Opinião

Justa causa é garantia contra denúncia inepta no período eleitoral

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3 de setembro de 2024, 20h53

Ao longo dos anos, a Justiça Eleitoral tem demonstrado sua importância para garantir a adequada condução dos pleitos, candidaturas e a sucessão nos Poderes Executivos e Legislativos.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Especificamente no ambiente dos crimes eleitorais, porém, há uma evolução doutrinária e jurisprudencial vagarosa, seja pela sua especialidade ou por sua temporalidade que gera o enfoque a cada pleito, entre outros motivos que ocasiona, naturalmente, a necessária pesquisa e análise de conceitos do cerne dos grandes temas do Direito Processual e do Direito Penal e, tão logo, a transferência para a realidade da legislação especial.

Desse modo, no campo eleitoral, observa-se um cenário de legislações com dispositivos vagos que dificultam o reconhecimento e enquadramento de determinadas condutas como criminosas. Alguns tipos penais previstos no Código Eleitoral, em vigor desde 1965, seriam vistos somente no passado e, no presente, teriam difícil aplicação.

O capítulo II do Código Eleitoral prevê diversas hipóteses criminosas, desde “votar ou tentar votar mais de uma vez” — fato improvável desde a implantação das urnas eletrônicas pelo TSE — até a recente inclusão da “denunciação caluniosa com finalidade eleitoral” em 2021. Além disso, há previsões penais nas Leis nº 6.091/74, nº 6.996/82, nº 7.021/82 e na Lei Complementar nº 64/90.

Notícia-crime

Em razão das diversas hipóteses criminosas, um sem número de condutas podem ser noticiadas às autoridades por terceiros. É o que se denomina notícia-crime [1]. Ao receber a demanda, a autoridade judiciária encaminhará ao Ministério Público ou à autoridade policial com requisição para instauração do respectivo inquérito policial eleitoral (artigo 356, § 1º e artigo 6º da Resolução nº 23.396/13).

A autoridade policial ou o Ministério Público fará um filtro do fato noticiado e, nesse momento, analisará: a) se o fato noticiado constitui crime eleitoral; b) se há a existência (materialidade) do fato noticiado; c) se há indícios mínimos que indiquem a participação do candidato na prática delituosa noticiada.

A partir disso, em um período eleitoral, a análise da notícia-crime deve ser feita sob um viés crítico desde o início da pretensão investigatória, pois a deflagração de operações inócuas com o posterior oferecimento de denúncias sem justa causa, quando tornadas públicas, podem vulnerabilizar a disputa entre os candidatos e implicar em flutuações dos índices de rejeição e aprovação das campanhas — o que não só prejudica a candidatura como também compromete a integridade do processo eleitoral.

Antídoto

Quando a notícia-crime não recebe o arquivamento de imediato, o controle de legalidade exercido pelo Poder Judiciário é um antídoto essencial para impedir que denúncias infundadas sejam usadas como ferramenta para subsidiar prisões cautelares, buscas e apreensões e, tão logo, influenciar os índices de rejeição e aprovação de um candidato. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal já afirmou que o controle de legalidade da investigação preliminar pelo Judiciário, “longe de violar o sistema acusatório, concretiza o poder-dever do magistrado, que, na fase pré-processual da persecução penal, atua como juiz de garantias” [2].

Spacca

O controle de legalidade deve se dar sobre a justa causa. Definida, em síntese, como a “prova induvidosa da ocorrência de um fato delituoso, na hipótese, e prova ou indícios de autoria, apurados no inquérito policial ou nas peças de informação” [3]. Ainda, conforme Aury Lopes Júnior, a justa causa constitui uma condição de garantia contra o uso abusivo do direito de acusar [4].

Quando não há justa causa para o prosseguimento da ação penal, ou seja, quando não há provas inequívocas da ocorrência de um delito e indícios de autoria, é comum a impetração de Habeas Corpus para trancar a ação penal. De acordo com a jurisprudência do TSE, o trancamento de uma ação penal por meio do habeas corpus só será possível em casos de ilegalidade ou teratologia que possam eliminar a justa causa para a continuidade do processo.

Quando ocorre, a inépcia da denúncia em crimes eleitorais não só evidencia a ausência de justa causa mas também sublinha a importância de um filtro mínimo dos indícios obtidos ainda na fase pré-processual.

Se, desde o início do procedimento, o fato relatado não apontar indícios mínimos de participação do candidato na conduta descrita ou se a própria conduta narrada não configurar crime eleitoral, não há motivo sequer para a manutenção da pretensão investigatória, que, nesses casos, também poderá ser trancada por meio do Habeas Corpus para o trancamento de inquérito policial, conforme jurisprudência do TSE:

“[…]. I – O trancamento de inquérito policial pela via do habeas corpus somente pode ser reconhecido, quando de pronto, sem necessidade de exame valorativo do conjunto fático-probatório, houver justa causa, evidenciada pela atipicidade do fato, ausência de indícios para fundamentar a acusação, ou ainda a extinção da punibilidade. […]” (Ac. de 22/10/2009 no RHC nº 133, rel. min. Ricardo Lewandowski.)

Falha no filtro

No entanto, apesar da possibilidade reconhecida pela jurisprudência, o Habeas Corpus é impetrado em situações em que a investigação já está em curso ou a denúncia já foi apresentada. Isso indica que o filtro dos órgãos acusatórios falhou, e, se a investigação ou a ação penal já foi tornada pública, o período eleitoral pode ter sido comprometido.

Por isso, a preservação da integridade do processo eleitoral exige uma atuação cuidadosa e fundamentada por parte dos órgãos acusatórios, garantindo que somente denúncias com robustez probatória mínima e de alguma probabilidade condenatória sejam admitidas, protegendo assim os direitos dos candidatos e a legitimidade do pleito eleitoral.

 

 


[1] Na lição de Gustavo Henrique Badaró, quando noticiado por terceiro, pode haver notícia crime provocada (ato formal) ou delatio criminis (ato informal feito por qualquer do povo). BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal – 6ª ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 139-140.

[2] AgR-INQ. 4.441, 21/03/2023, 21:36 Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, DJe de 20/11/2020.

[3] MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa causa para a ação penal: doutrina e jurisprudência. Imprenta: São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001, p. 241.

[4] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal – 17ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 343.

Autores

  • é advogado, sócio do escritório Pippi Advocacia, mestre e especialista em Ciências Criminais pela PUC-RS e pós-graduado em Garantias Constitucionais do Processo Penal pela Universidad Castilla-La Mancha de Toledo (Espanha).

  • é advogado, sócio do escritório Damian & Stecker e especialista em Ciências Penais pela PUC-RS.

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