Insegurança jurídica e violação à isonomia: proposta de modulação do Tema 118
2 de setembro de 2024, 16h18
No último dia 28, foi retomado o julgamento, pelo STF (Supremo Tribunal Federal), do RE 592.616, leading case do Tema de Repercussão Geral 118. O julgamento, iniciado anteriormente em plenário virtual, já contava com os votos dos ministros Celso de Mello, Cármen Lúcia, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski pela exclusão do ISS da base de cálculo do PIS e da Cofins. Contava, ainda, com os votos dos ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso pela inclusão do imposto municipal na base de cálculo das contribuições.
Nesse contexto, e considerando a orientação do Plenário do STF de manutenção dos votos dos ministros aposentados [1], antes mesmo da sessão presencial do dia 28, já estavam garantidos três votos favoráveis à tese defendida pelos contribuintes (ministros Celso de Mello, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski) [2].
Após a retomada do julgamento, os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes manifestaram seus entendimentos pela inclusão do ISS na base do PIS e da Cofins, enquanto o ministro André Mendonça votou pela exclusão. O julgamento foi, então, suspenso com o placar de quatro votos favoráveis aos contribuintes e dois votos desfavoráveis.
Assim, tendo por base os votos anteriormente proferidos em plenário virtual [3] e o voto do ministro Luiz Fux na “tese do século” (Tema de Repercussão Geral 69, que discutiu a incidência de PIS e Cofins sobre o ICMS), espera-se que o Plenário do STF forme maioria de 6 votos para que o ISS seja excluído da base do PIS e da Cofins. Este é, portanto, o atual cenário da discussão.
Nessa conjuntura, este artigo analisará a proposta de modulação de efeitos formulada pelo ministro André Mendonça para o caso de concretização da expectativa dos contribuintes, isto é, para o caso de decisão final do Pleno pela não incidência de PIS e Cofins sobre o ISS. Pretende-se, portanto, demonstrar que, em respeito aos princípios da segurança jurídica e da isonomia, a modulação sugerida não pode prevalecer.
Pois bem. O ministro externou sua proposta nos seguintes temos:
“Por fim, há uma última questão a ser tratada, concernente aos efeitos da presente decisão. A esse respeito, entendo, em primeiro lugar, que em relação aos valores ainda não recolhidos ou ainda não convertidos em renda (mesmo que por decisão judicial não definitiva), não há incidência do PIS e da Cofins sobre o ISS; e, de outro lado, em relação aos créditos tributários já extintos, em função de excepcional interesse social concernente à preservação da higidez do ciclo orçamentário, modulo os efeitos da presente decisão, a ela atribuindo efeitos prospectivos a partir da publicação da ata deste julgamento.” [4]
Nesse viés, destacou que, com relação ao “crédito extinto, quitado, não haveria nenhum ressarcimento, nenhuma restituição, nenhuma repetição a ser feita”, por outro lado, relativamente ao crédito “que ainda não foi recolhido e não convertido em renda não há incidência do PIS e da Cofins”.
Com o devido respeito, a proposta de modulação é inconciliável com a fundamentação do voto proferido pelo Ministro, além de violar gravemente a segurança jurídica e a isonomia.
Ao proferir seu voto, o ministro registrou seu entendimento de que “como não há aqui um julgamento de inconstitucionalidade, o quórum para modulação de efeitos seria de 6 votos”. Essa afirmação demonstra, portanto, que a modulação proposta está alicerçada no artigo 927, § 3º, do CPC. A redação deste dispositivo legal é a seguinte:
Art. 927. §3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
A aplicação da norma pressupõe, portanto, a alteração de jurisprudência dominante. Essa é a base da confiança que legitima a modulação. Nesse sentido:
(…) o tribunal pode deliberar, ao alterar a jurisprudência anteriormente consolidada, que a nova orientação só será aplicada aos casos futuros, a fim de resguardar o interesse social e a segurança jurídica (art. 927, §3º) (…) [5]
A modulação de eventual entendimento favorável aos contribuintes firmado no tema 118, com base no artigo 927, §3º, do CPC, depende, então, da demonstração de jurisprudência anterior consolidada em favor da União. Ocorre que a fundamentação do voto do ministro André Mendonça aponta exatamente o contrário.

Ministro André Mendonça, do STF
O ministro iniciou seu voto destacando o julgamento do RE 240.785, do RE 606.107 e do RE 574.706, sendo este último o paradigma do tema 69 de repercussão geral. Destacando não reputar existência de distinção entre o caso do ISS na base do PIS e da Cofins e os julgados pertinentes ao ICMS, concluiu que “por coerência interna e integridade da jurisprudência” do STF, o ISS não poderia ser incluído na base de incidência do PIS e da Cofins.
A base das razões de decidir do ministro foi, então, a existência de jurisprudência consolidada favorável não à pretensão da União, mas sim à pretensão dos contribuintes. Por conseguinte, a decisão de exclusão do ISS da base das contribuições não representa alteração de jurisprudência consolidada (como exige o artigo 927, §3º, do CPC), mas, ao contrário, representa confirmação do entendimento jurisprudencial da Corte.
Partindo das razões de decidir adotadas pelo ministro André Mendonça, a modulação do artigo 927, §3º, do CPC, sequer é aplicável em caso de decisão final favorável aos contribuintes, considerando a inocorrência de superação de entendimento jurisprudencial anterior. Exatamente por esta razão, a aplicação da modulação, neste caso, viola o princípio da segurança jurídica, notadamente em sua vertente de proteção da confiança:
O princípio da proteção da confiança é o fundamento central da possibilidade de se limitar, no tempo, a eficácia da carga normativa das decisões judiciais, quando a jurisprudência consolidada gerou confiança, no sentido de que não seria alterada. [6]
Com efeito, adotando-se como premissa que a jurisprudência consolidada era favorável à tese dos contribuintes [7], a modulação em detrimento destes viola frontalmente a confiança depositada na manutenção do entendimento jurisprudencial.
Ora, a aplicação da modulação no caso significa que o contribuinte, que há anos confiava que o STF, “por coerência interna e integridade da jurisprudência”, decidiria pela exclusão do ISS da base de cálculo do PIS e da Cofins, será, repentinamente, surpreendido pela aplicação meramente prospectiva dos efeitos do julgado. Isto é, o contribuinte que acreditava que seria ressarcido do pagamento a maior de PIS e de Cofins (decorrente da majoração da base de incidência pela inclusão do ISS) não poderá mais contar com tal ressarcimento, em prejuízo ao seu caixa e às suas operações econômicas.
Além disso, a jurisprudência consolidada do STF gera pauta de conduta não apenas para o contribuinte, mas também para a União. Assim, a União, não obstante tivesse conhecimento do entendimento da Corte Constitucional, permaneceu, anos a fio, exigindo o recolhimento das contribuições sobre base sabidamente inconstitucional e, agora, sequer terá que restituir os contribuintes lesados. Evidente, aqui, o estímulo à edição de normas inconstitucionais. Em outras palavras: inexistindo base idônea de confiança que resguarde a parte, não é possível a aplicação de modulação em seu favor.
A modulação sugerida ressalva apenas os valores não recolhidos e não convertidos em renda. Patente a violação ao princípio constitucional da isonomia tributária, previsto no artigo 150, II, da CR/88, que veda o tratamento desigual entre contribuintes em situação equivalente.
Na verdade, mais do que impor tratamento desigual a contribuintes em situação equivalente, a modulação sugerida gera cenário pior àquele contribuinte que, acreditando de boa-fé que futuramente seria ressarcido, recolheu PIS e Cofins a maior em decorrência da inconstitucional majoração da base de incidência. Até mesmo o contribuinte que, confiando na jurisprudência consolidada do STF, ajuizou ação judicial para discutir a ilegal exigência da União não poderá pleitear a restituição do montante pago a maior.
Por outro lado, o contribuinte que, até mesmo sem ação judicial e sem qualquer medida de suspensão de exigibilidade do crédito tributário (como liminar ou depósito judicial), simplesmente deixou de recolher as contribuições sobre a parcela referente ao imposto municipal, não precisará, agora, recolher o PIS e a Cofins. Na prática, portanto, a modulação impõe situação pior ao contribuinte mais responsável e conservador.
Critério inadequado
O critério eleito para a diferenciação imposta entre os contribuintes é inadequado. Se a base de confiança para ambos é a mesma (a jurisprudência consolidada do STF), não se pode compreender por que a proposta de modulação adota como critério a ocorrência — ou não — de extinção do crédito tributário.
Enfim, a justificativa adotada pelo ministro para sua proposta de modulação (“interesse social concernente à preservação da higidez do ciclo orçamentário”) não é suficiente para a aplicação do instituto da modulação previsto pelo artigo 927, §3º, do CPC, sob pena de violação à segurança jurídica e à isonomia. Para o auferimento de receitas e consequente financiamento das atividades estatais, os entes federativos devem se valer das regras encartadas na Constituição e na legislação infraconstitucional.
Nesse sentido, o argumento consequencialista, para a aplicação da modulação, deve ser meramente subsidiário: o que justifica uma preocupação com a higidez do ciclo orçamentário é a existência de base de confiança para a Fazenda Pública, que acreditava na legalidade e constitucionalidade da cobrança. Por outro lado, existindo posicionamento firme do STF, encarregado de dar a última palavra acerca da interpretação do texto constitucional, acerca da inconstitucionalidade da exigência tributária, o argumento consequencialista é insuficiente para que os efeitos da decisão sejam modulados.
Ademais, o próprio ministro André Mendonça, em diversas oportunidades destacou preocupação com o desrespeito ao sistema de precedentes. Inclusive, a própria fundamentação de seu voto no Tema 118 traz essa abordagem:
(…) tive a oportunidade de demonstrar preocupação institucional acerca da oscilação da jurisprudência do Supremo em matéria de base de cálculo de tributos e respectiva função do sistema de precedentes brasileiro. A meu sentir, esse estado de coisas culmina em argumentações como as verificadas na sentença e no acórdão recorrido, que já visualizavam a jurisprudência do Supremo e, ainda assim, não a atenderam (…) [8]
Com efeito, a modulação efetivada em caso de reafirmação da jurisprudência do STF incentiva o desrespeito ao sistema de precedentes: a parte que confiou nos precedentes do STF será prejudicada, enquanto a parte que desrespeitou os precedentes será beneficiada. Espera-se, assim, que o ministro André Mendonça reveja seu posicionamento acerca da modulação de efeitos do Tema 118 de repercussão geral, bem como que o Plenário do STF ratifique a força de seus próprios precedentes e respeite a confiança gerada por seu entendimento consolidado.
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[1] Questão de Ordem na ADI 5.399 (STF; Plenário; j. 09/06/2022; p. 07/12/2022): “acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal (…) em acolher questão de ordem suscitada pelo Ministro Alexandre de Moraes no sentido de o Plenário fixar o entendimento da validade de voto proferido por Ministro posteriormente aposentado, ou cujo exercício do cargo tenha cessado por outro motivo, mesmo em caso de destaque em julgamento virtual”.
[2] Assim, a partir da atual composição da Corte, os demais votos a serem colhidos no julgamento presencial seriam os dos ministros Roberto Barroso, Edson Fachin, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Alexandre de Moraes e André Mendonça.
[3] Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes pela inclusão, e Cármen Lúcia pela exclusão.
[4] Transcrição do voto oral proferido na sessão presencial do dia 28 de agosto.
[5] THEODORO JÚNIOR, Humberto; ANDRADE, Érico. Precedentes no processo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 114.
[6] ALVIM, Teresa Arruda. Modulação na alteração da jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 71.
[7] Como fez o Ministro André Mendonça, que justificou seu entendimento, repita-se, “por coerência interna e integridade da jurisprudência”.
[8] Transcrição do voto oral proferido na sessão presencial do dia 28 de agosto.
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