Opinião

Tema-RG 1.338/STF: tese desfavorável; ratio, nem tanto

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26 de outubro de 2024, 7h03

O STF (Supremo Tribunal Federal) concluiu o julgamento do Tema nº 1.338 da sua repercussão geral (RE 1.489.562). Estava em jogo saber se cabe ação rescisória para conformar coisas julgadas à modulação de efeitos operada pela Corte no Tema-RG nº 69, relativo à “tese do século”.

Essa complexidade surge em decorrência do indesejável, mas lamentavelmente frequente, descasamento cronológico entre o julgamento de mérito de um leading case e a decisão sobre a respectiva modulação de efeitos, normalmente suscitada via embargos de declaração opostos pela parte derrotada no julgamento de mérito.

O mérito da tese do século foi julgado em março de 2017, favoravelmente aos contribuintes, assentando-se a exclusão do ICMS da base de cálculo de PIS/Cofins. Em maio de 2021, o STF então modulou os efeitos da decisão, restringindo-os ao período posterior a março de 2017, ressalvadas as ações já ajuizadas até essa data de corte.

Esse intervalo entre julgamento de mérito e modulação mostrou-se extenso o bastante para que, dentro dele, novas ações fossem ajuizadas por contribuintes até então inertes, e tramitassem até o respectivo trânsito em julgado. Sobrevindo, na sequência, a modulação no leading case, instaurou-se a polêmica ora dirimida no Tema-RG 1.338.

Por uma ampla maioria, o Tema-RG 1.338 chancelou a cabimento da ação rescisória. A tese aprovada tem a seguinte redação: “Cabe ação rescisória para adequação de julgado à modulação temporal dos efeitos da tese de repercussão geral fixada no julgamento do RE 574.706 (Tema 69/RG)”.

Coincidentemente, aliás, o STJ acabou de julgar a mesmíssima controvérsia no seu Tema Repetitivo 1245 e o fez no mesmo sentido (durma em paz, segurança jurídica).

Judicialização da ‘tese do século’

Na prática, fica assim: os contribuintes que judicializaram a “tese do século” após março de 2017 e alcançaram o trânsito em julgado favorável antes de maio de 2021, assegurando-lhes o direito perseguido prospectiva e retroativamente ao quinquênio anterior ao ajuizamento, agora terão esse direito mutilado e restrito ao período pós-março de 2017. Para tanto, basta que a União tenha ajuizado uma ação rescisória no prazo legal de dois anos após o trânsito em julgado do acórdão rescindendo.

Spacca

O Tema-RG 1.338, portanto, teve um desfecho obviamente desfavorável aos contribuintes enquadrados nesta janela da tese do século. Mas, o precedente firmado enseja ilações alvissareiras para outros grupos possíveis de contribuintes envolvidos em outras controvérsias tributárias.

A matéria subjacente ao Tema-RG 1338 envolve um interessante embate entre outros temas já dirimidos sob repercussão geral pelo Supremo.

De um lado, temos o Tema-RG 1361, de outubro de 2014, em que a Corte assentou o descabimento da rescisória de julgado que, à sua época, estava alinhado ao entendimento do STF então vigente. É dizer, se o acórdão rescindendo convergisse com a orientação então vigente no Supremo, não se configurava violação à norma expressa, para fins do artigo 966, V do Código de Processo Civil (CPC.) O Tema-RG 136 ecoava, aliás, a antiga Súmula STF nº 3432, que já afastava a rescisória se a matéria julgada no acórdão rescindendo fosse, ao menos, controversa à sua época.

De outro lado, há o Tema-RG nº 7333, de maio de 2015, em que o mesmo Supremo assentou o cabimento de ação rescisória para desfazer, retroativamente, coisa julgada colidente com posterior julgamento do STF que haja declarado inconstitucionalidade de norma sob controle concentrado ou regime de repercussão geral.

Não há superação do entendimento de mérito

Pois bem. No Tema-RG 1338, o Supremo afastou a incidência da Súmula 343 e do Tema-RG 136, entendendo-os inaplicáveis à hipótese em julgamento por não ter havido propriamente uma superação de entendimento. No voto condutor, o ministro relator Roberto Barroso fixa as seguintes premissas para aplicação desses enunciados:

– O STF tem entendimento ‘X’, no momento 1;
– Há um trânsito em julgado com o entendimento ‘X’, no momento 2;
– O STF supera o entendimento “X”, no momento 3.

É nesse cenário fático que incide o Tema-RG 136, ou seja, é neste cenário que se fecham as portas da ação rescisória.

A nosso ver, o Supremo está a concluir que a modulação de efeitos não representa uma superação, nem mesmo parcial, do entendimento de mérito, mas apenas, talvez, uma integração do julgamento de mérito. E, se não há superação de entendimento, não se completam as etapas conceituais acima para que o Tema-RG 136 ganhe protagonismo.

Nas palavras do ministro relator, “não houve alteração de orientação, porque a primeira vez que o plenário do STF se manifestou especificamente sobre o tema da modulação de efeitos foi ao apreciar os embargos de declaração no RE 574.706″; por conseguinte, “inexiste, na espécie posterior superação de precedente a implicar óbice ao cabimento de ação rescisória”.

O argumento soa-nos algo complicado. Por que o entendimento prevalecente à época do acórdão rescindendo precisa ser posteriormente superado para que não caiba ação rescisória? Ora, se o entendimento segue inalterado — leia-se, sem posterior superação —, então com mais razão ainda a rescisória há de ser incabível. O Tema-RG 136 recusa a ação rescisória “ainda queocorra posterior superação do precedente, e nãodesde queocorra essa superação.

Análise de virtudes ou fragilidades técnicas

Nosso interesse aqui, porém, não será aprofundar uma análise das virtudes ou fragilidades técnicas da decisão, mas sim as suas possíveis implicações. Para tanto, o importante a reter é que o racional hermenêutico adotado no Tema-RG 1338 não decorre — eis o fundamental — de nenhuma peculiaridade da modulação de efeitos operada no Tema-RG 69; ao contrário, constrói-se a partir de uma característica perene de qualquer modulação, a saber, o seu necessário “ineditismo”. Afinal, o Supremo sempre delibera uma eventual modulação de efeitos de seu julgado uma única vez; quando o faz, portanto, é porque nunca o havia feito. É sempre assim.

Se a modulação de efeitos do Tema-RG 69 não supera parcialmente o respectivo julgamento de mérito anteriormente realizado, nenhuma outra modulação tampouco superará.

Essa constatação é muito relevante. Embora o Tema-RG 1.338 seja vinculante só para ações rescisórias envolvendo o Tema-RG 69, vale certamente como um precedente valioso — decisivo, diremos — para outras hipóteses quaisquer de modulação de efeitos.

A tese fixada é restrita ao Tema-RG 69 e nem poderia ser diferente, afinal o caso concreto sob julgamento no RE 1.489.562 tratava da modulação deliberada neste tema da repercussão geral. Mas a ratio do julgado pode se espraiar para além das fronteiras do caso concreto.

Tese jurídica ou ratio dacidendi

Segundo a boa doutrina processualista, “por serem fenômenos conceitualmente distintos, a ‘tese jurídica’ e a ratio decidendi têm funcionalidades diversas no sistema processual. A ratio ganha relevância quando se trata de resolver casos que não são absolutamente iguais àquele que deu origem ao precedente.

E dentre as hipóteses passíveis de receber o influxo da ratio do Tema-RG 1.338 podem estar algumas favoráveis aos contribuintes. Isso ocorrerá sempre que o julgamento de mérito da repercussão geral favorecer o Fisco, e a subsequente modulação de efeitos vier como prêmio de consolação aos contribuintes.

Já há situações como esta. Em outubro de 2020, por exemplo, o STF julgou o Tema-RG 985, assentando a incidência da contribuição previdenciária sobre o terço constitucional de férias. Muitas ações individuais país afora foram então julgadas nesse sentido, e transitaram em julgado.

Em junho deste ano, porém, o mesmo STF, instado a tanto via embargos declaratórios, modulou os efeitos daquele seu acórdão, assegurando a não-incidência da contribuição, até outubro de 2020, aos contribuintes que já tinham judicializado o tema.

Como ficam, então, os contribuintes que, antes desse período, ajuizaram ações para afastar a contribuição previdenciária sobre o terço de férias, e que tiveram trânsito em julgado desfavorável antes de junho de 2024?

Na nossa visão, o Tema-RG 1338 abre a possibilidade de uma ação rescisória para ajustar a decisão judicial anterior e garantir que a contribuição não seja aplicada ao período anterior a outubro de 2020. Nada justifica conclusão diversa.

 


1 “Não cabe ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente”.

2 “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.

3 “A decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente. Para que tal ocorra, será indispensável a interposição de recurso próprio ou, se for o caso, a propositura de ação rescisória própria, nos termos do art. 485 do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, art. 495)”.

4 ALVIM, Teresa Arruda; MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. Sobre a fixação da tese na repercussão geral. Disponível em  https://www.migalhas.com.br/depeso/394608/sobre-a-fixacao-da-tese-na-repercussao-geral (acessado em 18.10.24).

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