Opinião

A PEC 28/24 e o Congresso como guardião da Constituição

Autor

  • é advogado professor e autor dos livros Fundamentos do Direito Constitucional (Forense 2007) Introdução ao Direito Constitucional (Forense 2008) Formação e Estrutura do Direito Constitucional (Malheiros 2011) e 10 Lições Sobre Carl Schmitt (Vozes 2014).

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1 de setembro de 2024, 15h26

O Congresso tem sido palco nos últimos anos de várias iniciativas exóticas, descabidas e sem pontos de contato com a ordem jurídica. A mais recente delas é a PEC 28/24, segundo a qual o Legislativo poderia sustar os efeitos de decisões do Supremo Tribunal Federal “no exercício da jurisdição constitucional em caráter concreto ou abstrato”. Isso significa, grosso modo, que a palavra final sobre as questões de constitucionalidade passaria a ser do Congresso e não mais do STF.

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

E o princípio da supremacia normativa da Constituição? Na prática, deixaria de existir em razão da fragilidade que a PEC lhe impõe, o que não passa, aparentemente, de um irrelevante detalhe para os setores do Congresso que investem contra o STF, relativizam a democracia e condenam a Constituição de 1988 por seu indissociável compromisso com os direitos fundamentais. Os embates políticos são parte do cotidiano democrático, mas eles não podem se tornar ataques à ordem constitucional.

Ausência de limites

O princípio da divisão de poderes é outra vítima da PEC 28/24. Um Congresso que se sobrepõe às decisões de constitucionalidade do STF termina convertido em legibus solutus, um poder sem limites. Cria a lei e decide, em último caso, sobre a sua constitucionalidade. Por isso, os termos da PEC 28/24 são draconianos para o regime democrático, deixando claro o seu verdadeiro objetivo: permitir que o Congresso atue à margem da Constituição, sem vinculação com o sistema de freios e contrapesos.

O sentido normativo da PEC 28/24 é tão absurdo em termos teóricos e normativos que de fato parece perda de tempo analisar o seu conteúdo. Mas o que pode parecer risível para os constitucionalistas em geral possui certa conexão com a realidade política de alguns setores do Congresso. Nestes tempos de decadência política e criminalização do bom senso, um ponto relevante é entender o tipo de ligação desses grupos de parlamentares com a democracia e a Constituição.

Spacca

A democracia digital ou e-democracy criou espaço para um tipo de eleitor que vive os espaços virtuais, pregando a ausência de limites para sua atuação e também para a ação dos representantes políticos com os quais ele se identifica. A expectativa em torno dessa ação sem limites no virtual é um dos principais obstáculos da democracia constitucional. É uma expectativa que defende a negação do Direito. E ela captura alguns parlamentares, reféns políticos da violência e do irracionalismo das redes.

Subversão das conquistas e corrosão da democracia

Outro setor do Congresso que impulsiona o discurso da PEC 28/24 é aquele ideologicamente comprometido com o enfraquecimento das instituições e da ordem constitucional. São parlamentares que atacam o STF, que celebram o golpe de 1964, fecham os olhos para a tortura ou que apoiam a relativização dos direitos fundamentais. Agem no Congresso como porta-vozes de um projeto antissistema que deve ser severamente repudiado por todas as pessoas que se importam com a convivência democrática e a cultura da paz. A bandeira desses parlamentares é o autoritarismo e a subversão das conquistas constitucionais.

A PEC 28/24 é mais uma engrenagem do maquinário de debilitação das instituições democráticas que vem se desenvolvendo nos últimos anos. Desde a ótica constitucional, a ideia do Congresso como guardião da Constituição beira o gênero fantástico, mas deve ser levada a sério pelos juristas e pela classe política. Trata-se de um projeto político mais amplo e bem definido. Karl Loewenstein, referindo-se aos nazistas, denunciou a corrosão da democracia de dentro para fora, corrosão que ocorre lentamente, cooptando e corrompendo a opinião pública.

Normalização do inaceitável

Através do discurso antissistema, estrategicamente elaborado e veiculado por iniciativas como a PEC 28/24, a sociedade vai se acostumando com o inaceitável, com as excrescências políticas, com as ameaças institucionais, o discurso de ódio, afastando-se, pouco a pouco, dos valores democráticos. Até que não haja mais nada para proteger. A Constituição como casca vazia.

Se Ulisses Guimarães pudesse se pronunciar a respeito da PEC 28/24, sem dúvida diria: “A Constituição certamente não é perfeita. (…) Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”.

Autores

  • é advogado, professor e autor dos livros Fundamentos do Direito Constitucional (Forense: 2007), Introdução ao Direito Constitucional (Forense: 2008),Formação e Estrutura do Direito Constitucional (Malheiros: 2011) e 10 Lições Sobre Carl Schmitt (Vozes: 2014).

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