Desafios em ofertas hostis: o caso Hypera e EMS
28 de outubro de 2024, 8h00
As ofertas hostis em fusões e aquisições, como no caso entre Hypera e EMS, trazem à tona um complexo desafio corporativo que envolve não apenas a proteção dos acionistas, mas também a preservação de uma visão estratégica de longo prazo. A oferta chega em momento no qual o valor de mercado das companhias abertas, em geral, encontra-se extremamente depreciado, e, no caso em apreço, as ações da Hypera sofreram com as expectativas de queda dos resultados no curto prazo.

A decisão do conselho da Hypera de rejeitar a oferta da EMS, rotulando-a de hostil, remete à necessidade de equilibrar os interesses dos acionistas seja com relação à inadequação do valor oferecido, bem como com a necessidade de se compatibilizar a oferta com os instrumentos de governança corporativa, de forma a defender os acionistas da companhia. Esse movimento, amplamente conhecido no mercado de capitais, faz eco a precedentes importantes da jurisprudência de Delaware, que oferecem uma base teórica relevante para a análise desse tipo de disputa.
Delaware consolidou-se ao longo dos anos como uma das jurisdições mais importantes para decisões societárias, especialmente em casos de ofertas hostis. Dois precedentes marcantes — Unocal v. Mesa Petroleum e Revlon v. MacAndrews & Forbes — delineiam o caminho que conselhos de administração podem seguir ao enfrentar tentativas de aquisição indesejadas. No caso Unocal, a corte permitiu que os conselhos adotassem defesas desde que demonstrassem que a oferta representava uma ameaça à empresa e seus acionistas.
A decisão da Hypera de rejeitar a oferta da EMS parece refletir essa lógica. Argumentos como a falta de sinergia estratégica entre os portfólios de ambas as empresas, a diferença nas práticas de governança e a subavaliação do valor de mercado da Hypera reforçam a tese de que a proposta poderia ser prejudicial aos acionistas no longo prazo, por não captar o preço justo.
A análise econômica pode fortalecer esses argumentos, como destacado por Robert Pindyck e Daniel Rubinfeld em Microeconomics. No capítulo sobre poder de mercado, os autores discutem como fusões podem gerar uma concentração significativa de poder, prejudicando a concorrência e criando barreiras de entrada para outras empresas. No caso Hypera vs. EMS, a aquisição da Hypera poderia levar a um aumento no poder de mercado da EMS, o que justificaria a rejeição da oferta por parte do Cade diante dos temores de prejuízos à concorrência e à dinâmica de mercado.
Argumentos sólidos e a busca por alternativas
Os deveres fiduciários do conselho, como descrito no livro Business Organizations: Cases and Materials (p. 827), destacam que os administradores têm a obrigação de agir no melhor interesse dos acionistas e da empresa, especialmente em situações de aquisição. Essa responsabilidade é crucial, pois exige que o conselho proteja os acionistas minoritários e assegure que o valor da empresa seja maximizado antes de tomar qualquer decisão de venda ou fusão.
Com base na análise das informações disponíveis, a Hypera parece ter seguido os princípios estabelecidos nos casos de Blasius Industries, Inc. v. Atlas Corp. e Williams Companies Stockholder Litigation. De acordo com Blasius, qualquer interferência na capacidade dos acionistas de tomar suas próprias decisões precisa ser justificada por razões convincentes. A Hypera apresentou argumentos sólidos ao rejeitar a proposta da EMS, alegando incompatibilidades estratégicas e de governança, além de uma subavaliação financeira da empresa.
No contexto de Williams Companies Stockholder Litigation, que reafirma a obrigação de maximizar o valor para os acionistas, a Hypera justificou sua decisão como um esforço para proteger o valor da empresa a longo prazo. Esses argumentos, relacionados ao portfólio de medicamentos e à estrutura de governança corporativa, sugerem que a Hypera está focada em agir no melhor interesse dos acionistas, alinhando suas decisões com os precedentes legais de Delaware.
Já o precedente de Revlon estabelece que, em casos em que a venda da empresa se torna inevitável, o conselho tem o dever de maximizar o valor para os acionistas. Embora a Hypera tenha rejeitado a proposta da EMS, a busca por alternativas, como possíveis tratativas com Eurofarma ou Aché, indica uma adesão a esse princípio. O conselho da Hypera, ao explorar alternativas que possam oferecer condições mais vantajosas aos acionistas, busca manter o foco nos deveres fiduciários com a companhia e os acionistas.
Medidas preventivas e estratégias de precificação
Apesar do número reduzido de ofertas públicas, especialmente as hostis, a prática tem mostrado que movimentos de acionistas minoritários, com o apoio de conselheiros de administração, têm contribuído para o aumento do valor ofertado nas OPA. Um exemplo recente é o caso da Cielo, em fevereiro de 2024: inicialmente, foi oferecido R$ 5,35 por ação, mas a rejeição dos acionistas levou à elevação para R$ 5,60. No caso da incorporação da Smiles pela Gol, o aumento foi ainda mais expressivo, passando de R$ 22,32 para R$ 27,00 por ação.
Além disso, defesas contra takeovers hostis, como discutido no livro Securities Regulation: Cases and Materials (p. 870), indicam que a empresa pode adotar medidas para prevenir aquisições que subvalorizam a companhia ou que não sejam estratégicas. A Hypera, ao apontar a diferença nas práticas de governança e a incompatibilidade estratégica com a EMS, está usando uma dessas medidas, garantindo que qualquer transação futura seja mais vantajosa para a companhia e seus acionistas.
Outro ponto crucial está relacionado às estratégias de precificação. No capítulo sobre Pricing with Market Power do livro Microeconomics de Pindyck e Rubinfeld, os autores abordam como empresas com poder de mercado podem utilizar discriminação de preços para maximizar seus lucros. No caso de uma fusão entre Hypera e EMS, pode-se especular que a nova entidade, com maior controle de mercado, poderia adotar práticas de precificação menos competitivas, o que seria prejudicial para os consumidores.
Lei das S.A., regras do Novo Mercado e a possibilidade de arbitragem
No Brasil, embora não haja um corpo de precedentes tão extenso quanto em Delaware, a Lei das S.A. (Lei 6.404/1976) oferece uma base sólida para a defesa contrapropostas hostis. O dever fiduciário dos conselheiros é claro: eles devem sempre agir no melhor interesse da companhia e de seus acionistas. O conselho da Hypera, ao rejeitar a oferta da EMS, está, de acordo com essa perspectiva, exercendo sua responsabilidade fiduciária. Eles demonstraram preocupação com a preservação do valor da empresa ao indicar que a proposta da EMS subestimava significativamente o valor da companhia, além de apontar a incompatibilidade entre as duas empresas em termos de governança e estratégia.

Adicionalmente, caso a EMS decida seguir com uma oferta pública de aquisição (OPA) diretamente aos acionistas, as regras do Novo Mercado e do estatuto social asseguram que todos os acionistas devem ser tratados de forma igualitária. Os mecanismos previstos no Novo Mercado visam garantir transparência e equidade no processo de aquisição, princípios que também são refletidos nas diretrizes de Delaware. Contudo, no contexto brasileiro, um ponto que merece atenção é a possibilidade de utilização de arbitragem obrigatória nas disputas entre empresas listadas no Novo Mercado da B3, como é o caso da Hypera.
A arbitragem, embora elogiada por sua celeridade e confidencialidade, apresenta desafios em situações de ofertas hostis. Um dos principais problemas é a falta de transparência, que limita o acesso dos acionistas e do mercado a informações cruciais durante uma disputa. Enquanto processos judiciais são públicos e permitem que todos acompanhem as razões por trás das decisões, a arbitragem cria um ambiente fechado, onde as partes envolvidas controlam o fluxo de informações. Em uma aquisição hostil, essa falta de transparência pode prejudicar a análise crítica do mercado e dificultar a defesa aberta dos interesses dos acionistas.
Assim, o caso Hypera e EMS vai além de uma simples disputa de controle acionário. Ele expõe os desafios estruturais e legais que empresas brasileiras enfrentam ao lidar com ofertas hostis e levanta questões importantes sobre o papel da arbitragem em grandes fusões. Em última análise, esse caso reforça a necessidade de se equilibrar proteção acionária, governança corporativa e transparência em um mercado cada vez mais competitivo e globalizado.
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