Opinião

Prescrição no redirecionamento da execução fiscal na sucessão empresarial

Autor

3 de setembro de 2024, 6h05

§ 1 Delimitação do objeto de análise e o desafio da conexão do tempo, em sua função de estabilização do direito, buscando superar sua contínua e ficcional relação com a realidade

Considere-se, para os fins desta análise teórica, que são verdadeiras as sete proposições descritas a seguir (não é caso de provas que possam ir além das exigidas para simples aplicação da prescrição ex vi do Tema 444) [1]:

1ª Proposição verdadeira. Descrição narrativa da situação jurídica do processo de execução fiscal: (i) o fato gerador foi realizado pela empresa “A”; (ii) o crédito tributário foi constituído, dentro do prazo de decadência, em face desta empresa “A”, (iii) o título executivo (CDA) foi regularmente formalizado em face da empresa “A” e (iv) o processo executivo fiscal foi interposto pela Fazenda Pública, dentro do regular prazo prescricional, em face da empresa “A”. Portanto, é importante advertir: não é caso nem de extinção do crédito, nem de decadência, nem de prescrição em face da empresa “A”, que continua ativa e compareceu nos autos desta execução fiscal.

2ª Proposição verdadeira. A empresa “B” não faz parte destes autos, “Quod non est in actis non est in mundo”: (i) a empresa “B” não realizou o fato gerador objeto desta cobrança; (ii) não há crédito tributário constituído em face desta Empresa “B”, como não há fato gerador, não há nem como se contar prazo decadencial; (iii) no título executivo (CDA), não há remota menção à empresa “B” e; (iv) o processo executivo fiscal não foi interposto em face da empresa “B”, sequer haveria como contar o tradicional prazo prescricional, porque não há “dies a quo” no tempo-histórico, identificado ex vi do artigo 174 do CTN, uma vez que não há momento da “constituição definitiva do crédito” em face da empresa “B”.

3ª Proposição verdadeira. A empresa “B” surge neste processo, tão-apenas, mediante mera alegação (sem provas) da empresa “A”, dez anos, e.g., após ajuizada a execução fiscal pela Fazenda Pública, alegando, unilateralmente, que a empresa “B” seria responsável por sucessão ex vi do artigo 133 do CTN: (i) sem apontar indícios ou qualquer fato concreto sobre a sucessão; (ii) sem indicar os ativos e passivos sucedidos e (iii) sem provas, trazendo, unicamente para confundir o juízo, documentos falsos e desconexos, por exemplo, colaciona aos autos decisões judiciais que relacionam tão-somente a empresa “A” com empresa “C”, que não é parte deste processo e, igualmente, não possui qualquer relação com a empresa “B”.

4ª Proposição verdadeira. O único elemento de conexão entre a empresa “A” e a empresa “B” é que ambas tiveram suas filiais situadas no mesmo endereço, em períodos distintos, sendo que a empresa “B” apenas locou galpão comercial pertencente a empresa “D” por período curto, por exemplo, pelo período de cinco meses.

5ª Proposição verdadeira. Não obstante tal suporte fático, a procuradoria “P” requereu a “inclusão” da empresa “B” no polo passivo da execução originária [2], sob o fundamento de que teria ocorrido a sucessão tributária nos termos que dispostos pelo artigo 133, do CTN, sem alegar quaisquer razões que levariam a caracterização da sucessão e sem anexar qualquer documento comprobatório de tal sucessão, sendo que o juízo deferiu o pedido e determinou a “alteração do polo passivo”, para incluir a empresa “B”.

6ª Proposição verdadeira. Não ocorreu, na realidade, nem há qualquer registro de alegação da procuradoria “P” de qualquer ato ilícito ou dissolução irregular, nem em face da empresa “A”, nem em face da empresa “B”.

7ª Proposição verdadeira. O suporte factual enseja a aplicação da regra geral do Tema 444/STJ. Ou seja, o redirecionamento da execução não é imprescritível e, inexistindo qualquer das exceções que possam afastar a aplicação do Tema 444/STJ, deve ser reconhecida a prescrição para o redirecionamento da execução em face da procuradoria “P”.

§ 2. Três premissas: (1ª premissa) não há normas específicas de decadência ou prescrição; (2ª premissa) a prescrição existe para exigir que os agentes públicos atuem tempestivamente para garantir o direito do Estado ao crédito tributário; e (3ª premissa) a jurisprudência do STJ, reiteradamente, zela pela inalterabilidade do sujeito passivo

Em minha tese de doutoramento (2020) [3], o objeto principal foi enfrentar as teses do STJ que pretendiam criar novas e específicas regras de decadência e prescrição (para lançar, restituir o indébito e exercer o direito de ação no caso de ADI.

STJ

Pesquisa feita por Lucas Silvestre do NEF/FGV [4] sobre a quantidade de citações desta obra, utilizando o sistema “Inspira” [5] indica que a obra foi citada em 19.696 decisões: (i) 412 decisões [6] do Superior Tribunal de Justiça, (ii) 9.765 decisões dos Tribunais de Justiça estaduais, (iii) 3.755 decisões dos Tribunais regionais federais, (iv) 5.758 decisões de Entidades administrativas tributárias; e (v) 6 decisões de tribunais trabalhistas.

1ª Premissa: não há normas específicas de decadência ou prescrição. Esse foi o tema central de minha tese de doutorado “Decadência e Prescrição no Direito Tributário”, defendida em 2000. Decadência e prescrição são normas gerais criadas para outorgar coerência e completude ao Sistema Tributário Nacional, ex vi do:  (i) parecer de Aliomar Baleeiro, justificando a Emenda nº 938, e do parecer dado ao projeto de Código Tributário Nacional, também chamado Projeto Rubens Gomes de Sousa — Osvaldo Aranha e; do (ii) parecer ao Projeto nº 4.834/54 — “O Projeto de Código Tributário Nacional” (aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados).

2ª Premissa: a prescrição existe para exigir que os agentes públicos atuem tempestivamente para garantir o direito do Estado ao crédito tributário [7]. A prescrição do direito do fisco de cobrar o crédito não existe para proteger o contribuinte-devedor, responsável tributário, seja ele terceiro, sucessor ou decorrente de infrações: existe para proteger o credor, o Estado titular da dívida, em face do exercício do dever de seus procuradores.

“As regras jurídicas sobre prescrição hão de ser interpretadas estritamente” [8]. O fundamento da prescrição — adverte Pontes de Miranda [9], é proteger o que não é devedor e pode não ter mais prova da inexistência da dívida; e não proteger o que era devedor e confiou na inexistência da dívida, tal como juridicamente aparecia”. A prescrição existe para proteger o credor (fisco), incentivando e obrigando a autoridade competente (procuradoria “P” a propor a competente ação para realizar o direito ao crédito dentro do prazo de cinco anos, contados do respectivo dies a quo.

É para esse fim que as regras de prescrição encontram-se sistematizadas, enumeradas e delimitadas no Código Tributário Nacional. Trata-se de regra geral de fechamento do sistema: não há um prazo de prescrição específico para a sucessão, outro prazo específico para responsabilidade de terceiros, outro prazo específico para responsabilidade por infrações. Não há diferença específica entre as hipóteses de responsabilidade que justifique a criação de uma regra de prescrição para cada um desses casos [10].

Não há normas específicas sobre prescrição no direito tributário: todos os critérios normativos relevantes que formam o “Sistema das normas de prescrição” estão no artigo 174 do CTN:

3ª Premissa: a jurisprudência do STJ, reiteradamente, zela pela inalterabilidade do sujeito passivo, seja ele contribuinte ou responsável (ex vi do artigo 121 do CTN), mediante o ato administrativo do lançamento (ex vi do artigo 142 do CTN) e Certidão de Dívida Ativa (ex vi do artigo 201 do CTN).

Pesquisa empírica para meu novo livro [11] indica que o STJ vem buscando conciliar: (i) a necessária prescritibilidade do redirecionamento da execução fiscal; e (ii) o respeito aos critérios de definição do sujeito passivo definidos no lançamento e na certidão de dívida ativa. Na ordem cronológica:

a) A Súmula 392 [12]/STJ (2009) decidiu que a alteração da Certidão de Dívida Ativa tão-somente poderá ser realizada em caso de erro material ou formal, sendo vedada a modificação do sujeito passivo, por entender que essa alteração violaria princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

b) O Tema 444 /STJ (2019) decidiu que o prazo de cinco anos para o redirecionamento da ação executiva deve ser contado do despacho de citação, exceto: (i) no caso do ato ilícito ocorrer após o despacho da citação; (ii) no caso do ato de dissolução irregular ocorrer após o despacho da citação, e (iii) no caso de não ocorrer a inércia da Fazenda Pública.

c) Tema repetitivo 1.049 /STJ, reagindo à Súmula 392/STJ, decidiu que “A Execução Fiscal pode ser redirecionada em desfavor da empresa sucessora para cobrança de crédito tributário relativo a fato gerador ocorrido posteriormente à incorporação empresarial e ainda lançado em nome da sucedida, sem a necessidade de modificação da Certidão de Dívida Ativa, quando verificado que esse negócio jurídico não foi informado oportunamente ao fisco”.

Conclusão

Fixadas as sete proposições deste caso hipotético que delimitam o objeto deste estudo e as três premissas acima expostas, deve ser aplicado à empresa “B”, o dies a quo previsto no artigo 174, inciso I do CTN — em conformidade à regra geral do Tema 444, afastadas suas respectivas exceções [13] — ou seja, 5 anos contados  do momento em que ocorreu o despacho que ordenou a citação da empresa “A” (devedora original)

O tempo consome os fatos e o direito que deles advém. No tempo, a lei ganha sentido, nasce o direito. No tempo morrem os fatos, somem as provas. No tempo, e pelo tempo, o direito extingue o direito: ocorre a decadência e a prescrição.

Cego, tal qual Chronos, o direito, implacável, devora o direito que de sua seiva surge. Decadência e prescrição não são formas de fazer justiça. São formas concretas que o direito encontrou para conviver com esse deus tão poderoso: o tempo. [14]

____________________________________________

[1] MOURA, Adriano; FRANCISCO, Marcelo Guimarães; FONSECA, Júlia de Oliveira. Prescrição do redirecionamento da execução fiscal para cobrança do sócio-administrador. Mattos Filho, 2023. Disponível em: https://www.mattosfilho.com.br/unico/execucao-fiscal-socio-administrador/. Acesso em: 31 ago. 2024.

[2] Ou seja: (i) não é caso de ato ilícito ocorrido após o despacho da citação; e (ii) não é caso de ato de dissolução irregular ocorrido após o despacho da citação.

[3] Em formato eletrônico disponível para consulta: Decadência e Prescrição no Direito Tributário (euricosanti.com.br).

[4] Realizada por Lucas Silvestre: pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV Direito SP.

[5] Sistema Inspira: sistema de inteligência artificial, desenvolvido para pesquisas de jurisprudência, que coleta, aperfeiçoa e analisa dados jurisprudenciais de todo o Brasil (disponível em: https://www.inspira-ai.com/).

[6] STJ (412 decisões): a) 75 decisões de relatoria do Min. Luiz Fux; b) 63 decisões de relatoria do Min. Herman Benjamin; c) 60 decisões de relatoria do Min. Mauro Campbell Marques; d) 60 decisões de relatoria do Min. Humberto Martins; d) 19 decisões de relatoria da Min. Assusete Magalhães; f.) 18 decisão de relatoria do Min. Benedito Gonçalves; g) 18 decisões de relatoria da Min. Eliana Calmon; h) 16 decisões de relatoria do Min. Gurgel de Faria; i) 15 decisões de relatoria da Min. Regina Helena Costa; j) 11 decisões de relatoria do Min. Castro Meira; h) 9 decisões de relatoria do Min. Francisco Falcão; l) 8 decisões de relatoria do Min. Hamilton Carvalhido; m) 8 decisões de relatoria do Min. Sérgio Kukina;n) 7 decisões de relatoria do Min. Napoleão Nunes Maia Filho e mais 14 decisões et alli.

[7] Decadência e prescrição no direito tributário. 5ª Edição, Editora Max Limonad, 2022, Capítulo 9.

[8] Tratado de direito privado, op. cit., “§ 666. Interpretação das regras jurídicas sobre prescrição”, p. 126.

[9] Tratado de direito privado, op. cit., p.100.

[10] Eurico Marcos Diniz de Santi. Decadência e Prescrição no Direito Tributário. “Quadro Sinóptico das Regras de Prescrição do Direito do Fisco”, op. cit, p. 230-231.

[11] LÓGICA JURÍDICA, ANÁLISE DO DIREITO E CONTROLE DA LEGALIDADE: CASO DA PRESCRIÇÃO NO REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO FISCAL NA SUCESSÃO EMPRESARIAL, no prelo.

[12] Súmula 392/STJ: “A Fazenda Pública pode substituir a certidão de dívida ativa (CDA) até a prolação da sentença de embargos, quando se tratar de correção de erro material ou formal, vedada a modificação do sujeito passivo da execução.”

[13] Exceções à aplicação do Tema 444: (i) caso de ato ilícito ocorrer após o despacho da citação; ou (ii) no caso do ato da dissolução irregular ocorrer após o despacho da citação. Observe-se que contra a prova dos critérios relevantes ao art. 174 do CTN que determinam a aplicação da prescrição, obviamente, não se pode opor a Súmula 7 do STJ (não cabe reexame do acervo fático-probatório dos autos, o que é vedado, em sede de recurso especial).

[14] Eurico Marcos Diniz de Santi. Decadência e Prescrição no Direito Tributário, 5ª Edição, Max Limonad, 2020,, p. 43. Em formato eletrônico, disponível para consulta: Decadência e Prescrição no Direito Tributário (euricosanti.com.br). Acesso em: 31 ago. 2024.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!