Contratação direta de serviços advocatícios, singularidade e configuração de improbidade
31 de outubro de 2024, 8h00
Na semana passada, noticiou-se a decisão do Supremo Tribunal Federal nos Recursos Extraordinários nº 656.558/SP e nº 610.523/SP, afetados ao Tema nº 309, que debateram o alcance das sanções impostas pelo artigo 37, § 4º, da Constituição Federal, e a constitucionalidade do inciso II do artigo 25 da Lei nº 8.666/93, que estabeleceu a possibilidade de inexigibilidade de licitação para a contratação dos serviços técnicos enumerados no artigo 13.
Discutia-se, em ação civil pública, proposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, a contratação de sociedade de advogados por ente municipal. Em primeira e segunda instâncias, a contratação foi considerada regular, entendimento reformado pelo Superior Tribunal de Justiça, para quem a ausência de singularidade estava presente e havia se configurado a prática de improbidade, em face do então artigo 11, inciso I, da Lei de Improbidade Administrativa.
Sabe-se que a Lei nº 14.230/21, que alterou a Lei nº 8.429/92, dispõe que os atos de improbidade administrativa só se configuram se estiver presente o dolo específico do agente, mediante ação ou omissão, isso é, não se admitem a responsabilidade objetiva nem a simples culpa, ainda que grave, para a configuração dos atos de improbidade administrativa, independentemente da categoria na qual se enquadrem.
Teses e divergências
O relator do caso, ministro Dias Toffoli, propôs a fixação das seguintes teses ao citado tema:
“O dolo é necessário para a configuração de qualquer ato de improbidade administrativa (art. 37, § 4º, da Constituição Federal), de modo que é inconstitucional a modalidade culposa de ato de improbidade administrativa prevista nos arts. 5º e 10 da Lei nº 8.429/92, em sua redação originária.”
“São constitucionais os arts. 13, V, e 25, II, da Lei nº 8.666/1993, desde que interpretados no sentido de que a contratação direta de serviços advocatícios pela Administração Pública, por inexigibilidade de licitação, além dos critérios já previstos expressamente (necessidade de procedimento administrativo formal; notória especialização profissional; natureza singular do serviço), deve observar: (i) inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do Poder Público; e (ii) cobrança de preço compatível com a responsabilidade profissional exigida pelo caso, observado, também, o valor médio cobrado pelo escritório de advocacia contratado em situações similares anteriores.”
O voto do relator restou acompanhado pela maioria dos ministros.
No entanto, houve manifestações de divergência sobre determinados aspectos do voto do ministro Toffoli. O ministro Barroso entendeu pela nulidade do contrato porque as atividades eram rotineiras, pelo que ausente o elemento da singularidade, exigido pela Lei nº 8.666/93.

Mas, mesmo entendendo pela nulidade, recordou que o dolo é necessário para configuração de qualquer ato de improbidade administrativa, também em face dos atos praticados sob a vigência da redação originária da Lei nº 8.429/92, desde que não tenha havido a condenação transitada em julgado, na linha do que o Supremo Tribunal Federal já decidira (Tema nº 1.199). Assim, não faria sentido a incidência da multa civil aplicada pelo STJ.
E divergiu ainda da passagem do voto em que se condicionava a validade de contratos diretos à ausência de norma impeditiva produzida por entes subnacionais, afirmando que leis editadas por estados-membros e municípios não podem afrontar a lógica da inexigibilidade, que é a de que a competição não se faz possível.
Comprovação da singularidade
Observa-se que o julgado avaliou a contratação por inexigibilidade, ainda sob a égide da Lei nº 8.666/93. Por essa razão, se salienta a necessidade de que se cumpram os requisitos naquela lei elencados, o que explica a necessária menção à singularidade do objeto e à inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do poder público, aliada à notória especialização, ao procedimento formal e ao preço compatível com situações análogas, cobrado pelo contratado.
Há, entretanto, no voto, algum sinal de que os ministros – ou parte deles – ainda compreendem necessária a comprovação da singularidade hoje, à luz da Lei nº 14.133/21, para a contratação direta de serviços advocatícios com fundamento na inexigibilidade de licitação?
A Nova Lei de Licitações e Contratos, no artigo 74, inciso III, alínea “e”, previu a contratação direta, por inexigibilidade, do patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas, exemplos de serviços técnicos de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização.
Não mais existe a menção expressa à singularidade, o que vai ao encontro de outras alterações legais. Destaca-se o artigo 3º-A da atual redação do Estatuto da OAB, segundo o qual “os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei.” Há, pois, uma lei que prescreve a singularidade total dos serviços profissionais de advogado.
Claro que se pode aplaudir ou criticar o que resta contido no Estatuto da OAB, bem como a redação do artigo 74, inciso III, mas certo é que o legislador excluiu o que a lei anterior previa quanto à singularidade que, no caso dos serviços advocatícios, seria intrínseca a todos eles, em face de previsão legal.
Deveria ser assim?
O que dizem os especialistas
Luciano Ferraz [1] já abordou o tema, ainda em 2022, destacando o que considerou ser um grito do legislador ao não ter incluído a singularidade, além de fazer alusão ao AgRg no HC nº 669.347/SP, do STJ, relatado pelo ministro João Otávio de Noronha, que também se posicionara no mesmo sentido.
Ana Luiza, Murilo e Jorge Ulisses Jacoby Fernandes advertem, em posição posterior ao advento da Lei nº 14.133/21[2]: “a conclusão a que se chega é que, mesmo não mais sendo a singularidade do objeto requisito essencial da contratação, não foi generalizada a contratação de notórios especialistas. Satisfeitos os demais requisitos exigidos expressamente em lei, a motivação do ato deve evidenciar por que o gestor público considera que uma empresa ou profissional, já notório especialista nos termos da lei, é ‘essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.’”
Alessandro Macedo [3], ainda antes da lei, escreveu sobre o PL que já desenhava a morte da singularidade. Segundo o autor, “com a morte do antigo ‘objeto singular’, já não existem mais ‘pedras no caminho’ (lembrando o eterno Carlos Drummond de Andrade) das contratações de consultoria por inexigibilidade, à luz da nova lei de licitações.”
Risco de banalização da contratação direta
Não se nega, é claro, a ausência expressa do requisito da singularidade para os fins da inexigibilidade de licitação de serviços advocatícios: trata-se de decorrência da simples comparação entre os textos da Lei nº 8.666/93 e da Lei nº 14.133/21.
Mas, parece-nos que a exclusão da singularidade do texto legal não pode representar a banalização da contratação direta dos serviços advocatícios, em vulgarização da inexigibilidade licitatória. O professor Celso Antônio Bandeira de Mello alerta, por exemplo, para o risco da contratação direta de profissionais renomados para a execução de serviços simples [4]. Esse cenário, decerto, representa não apenas uma relativização indevida da regra da licitação pública, mas a contribuição para o sucateamento da advocacia pública e para a vulneração do princípio do concurso público.[5]
De se dizer, assim, que a contratação de serviços advocatícios não pode ser um convite ao desmente ou não criação de estruturas próprias exigíveis constitucionalmente, especialmente no caso da União e Estados (artigos 131 e 132 do texto constitucional) e, embora sem previsão constitucional, igualmente necessária nos municípios, sobretudo os de maior porte, dada a importância do histórico e da atuação que não pode oscilar ao sabor do(a) governante da ocasião.
Mas a ordem jurídica prevê, de fato, a exclusão, ao menos expressa, do requisito da singularidade; e, por isso, ao menos até o advento de uma posição clara do Supremo Tribunal Federal sobre a temática, agentes públicos que contratam diretamente serviços advocatícios não singulares não podem ser penalizados, se respeitados os demais requisitos legais – até porque as disposições legais são presumidamente constitucionais, até o momento em que há a declaração de inconstitucionalidade.
Isso principalmente a nível de improbidade administrativa, que exige não só a prática do ato ilegal, mas a ilegalidade qualificada pelo elemento subjetivo doloso da conduta. Ora, se há uma lógica legal ao menos aparente que exclui a exigência da singularidade, independentemente das discussões ora travadas, fato é que não pode um gestor público ser penalizado por não cumprir um requisito que a lei não prevê expressamente e que cuja exigência ainda é controversa tanto na jurisprudência quanto na doutrina administrativista.
Também é importante recordar que uma coisa é a leitura do STF sob o farol da lei revogada que de fato assim exigia. Isso não permite extrair, salvo melhor juízo, nenhuma conclusão no sentido de que o STF está, ainda que indiretamente, reforçando a singularidade como requisito. Esse será certamente um tema que, em breve, desafiará o STF. Mas, o julgado sob comento não é sobre a Lei nº 14.133/21.
Aceno do ministro André Mendonça
No entanto, há uma curiosidade que precisa ser destacada e que revela como um dos ministros tende a se posicionar, quando confrontado.
O ministro André Mendonça, em seu voto, aborda os dispositivos da nova lei (Lei nº 14.133/21) e pontua que: “perfilho-me ao entendimento quanto à constitucionalidade de ambos os diplomas sobre a inexigibilidade de licitação pública para contratação de advogados particulares, o que, entretanto, deve ocorrer em situações excepcionalíssimas.”
E acrescenta: “ainda, apesar de não expressamente referida na nova legislação (art. 74, inc. II, § 3º, da Lei nº 14.133, de 2021), a singularidade do serviço é requisito já sedimentado na práxis administrativa, tão pacífico que cristalizado na Súmula do Tribunal de Contas da União, no Verbete nº 39, com a seguinte redação: ‘A inexigibilidade de licitação para a contratação de serviços técnicos com pessoas físicas ou jurídicas de notória especialização somente é cabível quando se tratar de serviço de natureza singular, capaz de exigir, na seleção do executor de confiança, grau de subjetividade insuscetível de ser medido pelos critérios objetivos de qualificação inerentes ao processo de licitação, nos termos do art. 25, inciso II, da Lei 8.666/1993.’”
O ministro não precisava tratar da atual lei, mas quis fazê-lo. Certamente, um aceno de voto que pode vir; de toda sorte, há de se aguardar que o STF sedimente logo a sua jurisprudência, de modo a conferir, aos agentes públicos e aos jurisdicionados em geral, a necessária segurança jurídica.
[1] Conferir: https://www.conjur.com.br/2022-fev-24/interesse-publico-stj-singularidade-contratacao-notorio-especializado/
[2] JACOBY FERNANDES, Ana Luiza; JACOBY FERNANDES, Murilo; JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Contratação direta sem licitação na Nova Lei de Licitações. Lei nº: 14.133/2021. 11 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 134-137.
[3] Conferir: https://ronnycharles.com.br/wp-content/uploads/2021/02/ARTIGO-NOVA-LEI-DE-LICITACOES-1.pdf
[4] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio; ZOCKUN, Carolina Zancaner; ZOCKUN, Mauricio e ZANCANER, Weida. Curso de Direito Administrativo. 37 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2024, p 439-441.
[5] Sobre isso: FORTINI, Cristiana; CAVALCANTI, Caio Mário Lana; FERREIRA NETO, Oder. A possibilidade de contratação direta de advogados pela administração pública municipal segundo o STJ e a Lei de Improbidade Administrativa. Portal Sollicita, 07/03/2022.
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