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Freadas por STF e lei ‘anticrime’, delações ainda precisam ser aperfeiçoadas

4 de setembro de 2024, 8h51

Por Sérgio Rodas

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Os acordos de colaboração premiada foram amplamente usados pela finada “lava jato”, mas saíram do noticiário — com raras exceções — devido a decisões do Supremo Tribunal Federal e à lei “anticrime” (Lei 13.964/2019). O instituto das delações foi aperfeiçoado, mas especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico apontam que ele ainda deve ser refinado, para que sejam evitados novos abusos.

Juiz não reconheceu delação premiada de Pablo Marçal, mas assim mesmo aplicou o atenuante da confissão

O assunto das delações voltou à tona após o jornal Folha de S.Paulo noticiar, no último dia 26, que o candidato a prefeito de São Paulo pelo PRTB, Pablo Marçal, teve sua prisão preventiva revogada pela 11ª Vara Federal de Goiânia após delatar comparsas de uma quadrilha que promovia fraudes bancárias.

A sentença de 2010, porém, negou a aplicação dos benefícios da delação premiada a Marçal e a outros réus que colaboraram com a Justiça. Segundo o juiz Eduardo Ribeiro de Oliveira, o acusado só pode ser beneficiado com o instituto se, além de admitir participação no crime, fornecer “informações eficazes, capazes de contribuir com a identificação dos demais comparsas e desmantelamento da trama delitiva orquestrada com recuperação total ou parcial do produto, devendo, sobretudo, ser mantida em juízo, sem retratação do afirmado na fase policial”.

As delações de Marçal e dos demais réus, conforme o julgador, “em nada contribuíram para além do que já havia sido objeto de investigação, do que já fora apurado pela interceptação telefônica, não houve indicação de contas fraudadas, além das que foram apreendidas pela polícia em poder dos acusados, não houve recuperação dos valores subtraídos, não se olvidando que alguns se retrataram sob o crivo do contraditório”.

Dessa forma, o juiz não reconheceu a delação premiada de Marçal e dos outros acusados, apenas o atenuante da confissão. O candidato a prefeito foi condenado a quatro anos e cinco meses de reclusão por furto qualificado. Em 2018, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região reconheceu a prescrição e extinguiu a punibilidade. Isso porque se passaram mais de quatro anos entre a sentença e o julgamento da apelação. O Código Penal prevê que o prazo prescricional é reduzido pela metade para menores de 21 anos e pessoas acima de 70, e Marçal tinha 18 anos quando o processo foi iniciado, em 2005.

Impulso lavajatista

A delação premiada negada a Pablo Marçal, contudo, não era a mesma que foi popularizada pela “lava jato”. O instituto existe no Brasil desde as Ordenações Filipinas, de 1603, e é previsto em diversas normas criminais, como o Código Penal, a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), a Lei de Proteção de Vítimas e Testemunhas (Lei 9.807/1999) e a Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), e aliviou as punições de contraventores confessos como Joaquim Silvério dos Reis (que entregou Tiradentes) e Roberto Jefferson (que denunciou o caso do “mensalão”).

Contudo, apenas com a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) a medida foi regulamentada no país, com o nome de colaboração premiada. Com isso, as delações deixaram de ser feitas de modo informal e com reduções de pena dependentes da decisão do juiz e passaram a ser formalizadas em contratos, com cláusulas detalhando todos os benefícios e as condições necessárias para obtê-los.

Iniciada seis meses após a regulamentação da colaboração premiada, em março de 2014, a “lava jato” foi turbinada pelos acordos. A autoapelidada força-tarefa, que começou com suspeitas de lavagem de dinheiro por meio de um posto de gasolina em Brasília, cresceu por causa das delações de Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef — eles foram os primeiros a mencionar irregularidades na Petrobras.

A partir dali, diversos outros investigados resolveram colaborar com a Justiça, seja pela possibilidade de receber uma punição mais branda — já que a regra era a condenação a altas penas —, seja por medo de ficarem presos preventivamente por tempo excessivo, prática corriqueira da “cultura lavajatista”.

Foram firmados 582 acordos de colaboração premiada na “lava jato”, contando os casos de Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo e do Supremo Tribunal Federal, segundo o Ministério Público Federal.

Últimas delações noticiadas

Após o fim da “lava jato”, em fevereiro de 2021, as delações saíram do noticiário. E, diferentemente dos acordos da investigação, os poucos casos revelados desde então não têm relação com corrupção ou lavagem de dinheiro.

Acusados de assassinar a vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista, Anderson Gomes, os ex-policiais militares do Rio de Janeiro Ronnie Lessa e Élcio Queiroz firmaram acordo de colaboração premiada com a Polícia Federal, homologado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes.

As delações de Lessa e Queiroz são mais duas de grande repercussão conduzidas pela Polícia Federal. Outras cooperações de figurões feitas pela corporação geraram muito barulho, mas tinham pouca substância — a do ex-governador do Rio Sérgio Cabral foi anulada pelo Supremo, por exemplo. Com a morte da “lava jato”, o órgão tem a chance de mostrar que pode conduzir colaborações relevantes e produzidas sem abusos.

O tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL), igualmente firmou termo de cooperação com a PF, que foi homologado por Alexandre. A delação se insere no Inquérito das Milícias Digitais e em outras investigações conexas envolvendo o militar, que atuou como braço direito do ex-presidente e teria participado de episódios como a tentativa de golpe de Estado, a falsificação dos dados de vacinação de Bolsonaro e a venda ilegal de presentes que ele recebeu como chefe do Executivo brasileiro.

Já os ex-executivos das Lojas Americanas Marcelo Nunes e Flávia Carneiro celebraram acordo de colaboração com o Ministério Público Federal, a PF e a Comissão de Valores Mobiliários. Eles confessaram participação no esquema que levou a companhia a registrar fraude estimada em R$ 25 bilhões.

As três delações tratam de crimes diferentes dos que levaram aos acordos da “lava jato”. Enquanto as colaborações premiadas lavajatistas eram baseadas em corrupção e lavagem de dinheiro, as mais recentes tratam de homicídio (Lessa e Queiroz); golpe de Estado e falsidade ideológica (Mauro Cid); e manipulação do mercado e insider trading (ex-executivos das Americanas).

As investigações contra Cid e os antigos dirigentes das Americanas também abordam lavagem de dinheiro, mas envolvendo esquemas menos sofisticados (no caso das joias de Bolsonaro) ou sem relação com o Estado (no caso da varejista).

Freios nas delações

As colaborações premiadas pararam de ser firmadas com tanta frequência quanto ocorria na “lava jato” devido aos freios que foram impostos ao instituto pelo STF e pela lei “anticrime”, conforme apontam os especialistas.

Algumas decisões do Supremo nesse sentido reforçaram que nenhuma condenação poderia ser proferida apenas com base nas informações do colaborador (HC 127.483); vedaram a “corroboração cruzada” (Petição 5.700); declararam que provas produzidas unilateralmente pelo delator são insuficientes para corroboração (Inquérito 3.994); estabeleceram que os acordos não podem prever condições e benefícios não previstos em lei (Petição 7.265); e determinaram que réus delatados têm o direito de falar por último nos processos em que também há réus delatores (HC 166.373). Muitas das balizas fixadas pelo STF foram incorporadas à Lei das Organizações Criminosas pela lei “anticrime”, promulgada no fim de 2019.

Para Pierpaolo Cruz Bottini, professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo, o que mudou o cenário foi a proibição, pela lei “anticrime”, de medidas cautelares reais ou pessoais, do recebimento de denúncia ou queixa-crime e da prolação de sentença com fundamento apenas nas declarações do colaborador.

“Essa mudança, que começou a gerar efeitos em 2020, foi o ponto de inflexão, ao exigir que as colaborações sejam mais robustas para gerar efeitos jurídicos”, diz Bottini.

Aury Lopes Jr., professor de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, opina que as delações foram banalizadas na “lava jato” e agora estão retornando à normalidade.

“A colaboração é uma medida excepcional e deve ser aplicada apenas em último caso. Ela não pode ser banalizada porque, em regra, o Estado não tem de negociar com um criminoso confesso que quer obter benefícios.”

Lopes Jr. afirma que tem visto mais acordos de colaboração premiada em casos de tráfico de drogas. Na visão de Fernando Augusto Fernandes, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense, o instituto deveria ser restrito a crimes que protegem bens jurídicos extremamente importantes, como a vida.

Propostas de aperfeiçoamento

Ainda há espaço normativo e jurisprudencial para o aperfeiçoamento da colaboração premiada. O jurista Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, explica como o Supremo pode melhorar o instituto no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 919.

“Sou signatário da ADPF 919, que tramita no STF, em que propomos um conjunto de alterações no procedimento da colaboração premiada. Entre elas, não monetizar a colaboração, como ocorreu em muitas delas na ‘lava jato’; não utilizar a colaboração como forma de pressão sobre o réu; e não utilizar a prisão preventiva como modo de o réu colaborar (veja: se o réu já está preso, não há óbice para a delação). A colaboração deve também trazer um ganho adequado ao Estado. Isto é, o colaborador deve ter algo para entregar, e o ganho deve ser proporcional”, ressalta Streck.

Fernando Fernandes afirma que a colaboração premiada foi introduzida acriticamente na legislação brasileira, com influência de normas de outros países. Ele defende a extinção do instituto e a regulamentação da confissão, que já prevê a redução da pena.

“O Código Penal já prevê a redução da pena para quem confessa um crime. Portanto, o caminho mais saudável é regulamentar a confissão, suprimindo por completo a figura anômala estrangeira da colaboração premiada.”

Por sua vez, Aury Lopes Jr. ressalta que é preciso deixar claro que a delação não é prova e tem valor limitado, porque o delator é um criminoso confesso e tem interesse em obter benefícios. Além disso, declara ele, é necessário ter um juízo crítico quanto aos acordos celebrados com presos.

“O grande problema do colaborador preso é que ele firma uma delação premiada sem nenhum tipo de voluntariedade, espontaneidade ou igualdade negocial, porque ele está preso. O constrangimento e a coação situacional da prisão são incompatíveis com uma delação premiada com algum tipo de qualidade”, afirma o professor da PUC-RS.