Embargos Culturais

Norberto Bobbio: advogado de Sartre

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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1 de setembro de 2024, 8h00

Norberto Bobbio (1909-2004) é o pensador culminante da chamada “Escola de Turim”. Essa importante escola do pensamento jurídico italiano contou com autores como Pietro Luigi Albini, Giuseppe Carle e Gioele Solari. Ao que consta, este último foi o grande mestre de Bobbio. O tema – Escola de Turim — foi explorado, em sua extensão histórica, por Mário Losano, na aliciante biografia que escreveu sobre o jusfilósofo italiano. Já resenhei esse livro nesta coluna [1].

Bobbio é natural do Piemonte, a chamada “Prússia da Itália”. Deixou-nos relevantes estudos de Filosofia do Direito, sob uma perspectiva analítica, sobressaindo-se dois grandes livros: Teoria do Ordenamento Jurídico e Teoria da Norma, que a Martins Fontes também publicou em conjunto, com o título de Teoria Geral do Direito.

Com Bobbio aprendemos que a Filosofia do Direito se desdobra em três grandes campos, dependendo de várias qualificações normativas, quanto a critérios de justiça, validade e eficácia. Os problemas que se desdobram em torno de juízos críticos de justiça matizam uma Teoria da Justiça. As questões referentes à validade da norma inspiram uma Teoria Geral do Direito. O plano da eficácia informa uma Sociologia do Direito. Bobbio se destacou nessas três áreas.

Grandeza

Bobbio era reverente para com Hans Kelsen. Relacionou-se também com Carl Schmitt. A forma como Bobbio tratava Schmitt é mais uma prova de sua grandeza de alma. Bobbio conheceu Schmitt em Berlim (em 1937), quando passava férias e ao mesmo tempo estudava o pensamento de Max Scheler, quando se interessava por fenomenologia, um tema central de seu tempo.

Bobbio e Schmitt corresponderam-se ativamente. É realmente tocante uma carta de Schmitt para Bobbio, datada de 15 de dezembro de 1949. O pensador alemão lamentava a perda de sua grande e bela biblioteca. Nós, que amamos os livros, orçamos a dor superlativa que é a dor de perder livros. Cuidado nos empréstimos!

Inspirações

Bobbio sempre foi muito explícito em relação às influências que recebeu. Entre os clássicos, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant e Hegel. Entre os modernos, Croce, Cattaneo, Kelsen, Pareto e Weber. Penso que as presenças de Hobbes e de Kelsen seriam as mais emblemáticas no pensador italiano, o que o filia ao positivismo jurídico, em toda a sua plenitude, ainda que sob uma forma humanista, revigorante e revisional.

Spacca

Em sua autobiografia Diário de um Século, Bobbio reconheceu que Hobbes foi um de seus autores centrais, dele ocupando-se a intervalos durante a vida. Chegou a afirmar que não reconhecia em si mesmo outro mérito do que o de ter-se dado conta da importância central do pensamento de Hobbes, quando este era ainda pouco conhecido, pelo menos na Itália.

As obras de Filosofia do Direito de Bobbio têm fortíssimo foco na tensão entre jusnaturalismo e juspositivismo. Na Ciência Política Bobbio interessava-se por alguns temas fundamentais: a definição de política, a lição dos clássicos, os 20 anos de Mussolini, a reconquista da democracia, o tema dos direitos humanos, o socialismo libertário, a paz, a guerra, a utopia da união das esquerdas. Bobbio entendia os 20 anos do governo Berlusconi, como uma ofensa para a democracia.

Em defesa de Sartre

Vamos para o título deste pequeno ensaio. Há uma passagem na biografia intelectual de Bobbio (escrita por Losano) que ilustra o destemor político do pensador italiano. Em 1947 a Associação Nacional pelos Bons Costumes de Roma ajuizou uma ação contra o editor Giulio Einaudi (muito amigo de Bobbio) invocando atentado ao pudor, como resultado da publicação de um livro de Jean-Paul Sartre, O Muro.

Ainda que não atuasse como advogado do foro, Bobbio redigiu e assinou um Memorial — muitos anos depois publicado pela Editora Aragno (desconheço tradução em português) — em defesa de Einaudi e, por óbvio, em defesa de Sartre.

Bobbio enfatizou a relevância da obra filosófica e literária de Sartre, que colocou ao lado de Husserl e de Jaspers como um dos três principais expositores sistemáticos da filosofia existencialista. No Memorial, Bobbio e o coautor (o advogado Carlo Zino Lamberti) realçaram a produção de Sartre como uma verdadeira obra de arte. A promotoria aderiu à defesa.

Homem de seu tempo

Bobbio, ainda segundo Mario Losano, não foi um homem de fé; foi um homem de razão.  Foi um homem do século 20, distinto pelas tensões, contradições, paradoxos e metamorfoses desse tempo. Conviveu, discutiu, concordou e polemizou com os protagonistas da política italiana, da direita à esquerda, da extrema direita à extrema esquerda, sine ira et studio, isto é, sem preconceitos.

A divulgação de uma carta de Bobbio para Mussolini foi um golpe baixo de Silvio Berlusconi. Remeto o interessado para a biografia escrita por Losano, ou diretamente para as memórias de Bobbio, ou para essa coluna, em texto vindouro.

 


[1] https://www.conjur.com.br/2022-nov-13/embargos-culturais-mario-losano-primorosa-biografia-cultural-norberto-bobbio/

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular do mestrado e doutorado do UniCeub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Délhi, Berkeley, Frankfurt, Málaga).

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