Direito Civil Atual

Actio nata na jurisprudência do STJ

Autor

  • Augusto Cézar Lukascheck Prado

    é professor de Direito Civil. Assessor de ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).

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2 de setembro de 2024, 10h19

A coluna tem por objetivo examinar recente acórdão do Superior Tribunal de Justiça, proferido por ocasião do julgamento do REsp nº 2.144.685/SP, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, julgado em 20/8/2024, no qual a 3ª Turma definiu o sentido e o alcance da chamada teoria da actio nata.

Em apertada síntese, a questão central consistia em dizer se seria aplicável o viés subjetivo da teoria para definir o termo inicial do prazo para ajuizamento de ação rescisória fundada em dolo ou erro de fato.

Busca-se, com a análise do referido julgamento, lançar luzes sobre a recepção da teoria da actio nata no direito civil brasileiro, notadamente tendo em vista a cambiante jurisprudência do STJ sobre o tema.

O texto divide-se em três seções, além da introdução, a saber: 1) Elementos descritivos e fundamentos do acórdão; 2) A teoria da actio nata na jurisprudência do STJ; 3) Conclusão.

Elementos descritivos e fundamentos do acórdão

Trata-se de recurso especial interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que extinguiu ação rescisória, em virtude do reconhecimento da decadência. A ação tinha por fundamento a suposta existência de dolo (artigo 966, III, CPC) e erro de fato (artigo 966, VIII, CPC).

Na oportunidade, entendeu o tribunal bandeirante que a flexibilização do termo inicial do prazo para o ajuizamento de ação rescisória só seria possível nas hipóteses expressamente previstas em lei, como aquelas constantes nos §§ 2º e 3º do artigo 975 do CPC.

ConJur

Irresignado, o autor interpôs recurso especial, sustentando, em síntese, que não estaria consumada a decadência, pois seria aplicável à hipótese o viés subjetivo da teoria da actio nata para definir o termo inicial do prazo para o ajuizamento da ação rescisória. Em outras palavras, argumentava que o prazo da ação rescisória só teria início quando o seu autor tivesse ciência da concretização, no mundo dos fatos, das hipóteses autorizadoras da rescisão.

A 3ª Turma, na esteira do voto da ministra relatora, de início, revisitou os conceitos de pretensão e de poder formativo (= direito formativo).

Com base nos estudos de Giuseppe Lumia [1] e Pontes de Miranda [2], esclareceu-se que a pretensão consistiria em um poder de exigir um comportamento do polo passivo da relação jurídica, tendo por posição correspectiva o dever comportamental. Ressaltou-se, ainda, que, por representar o grau de exigibilidade do direito (em sentido) subjetivo, a satisfação da pretensão exigiria sempre uma atuação do sujeito passivo, de ordinário, do devedor.

O poder formativo, por sua vez, foi definido como o poder de alterar a esfera jurídica do sujeito passivo, que não pode a ele se opor, por encontrar-se em estado de sujeição. Observou-se que, ao contrário do que se verifica com a pretensão, a satisfação do poder formativo não exige um comportamento positivo ou negativo do sujeito passivo, que está simplesmente sujeito ao exercício do referido poder.

O estabelecimento das noções de pretensão e poder formativo era fundamental para ser possível avançar ao tema da distinção entre os institutos da prescrição e da decadência.

A partir do clássico artigo de Agnelo Amorim Filho, “Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis” [3], publicado em 1961, concluiu-se que: (a) as pretensões estariam submetidas a prazos prescricionais; (b) os poderes formativos com prazo de exercício fixado em lei estariam submetidos a prazos decadenciais; e (c) os poderes formativos sem prazo de exercício fixado em lei deveriam ser considerados perpétuos. Ou seja, para se verificar se um prazo é prescricional ou decadencial, dever-se-ia investigar a natureza da posição jurídica tratada.

Realizada a distinção entre os institutos da prescrição e da decadência, a Terceira Turma avançou na matéria para enfrentar a questão da determinação do termo inicial dos mencionados prazos, com destaque para a definição do sentido e do alcance da teoria da actio nata, que decorre do antigo brocardo latino actioni nondum natae non praescribitur.

Na esteira do voto da relatora, o STJ esclareceu que a teoria da actio nata, desenvolvida por Friedrich Carl Freiherr von Savigny, preconiza que os prazos prescricionais teriam início no momento do nascimento da pretensão, o que ficou conhecido como o viés objetivo da referida teoria. O início dos prazos prescricionais, portanto, em regra, tem início assim que o direito pode ser exigido, pouco importando se o sujeito ativo tem ciência desse fato ou se houve violação do direito (em sentido) subjetivo [4].

Todavia, a jurisprudência do STJ passou a admitir, excepcionalmente, a flexibilização desse entendimento. O início dos prazos prescricionais, nessas situações excepcionais, ocorreria no momento da ciência do nascimento da pretensão. Trata-se do que passou a ser denominado viés subjetivo da teoria da actio nata. “Subjetivo”, porque na dependência da aferição, na hipótese concreta, do real conhecimento ou não do sujeito de direito acerca do nascimento de sua pretensão.

Em síntese, a regra geral no direito civil brasileiro, para a determinação do termo inicial dos prazos prescricionais, é o viés objetivo da teoria da actio nata. Apenas excepcionalmente, em situações absolutamente residuais, é que se admite a aplicação do viés subjetivo da teoria.

Os prazos decadenciais, por sua vez, têm como termo inicial o nascimento do próprio poder formativo (= direito formativo) ou, em situações excepcionais, outro momento em que a lei expressamente indicar [5].

Ao examinar a possibilidade de aplicação do viés subjetivo da teoria da actio nata ao prazo para ajuizamento de ação rescisória fundada em dolo ou erro de fato, a Terceira Turma esclareceu que o prazo para a rescisão possui natureza decadencial, pois refere-se ao poder formativo de rescindir decisão de mérito transitada em julgado.

Assim, tratando-se de poder formativo, não haveria, nessa situação, nascimento de qualquer pretensão de direito material. Como corolário lógico, concluiu-se que, se a teoria da actio nata está relacionada a direitos subjetivos dos quais decorrem pretensões, não teria espaço de aplicação ao prazo decadencial para ajuizamento de ação rescisória.

Por fim, o julgado advertiu que as regras esculpidas nos § 2º e § 3º do artigo 975 do CPC, por constituírem normas excepcionais, mereceriam interpretação restritiva, não sendo possível ampliar sua incidência para as hipóteses de dolo e de erro de fato.

Teoria da actio nata na jurisprudência do STJ

Não é nova, na jurisprudência do STJ, a referência à teoria da actio nata para a definição do termo inicial dos prazos prescricionais.

No entanto, é comum encontrar, nas ementas de diversos precedentes — e este fato é relevante, pois o direito pátrio é ementário —, a afirmação genérica de que “o curso do prazo prescricional do direito de reclamar inicia-se somente quando o titular do direito subjetivo violado tem ciência do fato e da extensão de suas consequências, conforme o princípio da actio nata[6].

É fácil perceber que tal afirmação, excessivamente genérica, não esclarece a qual vertente da teoria se está a referir, reduzindo a teoria da actio nata — e esse é o ponto mais preocupante — à sua vertente subjetiva. Em outras palavras, transmite-se a errônea impressão de que a regra geral, no direito civil brasileiro, seria o viés subjetivo da teoria, o que é falso.

Nos últimos anos, no entanto, é possível localizar um conjunto de precedentes, cada vez mais numeroso, que faz, adequadamente, a distinção entre as duas vertentes da teoria, deixando claro que a regra é o viés objetivo e a exceção é a teoria subjetiva [7].

Há, inclusive, alguns precedentes que, de forma expressa, esclarecem: “segundo a jurisprudência desta Corte Superior, a aplicação da actio nata sob a vertente subjetiva é excepcional” [8].

No julgamento do REsp 2.078.357/MG, por exemplo, concluiu-se, acertadamente, que “a prescrição tem como termo inicial do transcurso do seu prazo o nascimento da pretensão (teoria da actio nata). Somente a partir do instante em que o titular do direito pode exigir a sua satisfação é que se revela lógico imputar-lhe eventual inércia em ver satisfeito o seu interesse, ressalvadas as hipóteses excepcionais de aplicação do viés subjetivo da teoria da actio nata[9].

Atenta à necessidade de uniformizar a jurisprudência, a 3ª Turma, no julgamento do REsp 1.836.016/PR, pela primeira vez, definiu critérios para a aplicação de uma ou de outra vertente da teoria. Concluiu-se, na oportunidade, que “são critérios que indicam a tendência de adoção excepcional do viés subjetivo da teoria da actio nata: a) a submissão da pretensão a prazo prescricional curto; b) a constatação, na hipótese concreta, de que o credor tinha ou deveria ter ciência do nascimento da pretensão, o que deve ser apurado a partir da boa-fé objetiva e de standards de atuação do homem médio; c) o fato de se estar diante de responsabilidade civil por ato ilícito absoluto; e d) a expressa previsão legal a impor a aplicação do sistema subjetivo” [10].

Conclusão

É urgente a pacificação da jurisprudência do STJ acerca da aplicação da teoria da actio nata, pois a matéria guarda relação com o próprio exercício dos direitos.

Muito embora seja possível identificar uma consolidação de entendimento em julgados mais recentes, subsistem, ainda, sobretudo em agravos internos, afirmações genéricas que podem conduzir o intérprete, principalmente a doutrina, a erro.

O precedente firmado no julgamento do REsp 2.144.685/SP, nesse contexto, possui grande relevância para o direito civil brasileiro, pois, ao mesmo tempo que estabelece a distinção entre os institutos da prescrição e da decadência, esclarece, definitivamente, que: (a) a regra geral, no direito brasileiro, é a vertente objetiva da teoria da actio nata; e (b) a referida teoria não se aplica aos prazos decadenciais.

 

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

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[1] LUMIA, Giuseppe. Lineamenti di teoria e ideologia del diritto. 3. ed. Milano: Giuffrè, 1981, p. 102-123.

[2] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: eficácia jurídica, direitos e ações. Atual. por Marcos Bernardes de Mello e Marcos Ehrhardt Jr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. t. 5. p. 533.

[3] AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista de Direito Processual Civil. São Paulo, v. 3, p. 95-132, jan./jun. 1961.

[4] Nesse sentido: NEVES, Julio Gonzaga Andrade. A prescrição no Direito Civil brasileiro: natureza jurídica e eficácia. 2019. 281 páginas. Doutorado – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019, p. 101; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: exceções, direitos mutilados, exercício dos direitos, pretensões, ações e exceções, prescrição. Atualizado por Otavio Luiz Rodrigues Junior, Tilman Quarch e Jefferson Carús Guedes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. t. 6. p. 239; CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil: parte geral, exercício jurídico. t. 5. 3. ed. rev. e atual. Coimbra: Almedina, 2018, p. 204.

[5] “O prazo decadencial (…) faz parte do próprio direito potestativo. Nasce junto com ele, como um dos seus elementos formativos” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição e decadência. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 351).

[6] Cita-se, exemplificativamente: STJ. AgInt no AREsp n. 2.240.353/SE, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 29/5/2023, DJe de 7/6/2023; STJ. AgInt no AREsp n. 1.544.832/MA, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 28/11/2022, DJe de 5/12/2022; STJ. AgInt no REsp n. 1.808.873/MA, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 28/11/2022, DJe de 5/12/2022; STJ. AgInt no REsp n. 1.814.453/MA, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 28/11/2022, DJe de 5/12/2022; STJ. AgInt no REsp n. 1.814.461/MA, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 28/11/2022, DJe de 5/12/2022; STJ. AgInt no REsp n. 1.815.540/MA, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 28/11/2022, DJe de 5/12/2022; STJ. AgInt no REsp n. 1.385.579/RS, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 2/5/2022, DJe de 9/5/2022; STJ. AgInt no REsp n. 1.735.941/RS, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 14/3/2022, DJe de 7/4/2022; STJ. AgInt nos EDcl no REsp n. 1.811.735/MA, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 30/9/2019, DJe de 7/10/2019; STJ. AgInt no AREsp n. 184.396/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 27/9/2021, DJe de 3/11/2021; STJ. AgInt no AREsp n. 2.199.269/SE, relator Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, julgado em 4/3/2024, DJe de 6/3/2024; STJ. AgInt no AREsp n. 2.350.617/RJ, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 16/10/2023, DJe de 18/10/2023.

[7] STJ. AgRg no AREsp n. 637.798/RJ, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 17/6/2024, DJe de 19/6/2024; STJ. REsp n. 1.280.825/RJ, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 21/6/2016, DJe de 29/8/2016; STJ. REsp n. 1.622.450/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 16/3/2021, DJe de 19/3/2021; STJ. REsp n. 1.837.425/PR, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 13/6/2023, DJe de 22/6/2023; STJ. REsp n. 2.095.107/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 3/10/2023, DJe de 6/10/2023

[8] STJ. AgInt no REsp n. 2.065.804/RS, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 13/11/2023, DJe de 17/11/2023; STJ. REsp n. 2.037.094/PR, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 25/4/2023, DJe de 30/5/2023; STJ. AgInt nos EDcl no AREsp n. 1.794.362/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 20/9/2021, DJe de 27/9/2021; STJ. AgInt no REsp n. 1.922.705/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 21/6/2021, DJe de 29/6/2021.

[9] STJ. REsp n. 2.078.357/MG, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 3/10/2023, DJe de 9/10/2023.

[10] STJ. REsp 1.836.016-PR, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Rel. Acd. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por maioria, julgado em 10/05/2022.

Autores

  • é professor de Direito Civil Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).

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