A Constituição, os jornais estrangeiros e o complexo de vira-latas
5 de setembro de 2024, 11h26
Às vésperas da estreia do Brasil na Copa de Mundo de 1958 — da qual sairia campeão, com Pelé, Garrincha, Zagallo, entre outras lendas da história do futebol —, o cronista e jornalista Nelson Rodrigues, inobstante o elevado grau técnico da seleção, notou nos brasileiros uma tendência à autoinferiorização, bem como certo pessimismo quanto ao futuro desempenho de nossos atletas naquela competição.
Foi aí, em matéria publicada na revista Manchete Esportiva, que a expressão complexo de vira-latas foi registrada pelo cronista, até onde se sabe, pela primeira vez [1]:
“Temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de ‘complexo de vira-latas’. Estou a imaginar o espanto do leitor: — ‘O que vem a ser isso?’ Eu explico. Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo.”
Hoje, quase 70 anos mais tarde, sabe-se que a tendência à subvalorização do que é brasileiro pelo próprio brasileiro vai muito além do futebol. Nesse contexto, de aparente baixa autoestima nacional permanente, basta que um estrangeiro critique nosso povo, nossa cultura, nossa história ou nossas instituições, que nós mesmos seremos os primeiros a fazer coro para nos enxovalhar.
Recebemos com algum desânimo — embora com não tanta surpresa — diversos compartilhamentos, por brasileiros, de reportagem veiculadas em jornais estrangeiros [2] que criticam decisões tomadas pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, nos autos da Pet 12.357.
Inquestionável que a liberdade de expressão, a de opinião e a de imprensa são fundamentais ao Estado Direito e à preservação da democracia. Os jornais têm todo o direito de criticar qualquer decisão judicial, inclusive sem compromisso com a imparcialidade.
Inegável, também, que o fato de serem jornais estrangeiros torna ainda mais compreensíveis eventuais confusões ou obscuridades nas matérias. Não se pode exigir de quem é de fora absoluto conhecimento da história e das normas brasileiras, como se brasileiros fossem.
Nada disso se disputa.
O que causa certa estranheza é que os brasileiros — muitos deles com sólida formação acadêmica e conhecedores da história constitucional do país — saiam irrefletidamente a vociferar ataques às instituições brasileiras, baseados exclusivamente nessas matérias, como se a mera anglofonia atribuísse aos jornais uma espécie de supremacia absoluta.
Procuraremos demonstrar por que as reportagens em questão não são aptas a fundamentar qualquer crítica às decisões do ministro Dias Toffoli.
Garantias processuais
Sabe-se que o Constitucionalismo, enquanto movimento político-social global, surgiu como mecanismo de oposição ao autoritarismo. Envoltas pelas acepções iluministas, as constituições devem possuir, como diretriz essencial, a proteção do indivíduo diante do Estado, por meio da salvaguarda de direitos e garantias fundamentais e da organização do poder político.
Antes da Constituição, o cidadão servia ao Estado. Após, o Estado passou a servir ao cidadão.
No contexto brasileiro, um dos eixos de proteção ao indivíduo ao qual a Constituição de 1988 conferiu destaque especial corresponde ao das garantias processuais. Somente no artigo 5º, da Carta, existem mais de 40 incisos relacionados ao Direito Constitucional Processual [3].
Não parece difícil entender as razões da importância atribuída às garantias processuais. Com efeito, se o Estado puder julgar um cidadão arbitrariamente, sem se ater a regras que assegurem a imparcialidade do juízo, o direito ao contraditório e à ampla defesa, o processo não será instrumento para atingir justiça, mas se transmudará em ferramenta de perseguição e opressão.
Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco ensinam que aplicar devidamente as garantias processuais é fundamental à realização do princípio da dignidade humana, que inadmite “que o homem seja convertido em objeto dos processos estatais” [4].
É verdade que a amplitude semântica da expressão devido processo legal torna hercúlea — ou mesmo impossível — a tarefa de esgotar o estudo sobre o referido direito fundamental e a de conhecer todas as hipóteses práticas de sua aplicação. Todavia, três de seus corolários ajudam a entender, ao menos em parte, como ele opera.
O direito ao contraditório e o direito à ampla defesa, por exemplo, decorrem do devido processo legal, e garantem ao jurisdicionado a possibilidade de se manifestar no processo, de apresentar suas razões de defesa em contraposição ao pedido autoral de tutela jurisdicional, bem como de ter seus argumentos apreciados pelo julgador e levados em consideração na construção de seu juízo decisório [5].
Por sua vez, também enquanto derivação do devido processo legal, o princípio do juiz natural assegura, em sua perspectiva tripartite: a) que não haverá juízo ou tribunal de exceção; b) que todos têm o direito a ser julgados por magistrado competente e pré-constituído na forma da lei; e c) que o magistrado deve ser imparcial [6].
Todo processo — mas sobretudo aqueles de natureza penal — devem ser conduzidos em observância aos referidos postulados, e a consequência de eventual inobservância é a nulidade. Com efeito, o ato processual que viola o direito ao contraditório, o direito à ampla defesa ou o princípio do juiz natural é nulo ab initio.
Toffoli e a ‘lava jato’
De volta ao objeto das manchetes estrangeiras, deparamo-nos com as críticas a decisões proferidas pelo ministro Dias Toffoli, do STF, que declararam nulos determinados atos processuais praticados no âmbito da operação “lavo jato”. Afirmam as manchetes que as decisões supostamente iriam na contramão do combate à corrupção e representariam um retrocesso para a probidade brasileira.
Talvez por ausência de conhecimento aprofundado acerca das normas brasileiras, as matérias jornalísticas não tenham compreendido, com a devida clareza, aquelas decisões, as quais em nada apequenam os esforços atinentes à luta contra a corrupção.
Hoje é fato notório que a operação “lava jato” se revelou, em diversos aspectos, palco de irregularidades. Pessoas foram julgadas e condenadas por um sistema deturpado, que obtinha e manipulava provas por meio de canais extraoficiais, que apresentava arranjos inadequados entre o órgão acusador e a magistratura, e que se utilizava da operação com finalidades pessoais e políticas.
Não houve juiz natural. Não se garantiu a ampla defesa. Não se garantiu o contraditório. Sob todos os ângulos que se examine aquela situação, resta patente o desrespeito ao devido processo legal.
E a consequência óbvia é a decretação da nulidade dos atos maculados.
As decisões, simplesmente, deram cumprimento às ordens da Constituição Federal. Tão importante quanto o resultado de um julgamento, é a forma procedimental por meio da qual a ele se chega. Para que o indivíduo não seja reduzido a mero objeto do Estado, as normas processuais precisam ser seguidas. Ninguém pode ser alvo de perseguição processual desenfreada e abusiva.
Ao abordar o tema em entrevista nesta ConJur [7], Lenio Streck foi cirúrgico:
“ConJur — Nós vivemos no Brasil depois de o lavajatismo ter praticamente ser tornado um governo paralelo no país. Ele parece que está vivendo seu ocaso, ou pelo menos o seu desmascaramento. Não é motivo de preocupação que, ao se desmoralizar os falsos combatentes da corrupção, se desmoralize também o combate à corrupção e a gente viva um Estado em que o crime passa a ocupar um protagonismo que não tinha antes?
Lenio Streck — A raposa vai ao moinho e perde o focinho. E aí é um problema. Nós, exatamente, não podemos atirar a água suja com a criança dentro. É momento de se fazer efetivamente uma transição, colocando o Estado democrático de Direito, aquilo que é o devido processo legal, na sua essência, no sentido de levar o Direito a sério, doa a quem doer, e que não se faça essa, digamos, ode ao consequencialismo. Ou se substitua que os fins justificam os meios. Isso não pode acontecer na democracia, porque o custo é muito grande. Eu tenho confiança que se possa tirar muitas lições dos erros que foram cometidos. A Justiça fica, o sistema fica, e as pessoas passam. […] Nós não podemos fazer análises ad hoc, simplesmente. Nós temos uma responsabilidade. E aí vem a responsabilidade da comunidade jurídica, da universidade, dos advogados, dos grandes doutrinadores, de trazerem e fazerem uma reflexão sem que se atire fora a criança com a água suja junto. O rei está nu, mas temos de ter cuidado com isso, né? Aumenta a responsabilidade do mundo jurídico.”
Opinião estrangeira como dogma
As decisões que os jornais criticam em nada tem a ver com complacência ou conivência. Elas tampouco relativizam a gravidade dos supostos atos que eram ali investigados e julgados, em momento algum. São, em verdade, decisões judiciais que coadunam com as normas constitucionais brasileiras.
E aqui cabe frisar: nossa crítica não se dirige às matérias, em si. No jornalismo, eventuais imprecisões não intencionais são compreensíveis e devem ser, inclusive, protegidas pelo manto da liberdade de imprensa — ressalvadas, claro, as hipóteses de abuso de direito.
A crítica se dirige a nós mesmos, brasileiros, que, por tomarmos como dogma a opinião estrangeira, colocamo-la acima dos mandamentos da Constituição. E ainda a utilizamos para depreciar nossas próprias instituições.
Seria desejável que, antes de tomarmos como verdades absolutas as ideias do europeu ou do norte-americano e, de forma precipitada, utilizarmos essas opiniões para massacrar o que é nosso, nós, brasileiros, buscássemos entender melhor o assunto abordado.
Deixemos de lado o complexo de vira-latas.
É certo que o Brasil não está imune a críticas. Erros são cometidos aqui.
Mas, às vezes, acerta-se também.
Parece ser o caso.
[1] RODRIGUES, Nelson. (1958) Revista Manchete Esportiva. Bloch Editores. Rio de Janeiro, In À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. Organizado por Ruy Castro. São Paulo, Cia das Letras, 1993, pp. 61-63
[2] Confira-se: https://www.economist.com/the-americas/2024/03/07/corruption-is-surging-across-latin-america; e https://www.ft.com/content/f94f1279-b011-441d-9c9b-2841bab1714f
[3] J. J. Canotilho intitula de Direito Constitucional Processual o ramo do Direito que estuda “os princípios e regras de natureza processual positivados na Constituição e materialmente constitutivos do status activus processualis no ordenamento constitucional” (CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Edições Almedina, 2003, p. 966)
[4] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015 (Série IDP), p. 398.
[5] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015 (Série IDP), pp. 454-455.
[6] NERY JUNIOR, Nelson. Princípio do processo na Constituição Federal. 12 ed. rev. ampl. e atual. com as novas súmulas do STF (simples e vinculantes) e com o novo CPC (Lei n. 13.105/2015). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 162.
[7] https://www.conjur.com.br/2020-dez-01/entrevista-lenio-streck-advogado-jurista/
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