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Juíza invalida dispositivo de lei que remunera whistleblowers nos EUA

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30 de outubro de 2024, 12h31

Contrariando precedentes, a juíza federal Kathryn Mizelle, do Distrito Central da Flórida, declarou inconstitucional um dispositivo da lei que permite a qualquer cidadão denunciar empresas que falsificam documentos para cobrar do governo federal mais dinheiro por serviços prestados — ou que sequer foram prestados.

Juíza declarou inconstitucional uma norma quie permite a qualquer cidadão denunciar empresas

A False Claims Act (Lei de Requisições Falsas), criada em 1863 e atualizada pelo Congresso em 1986, contém um dispositivo que viabilizou a “ação qui tam” — uma espécie de ação popular, ajuizada normalmente por empregados, que fazem o papel de whistleblowers contra empregadores.

Esse é o dispositivo em questão. Ele criou uma parceria entre o governo federal e cidadãos, que acabaram conhecidos por whistleblowers (termo que se refere a uma espécie de informante que revela práticas ilegais, imorais ou ilegítimas de empresas para com seus empregados).

Eles são, no final das contas, “delatores regiamente premiados”, porque a recompensa é normalmente contada em milhões de dólares — e porque os “delatores” são protegidos, em vez de punidos.

O sistema funciona assim: o “delator” protocola uma petição inicial na Justiça Federal, protegida por sigilo; notifica o governo, mas não a empresa denunciada no caso. O governo tem 60 dias para decidir se intervém no caso.

Se intervir, o governo assume a administração do processo — e o delator se mantém como parte da acusação. Nesse caso, o autor pode receber de 15% a 25% do valor que o governo arrecadar na ação.

Se preferir não intervir, o delator se mantém como autor único da ação. Mas a recompensa aumenta: pode receber de 25% a 30% do valor do julgamento.

De qualquer forma, é uma boa barganha para o governo, que abocanha a fatia do leão. Desde 1986, quando a lei foi renovada pelo Congresso, as “ações qui tam” geraram arrecadações extras para o governo de US$ 53 bilhões — mais de 70% dos US$ 75 bilhões que recuperou de fraudadores de programas federais no período.

Os valores da causa são determinados da seguinte maneira: o fraudador é penalizado em até três vezes o valor que o governo perdeu com cada caso de falsificação de documentos; além disso, deve pagar uma multa que varia de US$ 13.946 a US$ 27.894.

Muitas vezes, a ação termina em acordo entre o governo/delator e a empresa acusada. Esse foi o caso da empresa farmacêutica Biogen, que pagou US$ 900 milhões em um acordo com o governo federal, o estadual e o delator, em 2022, para trancar uma ação que poderia ter custado muito mais.

Proteções aos whistleblowers

O sistema de “ação qui tam” é geralmente reconhecido como “uma das principais ferramentas do governo para combater fraudes”, de acordo com a organização Anti-Fraud Coalition.

Sem a iniciativa desses delatores, o governo jamais veria a cor da maior parte do dinheiro arrecadado. Afinal, o governo federal não tem estrutura e recursos para fiscalizar (ou investigar) todas as empresas com as quais tem contrato – empresas que praticam superfaturamento, que cobram por serviços não prestados ou por produtos não entregues ou, ainda, que conspiram para fraudar o governo.

Assim, além de um “prêmio” alto aos delatores, a lei garante uma série de proteções aos whistleblowers. A norma impede, por exemplo, retaliação contra um empregado que mover uma ação. Se isso acontecer, o empregado terá direito à reintegração no cargo, pagamentos atrasados, juros e honorários advocatícios.

Confiando nesse sistema, a médica Clarissa Zafirov moveu, em 2019, uma “ação qui tam” na Justiça Federal, em que acusou seus empregadores e empresas cúmplices de falsificar e inflacionar códigos de diagnóstico para receber mais dinheiro do Medicare (o seguro-saúde dos aposentados).

O governo decidiu não interferir nesse processo, em particular, de maneira que a médica continuou como única autora da ação até agora.

Suprema Corte contrariada

Tecnicamente, não existe um problema. Mas a juíza federal Kathryn Mizelle criou um: argumentou que a médica está atuando como autoridade federal, sem ser nomeada pelo presidente, com aprovação do Senado, para representar o governo.

Isso, segundo a juíza, contraria a cláusula das nomeações da Constituição, normalmente requerida para altas autoridades federais, conforme descrito em sua decisão.

“Clarissa Zafirov determinou quais réus processar, que teorias apresentar e que provas obter. Se a ação prosseguir para grau de recurso, ela irá decidir que argumentos preservar, vinculando ainda mais o governo federal. No entanto, ninguém — nem o presidente, nem um chefe de departamento e nem um tribunal — nomeou Clarissa Zafirov para o cargo de relator. Em vez disso, confiando em um dispositivo idiossincrático da False Claims Act, Clarissa Zafirov nomeou a si mesma. Isso ela não pode fazer”, escreveu a magistrada.

A decisão da juíza contraria um precedente da Suprema Corte. Em 2023, a Corte decidiu, por 8 votos 1, a favor das “ações qui tam” — com o voto dissidente do ministro Clarence Thomas. A relatora da decisão, ministra Elena Kagan, escreveu:

“Desde o início, a False Claims Act tem sido executada como um sistema público-privado. Procuradores federais podem, é claro, processor violadores por conta própria. Mas, autores privados — chamados de relatores — podem mover uma ação, de acordo com as chamadas ações qui tam. Essas ações são movidas em nome do governo.”

A juíza não se fundamentou em qualquer precedente para tomar sua decisão. Se baseou apenas nas palavras do ministro Clarence Thomas (do qual ela fez parte da equipe de auxiliares no passado). Ainda na decisão de 2023, Thomas questionou, sem entrar em detalhes, o dispositivo qui tam, em seu voto dissidente:

“Há uma boa razão para suspeitar que a cláusula de nomeação não permite que relatores privados representem os interesses dos Estados Unidos nas ações da FCA”, ele escreveu.

Kathryn Mizelle foi nomeada juíza federal pelo ex-presidente republicano Donald Trump, em 2020, apesar de ela ser considerada “não qualificada” pela American Bar Association (ABA), por falta de experiência em julgamentos.

Ela é considerada parte do grupo de juízes federais republicanos que mantêm o esquema de judge shopping nos EUA. São juízes que estão em tribunais federais considerados de preferência para se obter uma decisão favorável para causas republicanas.

Três juízes que atuam no Texas se destacam no esquema: o juiz Matthew Kacsmaryk, o juiz Drew Tipton, ambos nomeados pelo ex-presidente Trump, e o juiz Reed O’Connor, nomeado pelo ex-presidente George W. Bush.

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