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Aviso de Miranda é pressuposto de existência de interrogatórios informais

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6 de setembro de 2024, 10h17

No julgamento do AREsp 2.123.334/MG [1] – já abordado aqui e aqui, a 3ª Seção do STJ (Superior Tribunal de Justiça) fixou, dentre outras diretrizes para a (in)admissibilidade da confissão nos meandros do processo penal, que “a confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se feita formalmente e de maneira documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial.

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Tais garantias não podem ser renunciadas pelo interrogado e, se alguma delas não for cumprida, a prova será inadmissível. A inadmissibilidade permanece mesmo que a acusação tente introduzir a confissão extrajudicial no processo por outros meios de prova (como, por exemplo, o testemunho do policial que a colheu)”.

Dito de outra forma, o STJ declarou a desconformidade do “interrogatório de camburão”, nomenclatura empregada para fazer referência às “entrevistas” feitas pelos agentes da lei por ocasião das prisões em flagrante, com também flagrante desrespeito ás garantias constitucionais.

Com o intuito de evitar qualquer burla à inadmissibilidade dessa prova, a 3ª Seção foi contextual em determinar que a acusação não pode se valer de subterfúgios para inserir a confissão extrajudicial no processo, valendo-se, por exemplo, dos testemunhos dos policiais responsáveis pela abordagem do acusado, verdadeiro “by-pass” (contorno, manipulação, desvio, jeitinho).

Segurança jurídica

A 3º Seção do STJ, com suporte no artigo 927, §3º do CPC, modulou a aplicação das teses fixadas no AREsp 2.123.334 aos fatos ocorridos a partir do dia seguinte à publicação do respectivo acordão no Diário de Justiça Eletrônico visando garantir a segurança jurídica, embora não se tratasse de inovação normativa.

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Talvez para evitar a incidência da Lei de Abuso de Autoridade (artigo 13.  Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a: […] III – produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro).

Em uma interpretação a contrario sensu, os interrogatórios de camburão que antecederam essa data limítrofe podem ingressar no processo penal, desde que antecedidos do denominado Aviso de Miranda.

Direito ao silêncio

No Brasil, o direito ao silêncio encontra guarida na Constituição da República (artigo 5º, LXIII), combinado com as convenções internacionais sobre direitos humanos das quais o Brasil é signatário também albergam a garantia ao silêncio, como a Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 8, inciso 2, g) e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 14, inciso 3, g).

O Aviso de Miranda é corolário do direito ao silêncio, porquanto de nada adianta a existência em abstrato do direito ao silêncio sem que os seus titulares dele tenham conhecimento para efetivamente fazê-lo valer.

O exercício do poder punitivo falece de legitimidade e se torna arbitrário se o Estado não assume a obrigação de esclarecer os direitos do preso. O direito de calar do autuado implica, para a autoridade interrogante — seja ela judicial ou policial —, o dever de adverti-lo sobre o direito ao silêncio [2]. Do contrário, trata-se de coerção situacional.

Sob pena de ilicitude da prova, delegados (fase investigatória) e juízes (fase processual) advertem o arguido sobre o direito de permanecer em silêncio acerca dos fatos contra si imputados.

Abordagem

Entendemos que esse dever também se estende aos policiais no momento da abordagem, mormente quando se sabe que comumente, durante a instrução criminal, esses policiais serão ouvidos na qualidade de testemunhas, com a alta probabilidade de se referirem à suposta “confissão extrajudicial” como elemento de corroboração para a hipótese acusatória levantada pelo Ministério Público.

Nos termos do já referido inciso LXIII do art. 5º da CR, “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”.

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Esses direitos são extensíveis a qualquer pessoa submetida a investigação policial ou parlamentar, ainda que não tenham formalmente o status de indiciado [3]. Anote-se que a expressão “preso” engloba qualquer pessoa custodiada pelo Estado, isto é, não apenas aquelas submetidas a interrogatório formal.

O preso deve ser tratado como sujeito de direitos e não como mero objeto de prova durante toda a persecução penal, sintoma da perseverança da mentalidade inquisitória.

Sobre o princípio da não autoincriminação, leciona Costa Andrade [4], valendo-se da metáfora de Radbruch:

“O princípio terá de colher o respeito tanto do juiz que ‘habita o andar nobre da casa, onde predominam formas esmeradas de tratamento’, como da polícia criminal que ocupa a ‘cave do edifício, onde a regra é o recurso a processos mais rudes de tratamento’.”

É justamente no momento da abordagem — desamparado de qualquer orientação defensiva técnica, emocionalmente frágil e, não raras vezes, em um contexto de pressão subliminar para que coopere com a atividade policial, sob as mais variadas pressões —, que o preso se encontra em condições de maior vulnerabilidade perante o aparato punitivo estatal, circunstância que reivindica maior proteção jurídica contra eventual produção de prova incriminadora.

Deslealdade

Outrossim, a atuação dos policiais deve ser pautada pelo princípio da legalidade e da boa-fé [5]. A ausência do Aviso de Miranda é uma deslealdade, porque suprime informação relevante quanto aos direitos oponíveis aos agentes estatais.

Sem a prévia entrevista de defensor e ausente informação qualificada sobre a extensão dos direitos, eventual cooperação estará maculada pela ausência de “consentimento informado”. Certamente que se o autuado fosse cientificado de que as suas palavras poderiam posteriormente ser utilizadas contra ele, avaliaria a opção pelo silêncio.

Se o interrogatório judicial pressupõe a advertência, qual o fundamento para excepcionar a informação quando do flagrante? Os detentores eventuais do poder situacional não podem, por ação ou omissão, violar o princípio nemo tenetur se detegere.

Em total dissonância com os argumentos acima elencados, na prática policial, as confissões informais, extraídas à revelia do Aviso de Miranda, são referidas pelos policiais em seus depoimentos, e indevidamente valoradas pelos magistrados nas sentenças condenatórias. Por vezes, até super valoradas em um cenário de nítida injustiça epistêmica.

Explicamos

Na fase de instrução, se o acusado optar por ficar em silêncio ou negar a autoria delitiva, essas circunstâncias serão menoscabadas, pois, de forma paradoxal, o julgador prefere dar credibilidade à suposta versão apresentada pelo acusado no momento em que suas declarações podem ter derivado de pressão psicológica, ameaça ou até mesmo tortura.

Opera-se verdadeira “lavagem de supostas confissões” que entram em cena de modo transverso e oportunista. Essa situação na qual o sistema de justiça confere maior credibilidade às palavras do sujeito justamente quando ele tinha menor autonomia para se expressar caracteriza a chamada injustiça epistêmica agencial [6].

Pontua-se ainda que, entre a negativa ou silêncio do acusado em juízo e a versão dos policiais de que o acusado confessou no momento da prisão, em regra, o magistrado opta por conferir credibilidade às palavras dos agentes públicos em detrimento da palavra do arguído por mero preconceitos identitários. Trata-se da nominada injustiça epistêmica testemunhal [7].

Decerto, essas problemáticas serão esvaziadas diante das teses fixadas no emblemático ARE 2.123.334, já referido no texto. Contudo, para os fatos não alcançados por esse julgamento, o debate segue vivo.

Inclusive, convém registrar que a matéria, tombada como o Tema 1.185, angariou repercussão geral nos autos do Recurso Extraordinário nº 1.177.984 [8], de relatoria do ministro Edson Fachin com a seguinte redação:

“Obrigatoriedade de informação do direito ao silêncio ao preso, no momento da abordagem policial, sob pena de ilicitude da prova, tendo em vista os princípios da não auto-incriminação e do devido processo legal.”

O STF ainda não julgou o Tema 1.185, mas algumas decisões doravante referidas nos permitem traçar um panorama de como a matéria vem sendo tratada nos nossos tribunais superiores.

Existem decisões esparsas no sentido de reconhecer a desnecessidade do Aviso de Miranda pelos policiais quando da realização dos interrogatórios de camburão. À guisa de exemplo, citamos os julgamentos do RHC 61.754/MS [9] e AgRg no HC 674893/SP [10] no STJ.

Em outro vértice, são reiterados os precedentes que entendem a ausência de Aviso de Miranda como causa de nulidade relativa, cujo reconhecimento depende de comprovação de prejuízo pela defesa.  Neste sentido, colacionamos algumas decisões do STJ: RHC 67.730/PE [11], AgRg no HC 724.006/SP [12] e AgRg no HC n. 697.827/SC [13].

A menos que o acusado tenha ficado em silêncio mesmo sem ter sido previamente advertido desse direito, é tangível o prejuízo experimentado pela defesa quando o arguido produz provas contra si sem ser previamente comunicado pelos policiais que não era obrigado a fazê-lo.

No mais, é do Estado-acusação o ônus de provar que os policiais alertaram o preso sobre sua prerrogativa de silenciar. Seria descabido — a bem da verdade, impossível — exigir que o acusado provasse a falta do Aviso de Miranda nas confissões extraídas durante abordagens policiais.

Os recursos tecnológicos, especialmente bodycam estão disponíveis. Sem gravação, não há conformidade.

Encontramos algumas decisões do STF que reconhecem a nulidade dos interrogatórios informais sem que haja comprovação de que os policiais fizeram o Aviso de Miranda no momento da abordagem, a despeito de comprovação de prejuízo pela defesa do acusado: RHC 192.798 AgR [14] e Rcl 33.711/SP [15], e o HC 862.002/SC [16]

Se, para que uma confissão judicial seja válida, é necessário que o juiz concretize o Aviso de Miranda, e ainda que seja registrada em vídeo ou lavrada em ata, com a aposição da assinatura do acusado e de seu defensor, logicamente, o mínimo que se pode exigir para a validade de uma confissão informal é que haja prova de que os policiais advertiram o preso do seu direito de silenciar.

Vamos além

A ausência de advertência sobre a prerrogativa de silenciar deve ser deslocada do campo das nulidades para a seara das ilicitudes.

A possibilidade de os atos nulos serem convalidados sob o (pseudo)argumento da ausência de prejuízo para a defesa torna débil o mandado constitucional de advertência sobre a prerrogativa de silenciar do preso. Qualifica-se como mais uma das “Garantias Potiche” , de enfeite como se indicou aqui.

Retroagindo no tempo, encontramos uma decisão do STF (HC 80.949/SP [17]) que pode servir de bússola para o julgamento do Tema 1.185. Colacionamos, por oportuno, excerto do voto do relator, o Ministro Sepúlveda Pertence:

“O privilégio contra a auto-incriminação nemo tenetur se detegere, erigido em garantia fundamental pela Constituição além da inconstitucionalidade superveniente da parte final do art. 186 C.Pr.Pen. importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta da advertência – e da sua documentação formal – faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em conversa informal gravada, clandestinamente ou não” (grifos nossos).

Igual posicionamento também foi adotado recentemente pela 2ª Turma do STF [18]. Acreditamos ser esse o caminho correto. A ausência de comprovação do aviso de Miranda nos interrogatórios informais perpassa pelo domínio mais rigoroso da “admissibilidade/inadmissibilidade” da prova (artigo 5º, LVI, CF). Este exame não pode ser procrastinado para a fase de valoração, pois enquanto o ato produz efeitos se prolonga a lesão ao direito fundamental do acusado [19].

Qualquer interrogatório, formal ou informal, realizado sem comprovação de que foi concretizado o Aviso de Miranda, é ilícito, bem como as provas dele derivadas, devendo, pois, ser desentranhadas do processo, na forma do artigo 157 do CPP.

Geraldo Prado [20], em referência ao direito alemão, nos brinda com importante lição sobre a matéria:

“O equivalente alemão ao nosso STJ decidiu que declarada a ilicitude de um interrogatório realizado sem a prévia informação ao acusado de que ele tem direito ao silêncio, o segundo interrogatório somente será considerado válido na hipótese de o acusado ser alertado quanto ao referido direito e, necessariamente, de que as declarações prestadas anteriormente, no ato declarado nulo, não existem mais e, portanto, não serão consideradas ou confrontadas com as que vier a prestar.”

Transplantando esse raciocínio para o debate apresentado no presente texto, defendemos que eventuais depoimentos policiais que façam referência a interrogatórios informais sem a comprovação de prévia cientificação do acusado sobre o seu direito ao silêncio (dever de informação simples) são ilícitos, e por conseguinte, devem ser decotados do conjunto probatório.

E mais: o acusado, antes de ser submetido ao interrogatório judicial, precisa ser informado dessa exclusão — dever de informação qualificada, para que suas declarações sejam realmente fruto de decisão de sua vontade, e não mera reprodução de um interrogatório anterior que não prestaria genuinamente se tivesse sido advertido da sua prerrogativa de silenciar.

Consoante Claus Roxin, a omissão do dever de informação qualificada é mais prejudicial ao acusado do que a ausência do dever de informação simples, porquanto nessa última hipótese o acusado, em que pese sinta-se obrigado a prestar depoimento, tem a opção de negar os fatos ou apresentar uma narrativa que lhe aprouver, ao passo que, na primeira situação, o réu imagina que nenhuma versão apresentada poderá lhe salvar, pois a confissão anterior conduzirá a sua incriminação [21].

Em arremate, esperamos que a Corte Suprema, na qualidade de guardiã da nossa Constituição, quando do julgamento do Tema 1.185, conclua pela imprescindibilidade do Aviso de Miranda nas abordagens policiais, sob pena de ilicitude do interrogatório informal e das provas dele decorrentes.

Do contrário, estar-se-á autorizando um boicote policial ao princípio constitucional da não autoincriminação, convalidando-se o “by-pass” ao devido processo legal.

_________________________________________________________

[1] STJ, AREsp 2123334/MG, Relator Ministro Ribeiro Dantas, 3ª Seção, julgado em 20/06/2024, DJe 02/07/2024.

[2] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2024, p.446-479

[3] STF, HC 79.812, rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. 8/11/2000, p. 16/2/2001.

[4] ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. 2. ed. Coimbra: Gestlegal, 2022, p.138.

[5] Sobre a extensão da exigência de boa-fé ao processo penal, vide DIDIER JR., Fredie; BOMFIM, Daniela. Pareceres, V. 2. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 25.

[6] LACKEY, Jennifer. False confessions and testimonial injustice. In Journal of Criminal Law & Criminology, v. 110, p. 43-68, 2020, p. 60.

[7] FRICKER, Miranda. Epistemic of injustice. Power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007.

[8] STF, RE 1177984/SP, Rel. Ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 02/12/2021, DJe: 03/02/2022.

[9] STJ, RHC 61.754/MS, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 25/10/2016, DJe 07/11/2016.

[10] STJ – AgRg no HC 674893/SP, Rel. Ministro João Otávio De Noronha, Quinta Turma, julgado em 14/09/2021,  DJe 20/09/2021.

[11] STJ, RHC 67730/PE, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 26/04/2016, DJe 04/05/2016

[12] STJ, AgRg no HC 724006/SP, Rel. Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador convocado do TJDFT), Quinta Turma, julgado em 17/05/2022, DJe 20/05/2022.

[13] STJ, AgRg no HC n. 697.827/SC, Rel. Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador convocado do TJDFT), Quinta Turma, julgado em 8/2/2022, DJe de 25/2/2022.

[14] STF, RHC 192.798 AgR, Rel. Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 24/2/2021, DJe 02/03/2021.

[15] STF, Rcl: 33711 SP -, Rel. Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 11/06/2019, DJe 23/08/2019.

[16] decisão monocrática da ministra Daniela Teixeira, julgado em 03/06/2024.

[17] STF, HC 80.949/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, julgado em 30/10/2001, DJe 14.12.2001.

[18] STF, RHC 207459/SP, Rel. Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 25/04/2023, DJe 18/05/2023.

[19] PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p.127.

[20] PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p.129.

[21] ROXIN, Claus. Por uma proibição de valorar a prova nos casos de omissão do dever de informação qualificada – reflexões sobre a decisão do 4º Senado do Bundesgerichtshof. In: LEITE, Alaor (org.). Novos estudos de direito penal. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p.217.

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