Opinião

Papel (falho) do Estado na fiscalização da execução das penas

Autor

  • Emiliane Gauer

    é especialista no Tribunal do Júri graduada em Direito pela Unisinos sócia-fundadora do Gauer Advogadas Associadas coautora de livros publicados pela OAB e pela Livraria Tirant lo Blanch Brasil e membro da diretoria da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim-RS)

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7 de setembro de 2024, 17h24

No auge dos seus 34 anos, a aplicação da Lei dos Crimes Hediondos (nº 8.072/1990) segue sendo alterada em razão dos novos entendimentos do Superior Tribunal de Justiça. Uma delas foi efetivada em abril pela Súmula 668 do STJ, que entendeu que a lei não era clara quanto à hediondez do crime de porte ou de posse de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado.

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É natural que, com o passar do tempo, artigos e incisos sejam alterados após debates aprofundados e com a constatação da necessidade de adaptações frente a contextos não previstos pelo legislador. Porém, há uma falha na aplicação das mudanças relacionadas ao Direito Criminal. Por exemplo: de quem é o papel de reexaminar a execução da pena às pessoas encarceradas?

Responsável por aplicar e executar as sanções criminais, o Estado não assume um poder ilimitado para combater o crime.

Como expõe Alexis Couto de Brito, “a restrição da liberdade é uma medida excepcional, e a mais violenta intromissão do Estado na vida do cidadão”. Essa relação jurídica Estado/preso deve ser minuciosamente regulada.”

Por essa razão, a Lei de Execuções Penais tenta estabelecer os direitos e deveres mútuos de preso e Estado (ver Brito, Alexis Couto de. Execução Penal. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2023. E-book. ISBN 9786553624573, p. 164).

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De acordo com o inciso III do artigo 11 da Lei de Execuções Penais, é dever do Estado disponibilizar a assistência jurídica (via Defensoria Pública, para quem não tem condições financeiras de arcar com os custos de contratação de um profissional da advocacia). Todavia, causa estranheza o Estado na prática delegar aos advogados e aos defensores a obrigação de fiscalizar possíveis modificações em leis que se aplicam às penas dos reducandos, já que o papel de fiscal da lei (custos legis) é destinado ao Ministério Público. Inclusive, o artigo 61 da LEP define os órgãos que compõem a execução penal, a saber:

I – o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária;
II – o Juízo da Execução;
III – o Ministério Público;
IV – o Conselho Penitenciário;
V – os Departamentos Penitenciários;
VI – o Patronato;
VII – o Conselho da Comunidade.
VIII – a Defensoria Pública. (Incluído pela Lei nº 12.313, de 2010).

Ainda sobre o órgão ministerial, não é demais frisar que na LEP constata-se capítulo dedicado apenas às atribuições do Ministério Público, estando expressamente a função de fiscalizar a regularidade formal das guias de recolhimento e de internamento (artigo 68, inciso I, capítulo IV).

Além disso, o artigo 69 da mesma lei define o Conselho Penitenciário como o órgão responsável por consultar e fiscalizar as execuções da pena, emitindo pareceres acerca de indultos, comutações de pena, entre outras atribuições.

Para que servem as mudanças?

A Constituição, em sua redação do artigo 5º inciso LXXV dispõe que: “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”, bem como o artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, expressamente refere que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.

Não se aplicariam, de igual forma, tais normas constitucional e infraconstitucional aos agentes dos órgãos da execução penal que não realizam a manutenção da execução da pena dos condenados? Não estaria o Ministério Público atuando apenas como parte processual e não como custos legis?

Para que servem as mudanças se elas não são aplicadas ao público que tem direito a se beneficiar delas? De que adianta fazer alterações na legislação ou até mesmo nos entendimentos jurisprudenciais, se não há mecanismos que garantam a efetiva aplicação delas?

Aqui, por óbvio, não defendo que cessem as mudanças na legislação, muito pelo contrário; elas devem ocorrer para, idealmente, tornar as leis mais justas para que exista um tratamento adequado à população carcerária. Entretanto, devo destacar que as atualizações ocorridas nas leis especiais — como é o caso da nº 8.072 — não terminam em si e impactam diretamente a vida de quem está privado de liberdade, considerando que alteram o tempo que a pessoa ficará em regime fechado.

Quando a Súmula 668 do STJ retirou a hediondez do crime de porte de arma de uso permitido com identificação adulterada, mudou de forma automática a porcentagem da pena em regime fechado para todos os condenados com este sendo crime hediondo.

Assim, o apenado que antes deveria cumprir 40% de sua pena em regime fechado (ou 60%, caso reincidente), passou a ter que cumprir 16% ou 20%, se reincidente, da pena para progredir de regime — isto é, diminuiu o tempo que a pessoa ficará cerceada de liberdade.

Ocorre que, se o Estado não providencia a revisão automática das penas e, na prática, delega a responsabilidade de postular pela correção aos advogados, muitas pessoas permanecem/permanecerão presas (indevidamente) por anos além de suas sentenças reais (após correção a partir de decisões com efeito erga omnes), prolongando a exposição à realidade degradante das penitenciárias brasileiras, restringindo o convívio com familiares e adiando a reconstrução de suas vidas de forma digna.

Autores

  • é especialista no Tribunal do Júri, graduada em Direito pela Unisinos, sócia-fundadora do Gauer Advogadas Associadas, coautora de livros publicados pela OAB e pela Livraria Tirant lo Blanch Brasil e membro da diretoria da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim-RS)

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