Território Aduaneiro

Engajamento em prol do comércio exterior

Autores

  • é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

    Ver todos os posts
  • é advogada aduaneira mestranda na UCB vice-presidente da Comissão de Direito Marítimo Portuário e Aduaneiro da OAB-SP membro da Comissão Nacional de Direito Aduaneiro e presidente do Comitê de Comércio e Investimento Internacional da Câmara Britânica (Britcham).

    Ver todos os posts

29 de outubro de 2024, 8h00

Todos os anos, em razão do Dia Mundial das Aduanas, a OMA (Organização Mundial das Aduanas) lança um “tema” que será utilizado como foco dos trabalhos anuais da organização. Em 2024, o tema lançado foi a promoção do engajamento, com propósito, entre aduana e seus parceiros [1].

Spacca

Neste contexto, o atual secretário-geral da OMA, Ian Saunders, publicou um posicionamento formal em que defende que “agora, mais do nunca, é essencial que as administrações aduaneiras adotem uma abordagem inovadora no seu trabalho e desenvolvam soluções que não sejam apenas baseadas no seu próprio conhecimento, experiência e sabedoria, mas que também sejam desenvolvidas coletivamente com a comunidade aduaneira, incluindo as empresas e as diversas entidades com que as Aduanas interagem na sua prática diária”. [2]

Meditando sobre o tema da OMA para 2024 e a importante mensagem de seu secretário, nos parece pertinente questionar: existe avanço sem engajamento?

Projeto da Lei Geral do Comércio Exterior: onde fica o engajamento?

Esse questionamento nos parece pertinente para guiar qualquer tema de debate jurídico. E no contexto da aduana e seus parceiros, é uma provocação que nos leva a refletir sobre a importância da colaboração ativa e comprometida para o desenvolvimento e aprimoramento dos processos aduaneiros.

Gostaríamos de utilizar a provocação para endereçar o projeto e anteprojeto de lei que pretende reformar a legislação sobre o comércio exterior, que está atualmente em tramitação.

A inciativa que, apesar do pouco tempo de existência, já vem sendo objeto de recorrentes artigos, foi abordada aqui em artigo publicado em abril. À época, o PLS 508/2024 tinha acabado de ser lançado e a preocupação era de se evitar que a oportunidade de legislar sobre o direito aduaneiro fosse desperdiçada.

Passados seis meses e tendo sido realizado extenso trabalho pelos órgãos governamentais para a substituição do texto original pela minuta elaborada pelo grupo de trabalho constituído por Receita Federal, Sindifisco, Secex e consultores do legislativo denominado Lei Geral de Comércio Exterior, o que se verifica é que o processo legislativo a ser enfrentado tem um foco bem mais restrito do que o original, ainda que mais organizado e com maior substrato técnico.

A esse respeito cabe aqui declarar que, a despeito das críticas que temos veiculado sobre a versão atual do projeto capitaneado pela Receita, é indiscutível que se trata de um texto bem redigido, com técnica adequada e que dialoga de forma positiva com temas modernos e relevantes, como as medidas em prol da facilitação do comércio.

O problema, a nossa ver, é que a iniciativa padece de representatividade, ou, utilizando as palavras do secretário-geral da OMA, de engajamento.

Observamos que a proposta atual surgiu como uma reação ao projeto de consolidação anterior, e a participação da iniciativa privada não foi considerada pelo Senado, que detinha a prerrogativa de fazê-lo. Contudo, ainda existe a possibilidade de influenciar o processo legislativo por meio da realização de audiências públicas e apresentação de emendas.

Apesar das diversas — e incisivas — tentativas da comunidade aduaneira para conseguir um lugar à mesa, o anteprojeto apresentado pela comissão governamental segue sem abordar importantes preocupações há muito reclamadas pela iniciativa privada.

O envolvimento do setor privado deu-se de forma marginal. Em um primeiro momento, a Receita conferiu prazo de uma semana para que os interessados apresentassem propostas de redação de dispositivos que tivessem relação com uma lista de temas apresentados em forma de estrutura preliminar do Livro I do projeto — tarefa complexa e impossível de ser plenamente executada. Ainda assim, diversas propostas foram submetidas, sem nenhuma devolutiva sobre o que foi recebido, incorporado e descartado.

Por fim, antes de submeter o projeto final à apreciação do relator no Senado, nova oportunidade de contribuição foi dada. Desta vez, o prazo foi um pouco maior e com veiculação da minuta do texto do anteprojeto.

Ainda assim, a forma e o prazo foram considerados insuficientes para que uma real discussão, revisão e ajustes pudessem ser realizados com a finalidade de refletir preocupações e necessidades dos operadores de comércio exterior. E, novamente, não houve qualquer publicidade quanto ao universo total de propostas recebidas e sobre se houve, de fato, análise e aproveitamento dessas para a versão final.

Para além do fato de que um projeto formulado apenas por funcionários governamentais dificilmente consiga refletir interesses e anseios de outros atores, o que preocupa é que, por mais bem intencionados e tecnicamente preparados que os funcionários do alto escalão do Executivo envolvidos sejam — e, podemos afirmar com convicção que são — a falta de diferentes visões e, principalmente, a distância do alto escalão governamental da realidade cotidiana das fronteiras, onde os problemas e desafios mais importantes se encontram, se reflete na proposta apresentada.

Cabe, neste contexto, uma ressalva relevante. O setor privado buscou por diversas vias um lugar à mesa para a formulação do anteprojeto, mas o fez de modo desarticulado. Ao tratarmos da necessidade de engajamento para construção de soluções que atendam aos interesses coletivos, é necessário reconhecer que além da mudança de postura por parte do governo, faz-se necessário que os diversos atores privados unam forças e se apresentem como uma verdadeira frente — o que não foi visto neste momento.

Existe avanço sem engajamento?

Considerando os debates atuais sobre o tema e a impossibilidade de que um artigo desta extensão se aprofunde de forma técnica e justa sobre o conjunto total de dispositivos propostos, o que se propõe aqui é tecer provação sobre a relevância do engajamento e de que maneira a sua não ocorrência compromete o resultado da proposta apresentada.

Nesse sentido, um primeiro ponto a se destacar é o forte componente político da proposta.

Apesar de que compromissos e iniciativas relevantes são finalmente endereçadas, isto é feito de forma vaga e sem a imposição de forma e prazos de execução. Consequentemente, as vitórias em termos de facilitação do comércio e modernização da aduana são relativas, tratando-se apenas de promessas e não regras efetivas. Ou seja, continua-se dependendo da vontade política da Receita. Caso não haja regulamentação, os avanços propostos não sairão do papel.

Um exemplo disso é a questão do erro escusável, tema tratado na coluna de 21 de fevereiro deste ano. A questão, que já era endereçada pelo Gatt 1947, pelo Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC), pelo Acordo de Comércio e Cooperação Econômica entre Brasil e Estados Unidos (Atec) e pela Convenção de Quioto Revisada (CQR), também foi mencionada no anteprojeto da Lei Geral.

Ocorre que nada se avançou, já que a nova lei se limita a prever, em suas diretrizes, que tratamento diferenciado e proporcional será definido a posteriori e por meio de legislação específica, o que não agrega nada em termos práticos. A eventual vigência deste artigo não modifica o quadro normativo atual, limitando-se a servir de esperança aos interessados.

Outro exemplo são as soluções de consulta antecipada, que não foram devidamente adequadas às exigências dos acordos internacionais assinados pelo Brasil ao não preverem a possibilidade de pedido de revisão da decisão da autoridade por escrito e a, igualmente, deixarem para momento posterior questões de prazo e forma.

Um último exemplo diz respeito à gestão de risco, que é o principal pilar de modernização aduaneira. Na proposta apresentada, além de não haver uma definição clara do que é essa ferramenta, dispõe-se que tanto critérios quanto análises de risco serão completamente confidenciais. Em que pese fazer sentido que haja cuidado e reserva quanto ao segundo ponto, parece equivocado o sigilo sobre os critérios.

Afinal, como se pode promover um modelo de compliance aduaneiro e a disseminação de uma cultura de conformidade sem que os parâmetros a serem aplicados sejam de pleno conhecimento? E mais ainda, como haverá a promoção de um Estado de Direito, nos moldes constitucionalmente garantidos se os jurisdicionados não sabem por que critérios se guia a autoridade em suas atividades vinculadas?

A nosso ver, os critérios a serem utilizados para fins de aplicação de gestão de risco — ainda que passíveis de modificação e atualização ao longo do tempo, devem ser objetivos e públicos, possibilitando que os sujeitos intervenientes conheçam os parâmetros aplicáveis e se adequem para o seu devido cumprimento.

Reforça essa visão de falta de transparência e objetividade o fato de que nos deparamos com quase 60 menções a regulamentações a posteriori pela Administração. Ora, considerando que o projeto conta com 168 artigos, e que o objetivo da Lei é ser uma “lei geral” de aplicação transversal, a quantidade de remissões e de delegações ao Executivo nos parece desarrazoada e, principalmente, temerária.

Para que serve uma lei geral?

A questão do objetivo da Lei também é ponto que precisa ser endereçado, visto que a contraposição entre a exposição de motivos (justificativa) elaborada pelo grupo de trabalho e o texto proposto traz alguns conflitos.

Já na largada, apresenta-se o anteprojeto como tendo o objetivo de estabelecer “normas gerais para o desempenho das atividades de regulação, fiscalização e controle sobre o comércio exterior de mercadorias” diante da necessidade de se responder à necessidade de criação de uma “lei principiológica para racionalizar e modernizar o arcabouço normativo brasileiro nessa área”.

Ora, em que pese se tratar de objetivo e justificativa perfeitamente alinhados às demandas da comunidade aduaneira, o que o texto entrega é algo distante de princípios e normas gerais de racionalização.

No Livro I, destinado às disposições gerais, percebe-se a intenção de dispor sobre definições, diretrizes, sujeitos e regras de facilitação. O que, a nosso ver, se alinha com o objetivo indicado e que, apesar de lacunas — esperadas e naturais, em se tratando de anteprojeto —, possui estrutura sólida e que permite acomodações e ajustes para dar o tom do que se espera de uma lei desta envergadura.

A exceção reside na parte referente à Administração Aduaneira enquanto sujeito do comércio exterior. Este capítulo destoa dos demais ao dar especial ênfase aos poderes e direitos da fiscalização, ao passo que as disposições sobre os demais sujeitos são sucintas e desprovidas de qualquer menção a direitos e prerrogativas. Ainda que seja pertinente tratar de direitos de fiscalização, necessários à proteção dos interesses nacionais, a discrepância do texto ao tratar da Administração e dos demais sujeitos é, certamente, um ponto de atenção.

Na mesma toada, o Livro III, que possui como tema central os regimes aduaneiros especiais, parece dissonar do propósito de lei geral. Se estes nada mais são do que regimes de exceção, não parece apropriado serem abordados em uma lei geral. Mais ainda, serem o objeto de mais de 40% dos artigos da referida norma.

O que se espera de uma lei geral?

O que queremos chamar a atenção neste texto por meio dos exemplos e pontos indicados é que, sem o engajamento de todos os interessados, qualquer normal pode facilmente ser afastar de sua finalidade.

O anteprojeto é bem escrito, tecnicamente pensado e possui muitos dos elementos centrais considerados necessários.

Se quisermos discutir pontos específicos e selecionados do universo aduaneiro que precisam de atualização legislativa ou mesmo de um marco legal atual, considerando que o nosso estimado Decreto-Lei nº 37/66 já não mais cumpre o seu papel, o anteprojeto pode ser uma resposta.

Nos filiamos à corrente que vê o Código Aduaneiro como a meta real e importante, ainda que esteja longe de estar em condições de ser concretizada. Portanto, ou se desacelera o projeto de lei para que haja tempo de maturação e elaboração de uma lei que trate de todos as disciplinas aduaneiras relevantes, ou se abraça a ideia de uma Lei Geral que exerça, de fato, tal papel.

Independente da decisão, o fato é que o anteprojeto demanda maiores debates e aperfeiçoamento que necessariamente devem ser efetuados com engajamento para refletir as promessas de sua justificativa.

Ainda há tempo

Em que pese a forma restrita e segregada com que o projeto da Lei Geral de Comércio Exterior vem sendo conduzida até o presente momento, as críticas e as provocações aqui tecidas têm como único objetivo promover a reflexão de que ainda há tempo para que os devidos ajustes de curso sejam realizados.

A nosso ver, o primeiro passo para que isso ocorra é a democratização do processo, permitindo que a comunidade aduaneira, por meio de representantes-chave, possa participar e ter voz junto ao Legislativo antes do início da tramitação no Congresso.

Há que fortalecer e ampliar as disposições do Livro I, principalmente no que concerne aos itens do glossário, às diretrizes e, principalmente, aos direitos e deveres dos sujeitos do comércio exterior.

Afinal, qual o papel de uma lei principiológica que sequer traz as prerrogativas dos jurisdicionados?

Por fim, e por mais espinhoso que pareça, é imperativo que o tema de infrações e penalidades seja endereçado. Naturalmente, não se espera que a Lei Geral reescreva o sistema infracional aduaneiro brasileiro, mas, se todos reconhecem que o mesmo está defasado e não atende mais às necessidades do Estado e dos operadores, algo precisa ser feito a respeito.

Nossa sugestão é no sentido de que as diretrizes e princípios gerais já semeiem a mudança que queremos, ainda que de forma tímida e superficial, mas que permita a abertura do caminho que precisamos pavimentar nos próximos anos. Afinal de contas, leis gerais têm o objetivo de harmonizar o tratamento de determinada matéria, garantindo uma base comum para regulamentações mais específicas.

E, nesse sentido, parece imperativa a relativização da regra de responsabilidade objetiva para implementação, no ordenamento, do capítulo 3.39 da CQR e do inciso III do §3º do artigo 6 do AFC e alinhamento do Brasil às melhores práticas internacionais, permitindo que se utilize da análise do elemento subjetivo para que a sanção tenha o efeito dissuasivo e leve à conformidade.

Se essas pequenas, mas fortes, sugestões forem abraçadas, temos convicção de que o projeto de Lei Geral para o comércio exterior poderá fazer jus aos objetivos indicados na justificativa e realmente trazer a racionalização e a modernização de que todos esperam.

Para tanto, repisamos nossa crença de que a modernização e avanço do comércio exterior dependem de um maior engajamento dos envolvidos, sendo necessário, de um lado, maior comprometimento e atenção dos Poderes Executivo e Legislativo e, de outro, maior organização e unificação do setor privado.

_______________________

[1] No original: “Customs Engaging Traditional and New Partners with Purpose”.

[2] SAUNDERS, Ian. Customs Engaging Traditional and New Partners with Purpose — Some thoughts about the theme of the year. 2024. Disponível aqui

Autores

  • é sócia do Veirano Advogados, doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada e consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e ex-conselheira titular do Carf.

  • é mestranda em Direito (UCB), advogada aduaneira, vice-presidente da Comissão de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro da OAB-SP, membro da Comissão Nacional de Direito Aduaneiro e presidente do Comitê de Comércio e Investimento Internacional da Câmara Britânica (Britcham).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!