura do Grande Arco da Praça da Apoteose, na Marquês de Sapucaí, completa o cenário.

Ali, Tomaz Miranda é uma pessoa completamente diferente daquela que havia concedido entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico uma semana antes. Naquela ocasião, trajava camisa e calça jeans, usava óculos e falava de forma contida, cautelosa, reservada. Já no bar, Miranda veste uma camisa polo da Mangueira, com listras horizontais verdes e rosas, lentes de contato e demonstra empolgação, energia.

Atualmente, a vida de Miranda é dividida em duas: a de sambista, no Rio, e a de integrante do Ministério da Justiça e Segurança Pública do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em Brasília. Na pasta, ele é diretor do Departamento de Projetos e de Políticas de Direitos Coletivos e Difusos da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon). Até o meio do ano, também acumulou a função de encarregado de dados (data protection officer).

Carreira dupla

Tomaz Miranda cresceu em um lar musical. Seu pai, o médico Ary Miranda, é um dos fundadores do tradicional bloco de Carnaval Simpatia é Quase Amor. Sua mãe, Silvia Disitzer, cantou em coral e fez aulas de piano. Na sua casa, sempre havia um disco rodando ou alguém tocando um instrumento.

A sala do apartamento de Ary Miranda em Ipanema, onde Tomaz concedeu entrevista à ConJur, exala música. Há um piano, um violão e uma partitura aberta no suporte. As estantes são repletas de LPs e CDs, principalmente de samba e MPB. A mesa de centro tem mais discos, um songbook de Noel Rosa. O porta-copos é a caixinha de um álbum de Nei Lopes.

“Desde que Tomaz era criança, eu o levava a rodas de samba, o incentivava a aprender a tocar instrumentos. Com o tempo, foi se juntando ao Simpatia é Quase Amor. No começo, era mestre-sala. Hoje, é cantor principal. Tocar com o meu filho é algo incrível”, diz Ary Miranda.

Com cerca de dez anos, Tomaz Miranda começou a ter aulas de piano e, posteriormente, de cavaquinho. Ele tomou gosto pelo instrumento e logo estava tocando em bares com o pai.

Quando tinha 13 anos, em uma noite de sábado, Miranda disse ao pai que estava indo para o Bar Semente, na Lapa, com um amigo. Fechado em 2017, o estabelecimento era um templo da música brasileira e deu projeção a artistas como Casuarina, Yamandu Costa e Zé Paulo Becker. Ary Miranda não gostou da ideia de dois pré-adolescentes se aventurarem pela noite carioca e foi com eles.

Teresa Cristina, outra prata da casa, era a atração do Semente naquele sábado. Ela já conhecia Tomaz Miranda das rodas de samba do Bip Bip, botequim em Copacabana igualmente notório pela boa música. Teresa o convocou ao palco e lhe deu o microfone.

Com o apoio do Grupo Semente, ele cantou e tocou “O meu nome já caiu no esquecimento”, da Velha Guarda da Portela. A canção é um lamento composto pelo sambista Paulo da Portela após deixar a escola de samba que ajudara a fundar. “O meu nome já caiu no esquecimento/O meu nome não interessa a mais ninguém/E o tempo foi passando/A velhice vem chegando/Já me olham com desdém/Ai quanta saudade do passado/Que se vai lá no além.”

“Foi a primeira vez que eu cantei em público. Imagine eu, novinho, ainda trocando de voz, cantando um samba que fala da velhice? Quando lancei o meu disco (Os sambas que me dizem), incluí um agradecimento à Teresa Cristina e ao Pedro Miranda (do Grupo Semente) pela minha primeira canja”, afirma Miranda.

Dois anos depois, Miranda ganhou seu primeiro cachê como músico, tocando na finada churrascaria Porcão de Ipanema. Na ocasião, apresentou-se com Tiago Prata, atualmente gerente de Gestão de Gabinete na Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur).

No fim do ensino médio, Miranda estava participando de diversas rodas de samba e shows. O caminho natural foi ingressar na faculdade de Música da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

O ritmo de apresentações não diminuiu, e ele passou a também dar aulas, tanto particulares quanto em escolas de música. Estava tocando quase todos os dias. E o esforço gerou uma tendinite no antebraço esquerdo, e ele teve de ficar de molho.

Tomaz Miranda ficou deprimido por ter de ficar sem tocar. E chegou à conclusão de que não queria depender da música para pagar as contas. Já é difícil se sustentar apenas de samba. Para conseguir isso, é preciso ralar muito. E o que aconteceria caso se contundisse quando fosse mais velho, tivesse uma família e demorasse mais para se recuperar?

O advogado, então, trancou o curso de Música. Devido às diversas possibilidades de carreira, escolheu cursar Direito e ingressou na graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Nova carreira

Uma vez na faculdade de Direito, e recuperado da lesão, Tomaz Miranda voltou a tocar em rodas de samba e concluiu a graduação em Música. Em 2015, lançou o disco Os sambas que me dizem, com participações de Moacyr Luz, Beth Carvalho, Lucio Sanfilippo e Toninho Geraes. O álbum tem canções autorais e covers.

Miranda estagiou no escritório-modelo da Uerj e na Defensoria Pública do Rio de Janeiro, no Núcleo de Sistema Penitenciário. Foi uma experiência transformadora, que o fez passar a defender a descriminalização das drogas após ver que grande parte dos presos (negros, na maioria) respondia por tráfico e associação ao tráfico.

Quando se formou, porém, Miranda estava em dúvida sobre que caminho seguir — se tentava ingressar em escritório, prestava concurso ou fazia pós-graduação. Na época, ele começou a namorar a advogada franco-brasileira Marie-Isabelle Delleur, com quem viria a se casar. Ela morava em Paris, e ele foi para lá fazer mestrado em Direito Digital na Sorbonne, em 2018.

Foram cinco anos na França — brevemente interrompidos por um período no Rio durante a epidemia de Covid-19 —, com passagens pelos escritórios de proteção de dados e privacidade das multinacionais L’Oréal e Sodexo.

Em 2022, Marie-Isabelle e Miranda começaram a programar a volta ao Brasil para o meio do ano seguinte. A eleição de Lula para presidente, contudo, acelerou o plano. Em dezembro, Wadih Damous foi anunciado como secretário Nacional do Consumidor. O advogado conhecia Damous desde quando ele presidia a seccional fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil (ele comandou a entidade de 2007 a 2013) e havia trabalhado nas suas campanhas para deputado federal pelo PT do Rio em 2014 e 2018. Ao saber que Damous faria parte do novo governo Lula, Miranda ligou para ele e o informou de que iria voltar ao Brasil. Eles conversaram mais algumas vezes e, em 29 de dezembro, o futuro secretário convidou Miranda para ser diretor da Senacon.

O problema é que o advogado teria de começar a trabalhar no cargo em duas semanas. Por explicar que isso seria impossível, já que seria preciso mudar de país, ele ganhou um mês. No meio da tarde de 3 de fevereiro de 2023, uma sexta-feira, Miranda entregou seu crachá na Sodexo, em Paris, foi para casa, pegou as malas e rumou para o Aeroporto Charles de Gaulle. Às 5h de sábado, chegou ao Aeroporto do Galeão, no Rio. Passou o fim de semana na cidade, no apartamento do seu pai. No início da manhã de segunda (6/2), foi para Brasília. Aterrissou na capital federal, deixou a bagagem no hotel, tomou posse e começou a trabalhar.

Brasília x Rio

No dia a dia do Ministério da Justiça, Tomaz Miranda atua na governança das bases de dados e nas decisões quanto à alocação de recursos do Fundo de Direitos Difusos (FDD). Essa segunda função do advogado exige diálogo com parlamentares e representantes de outros ramos da administração pública e da sociedade civil.

Tomaz Miranda (direita) com Flávio Dino, ex-ministro da Justiça e Segurança Pública e atual ministro do STF

A experiência na política tem sido gratificante. No entanto, Miranda afasta a possibilidade de se candidatar a cargos eletivos — algo que já lhe propuseram. Quando deixar o governo, quer continuar envolvido de alguma forma com a política, mas ele deixa aberta a possibilidade de trabalhar em algum escritório de advocacia ou empresa, na área de tecnologia e proteção de dados.

O advogado tem viajado pelo Brasil para participar de cerimônias de entrega dos bens e obras comprados ou reformados com verbas do FDD. Nisso, tem conhecido mais a fundo as complexidades do país. Um projeto que considera importante foi a restauração do Mercado Modelo de Salvador. E ele avalia que a modernização da sede do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), no Centro do Rio, tornará o prédio um importante aparelho cultural.

Miranda fica em Brasília de segunda a sexta. Nos fins de semana, costuma ir para o Rio para encontrar Marie-Isabelle ou, mais raramente, para São Paulo, onde ela trabalha em uma banca internacional.

Provocado pela ConJur a comparar Brasília ao Rio, o advogado diz que a sua vida na capital gira bem mais em torno do trabalho. Em todos os ambientes, mesmo os de lazer, a conversa acaba caindo em temas relacionados à política e ao governo, que são os principais assuntos da cidade. Já na velha capital, com todos os seus problemas, Miranda “não precisa se esforçar para ser feliz”. Até por ser a sua terra, não faltam opções de atividades — praia, bares e rodas de samba, claro. E ele continua tocando em várias delas. Inclusive, pretende lançar seu segundo álbum em algum momento.

Samba da Mangueira

Por volta das 22h do aniversário de Tomaz Miranda, o samba está “comendo solto” no Baródromo. O recinto encheu e o público dança e canta animadamente músicas como “Meu lugar”, de Arlindo Cruz, “Tendência” e “Coisa de pele”, ambas de Jorge Aragão. Após o refrão desta última — “Arte popular do nosso chão/É o povo quem produz o show e assina a direção” —, no auge da energia caótica dos sambas do Rio, Miranda responde à pergunta da ConJur: “Aí, Sérgio (Rodas, repórter da ConJur), que saudade de Brasília…”.

A última música da apresentação era a mais esperada. Vencedora do “Estandarte de Ouro” de “Melhor Samba Enredo” de 2019, “História pra ninar gente grande”, da Mangueira, foi composta por Tomaz Miranda ao lado de Deivid Domênico, Silvio Moreira Filho, Márcio Bola, Ronie de Oliveira, Danilo Firmino, Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo.

A canção homenageia pessoas que lutaram contra o autoritarismo no Brasil, como Maria Felipa, capoeirista que participou da luta pela independência na Bahia; Luísa Mahin, que participou de rebeliões contra a escravidão no estado; Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada em 2018; e os malês, negros de origem islâmica que organizaram o maior levante de escravizados da história do Brasil. Durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2023), a música virou um símbolo da resistência nas rodas de samba do Rio.

Na parte final da canção, o advogado deixa o público cantar o refrão: “Brasil, chegou a vez/ De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês”. Ele encerra a apresentação e é bastante aplaudido. Já é quase meia-noite, e Miranda passou a maior parte de seu aniversário tocando e cantando, e não conversando com familiares e amigos. Não tem problema: “É o que mais gosto de fazer.”

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