Revisar ou não revisar? O que a Lei 14.879 significa para a execução do seu contrato
25 de outubro de 2024, 16h20
Muitas dúvidas permanecem mesmo mais de três meses após a promulgação da Lei 14.879/2024, que alterou as regras do Código de Processo Civil (CPC) relativas às cláusulas de eleição de foro, no dia 4 de junho deste ano. Enquanto a incerteza permanece, a maior questão que surge é: já é o momento de ser proativo e revisar os contratos firmados ou é mais prudente aguardar o desenrolar de novas definições sobre a alteração legal?
A nova legislação altera apenas um dos parágrafos do artigo 63 do CPC (§1º), incluindo também um parágrafo adicional (§5º). Com isso, a redação do artigo reflete a positivação de um novo critério para eleição de foro: a pertinência. Têm-se que há pertinência quando houver uma relação com o domicílio ou residência das partes ou com o local da obrigação. Dessa forma, existe a possibilidade de o julgador denegar de ofício a sua competência conforme a análise da pertinência, mesmo no caso de eleição de foro pelas partes¹.
No âmbito dos contratos nacionais, tal alteração trouxe uma grande discussão sobre estar na contramão de recentes evoluções na liberdade contratual, nos termos da própria Lei de Liberdade Econômica. Do ponto de vista da utilização da arbitragem, a alteração também trouxe preocupações, considerando a tendência das partes de escolherem foros para as medidas antecipatórias ou executórias previstas na Lei de Arbitragem² em centros econômicos mais sofisticados e com maior conhecimento e prática com o instituto da arbitragem.
Indefinições
Assim, para se entender a alteração, pode-se pensar, por exemplo, em um contrato em que uma das partes detenha domicílio no Rio de Janeiro e a outra parte em Manaus. A execução do contrato, por outro lado, ocorre em Fortaleza. As partes, antes do advento da lei, escolheram o foro de São Paulo, por entender que este seria mais célere ou teria maior especialização na matéria contratual. Com o advento da lei, a escolha das partes passa a ser ineficaz, e o juiz paulista denegará a sua competência. Com isso, o que acontece a seguir? A ação judicial poderá ser ajuizada tanto no Rio de Janeiro, em Manaus ou em Fortaleza? Fato é que as partes, quando da conclusão do contrato, sequer cogitaram tal possibilidade.
Ainda mais preocupante é a seguinte hipótese: e se uma das partes detém filiais em São Paulo, isso alteraria o entendimento do juízo sobre a sua competência? Ou ainda, e se a execução do contrato fosse distribuída em diversos estados? Nenhum destes temas é esclarecido pela alteração legal.

Os tribunais nacionais já começam a engatinhar na aplicação da inovação legal. Foram 27 decisões tratando da aplicação da nova lei, segundo as decisões já publicadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, apenas no mês de setembro de 2024. Em algumas destas, as partes envolvidas já começaram a testar essas teorias.
No agravo de instrumento de nº 2279638-30.2024.8.26.0000³, por exemplo, uma das partes se tratava de sociedade de advogados. Apesar do foro de São Paulo não se tratar do domicílio de qualquer das partes, a consideração de que a sociedade de advogados atua em todo o território nacional, e que patrocinava processos neste estado, foi suficiente para a manutenção da competência territorial. Não foi destacada, na decisão, se a efetiva execução do contrato de prestação de serviços tratava da cidade de São Paulo.
Já no agravo de instrumento de nº 2190592-30.2024.8.26.0000⁴, a agravante usou o argumento de que alugava imóvel em São Paulo, sendo este seu escritório comercial, para justificar a manutenção da competência. Tal argumento, entretanto, não foi suficiente, não tendo o juízo aceitado este elemento como atraindo a competência ao foro paulista.
Marco temporal
O que parece já estar esclarecido, ao menos provisoriamente, é a definição do marco temporal para aplicação da lei, o qual está sendo apontado como a data da distribuição da ação. Isto é, tendo a ação judicial sido distribuída após a alteração legislativa, haverá a sua aplicação. A data em que foi firmado o contrato não tem qualquer relevância nesta análise. Esse é o entendimento proferido, por exemplo, no agravo de instrumento de nº 2269882-94.2024.8.26.0000⁵, de relatoria do Desembargador Souza Lopes, o qual manteve a declinação de competência com base no artigo 63, §1º, arguindo que a distribuição da ação teria sido realizada após a publicação da lei. Isto é, considerou como marco temporal para aplicação da declinação de competência o momento da distribuição da ação, e não o contexto temporal em que a cláusula foi firmada entre as partes.
Portanto, todos os contratos firmados com cláusula de eleição de foro que não tenha pertinência com o domicílio das partes ou a execução do contrato, não importando a data da sua assinatura, terão a sua cláusula de eleição de foro considerada ineficaz, deixando em aberto o juízo competente, e ficando às partes sujeitas a sofrerem ações judiciais em diversas localidades.
Conclusão
Dessa forma, a resposta segura para a pergunta inicial é: sim. A revisão das cláusulas de eleição de foro é essencial para que haja segurança jurídica entre as partes contratantes, bem como ausência de benefício de uma das partes em detrimento da outra.

Afinal, caso o seu contrato tenha uma cláusula com foro considerado aleatório pelo juízo inicialmente apontado como sendo o competente, a parte que desejar iniciar ação judicial terá liberdade para decidir em qual dos demais juízos com pertinência, do ponto de vista legal, esta demandará. Isto é, se há pertinência com a cidade A e B, e o contrato prevê a cidade C, em tese, há liberdade ao autor da ação de escolher livremente entre A e B. Com a revisão da cláusula contratual e a realização de aditivo contratual, as partes poderão definir de antemão entre cidade A e B, trazendo maior segurança jurídica e evitando estratégias processuais que possam beneficiar uma parte em detrimento da outra.
Por fim, cabe destacar como esta alteração pode influenciar em cláusula compromissória, em que as partes escolhem pela resolução dos seus litígios pela via da arbitragem. Em cláusulas arbitrais, são definidas: a câmara de arbitragem responsável pela administração do litígio, a sede da arbitragem, e o foro aplicável para as medidas assecuratórias ou de urgência e executórias da arbitragem, nos termos da Lei de Arbitragem. Quanto à escolha da câmara de arbitragem e também da sede da arbitragem, considerando a sua autonomia em relação ao Poder Judiciário, não se deve esperar qualquer alteração diante da Lei 14.879. Em relação ao foro aplicável, entretanto, ao que se espera, este poderá sofrer as mesmas consequências destacadas acima.
Assim, passados pouco mais de três meses da vigência da Lei 14.789, cabe aos contratantes e contratados avaliarem os seus contratos e cláusulas de resolução de disputas, de forma a analisar: no caso concreto, e a partir das possibilidades existentes de pertinência, se a revisão dos seus contratos é ou não pertinente.
Notas de rodapé
[1] Destacamos que existirão particularidades nos casos de relações de consumo ou trabalhistas, pelo que o presente artigo se concentrar em relações civis e paritárias.
[2] LEI Nº 9.307, DE 23 DE SETEMBRO DE 1996.
[3] Processual. Mandato. Protesto interruptivo de prescrição. Insurgência do autor contra decisão que, de ofício, declarou a incompetência do juízo. Prevalência da cláusula de eleição de foro, pois não se entrevê, por ora, abusividade ou prejuízo à defesa. Artigo 63, do CPC e súmula n. 335, do STF. Processo digital. RECURSO PROVIDO. (TJSP; Agravo de Instrumento 2279638-30.2024.8.26.0000; Relator (a): Mourão Neto; Órgão Julgador: 35ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 28ª Vara Cível; Data do Julgamento: 30/09/2024; Data de Registro: 30/09/2024)
[4] AGRAVO DE INSTRUMENTO. Execução de Título Extrajudicial. Foro de eleição. Decisão pela qual declinada da competência pelo MM. Juízo de Direito da 38ª Vara Cível do Foro Central da Comarca da Capital do Estado de São Paulo. Determinação de remessa à Comarca de Água Boa/MT. Insurgência da Exequente. Não cabimento. Observância das alterações promovidas pela Lei n.º 14.879/2024 na Lei Civil Adjetiva. Contrato que elegeu como foro a Comarca de São Paulo, mesmo sendo diversos os domicílios das partes (Itajaí/SC e Água Boa/MT) e o cumprimento da obrigação (Itajaí/SC). Reconhecimento de abusividade da cláusula de eleição de foro e de incompetência do juízo de origem (CPC, art. 63, §§ 3º e 5º). A locação de conjunto comercial na capital paulista não autoriza reconhecimento de domicílio à luz das regras previstas no art. 75, inciso IV e § 1º, do CPC. Negócio jurídico que não foi praticado neste local. Decisão mantida. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJSP; Agravo de Instrumento 2190592-30.2024.8.26.0000; Relator (a): Ernani Desco Filho; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 38ª Vara Cível; Data do Julgamento: 25/09/2024; Data de Registro: 25/09/2024)
[5] *COMPETÊNCIA – Insurgência contra decisão que declinou, de ofício, a competência territorial – Cláusula de eleição de foro – Inexistência de relação de consumo – Processo ajuizado após o advento da Lei nº 14.879/2024, que modificou o art. 63 do CPC – Ausência de pertinência com o domicílio ou a residência de qualquer das partes ou com o local da obrigação – Possibilidade de reconhecimento de ineficácia da cláusula de ofício.– Pleito de arresto cautelar via SISBAJUD que não foi objeto da decisão agravada – Recurso improvido.* (TJSP; Agravo de Instrumento 2269882-94.2024.8.26.0000; Relator (a): Souza Lopes; Órgão Julgador: 17ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 18/09/2024; Data de Registro: 18/09/2024)
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