Opinião

Inovação responsável e humanizada no Poder Judiciário

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  • é juíza federal do TRF-2 atualmente conselheira do CNJ doutora em Processo Civil pela Universidade Complutense de Madrid. Mestre em Processo Civil pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Membro da Comissão Permanente de Acompanhamento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 2030.

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21 de outubro de 2024, 6h30

O Poder Judiciário, quando da instituição da Política Nacional de Inovação por meio da Resolução CNJ nº 395/2021, o fez de uma forma vanguardista reforçando a importância de um enfoque nos Direitos Humanos e na responsabilidade social. A política de inovação no âmbito do Poder Judiciário brasileiro foi instituída por meio da Resolução nº 395 de 07/06/2021, [1] que tratou da criação da Política de Gestão da Inovação no âmbito do Poder Judiciário, com uma evidente preocupação com a contribuição social que é advinda da inovação.

Lucas Castor/Agência CNJ

Dispõe que os objetivos do desenvolvimento sustentável da Agenda 2030 incorporados à Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2021-2026 serão de sobremaneira importantes para as inovações públicas, sendo um de seus princípios basilares a sustentabilidade socioambiental e o desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico.

Em decorrência da política de inovação, foi concebida também a Plataforma da Rede de Inovação do Poder Judiciário —  RenovaJud [2], sistema eletrônico que permite publicar as iniciativas de inovação de forma colaborativa, transparente e contínua. Nessa plataforma, que conta com mais de 800 iniciativas atualmente, todos vinculados à Agenda 2030.

Esse arranjo reforça a importância de uma inovação fundada nos objetivos de desenvolvimento sustentável da vida humana, tendo a presente análise o objetivo posicionar o debate da pertinência da inovação no limiar entre a urgência e demanda mercadológica da inovação e a sua efetiva contribuição para o aspecto social.

A discussão se posiciona a favor de um conceito ético de priorizar a efetivação de iniciativas inovadoras que incrementem a qualidade do bem viver humano, em detrimento de soluções que meramente atendam aos anseios de um capitalismo tardio focado no consumo e em desacordo com a sustentabilidade ambiental.

Em um contexto mercadológico, vemos que nem toda inovação atende aos anseios de incremento do bem-estar dos cidadãos ou consumidores, posto que pode ser uma solução a uma demanda puramente de índole lucrativa. A título de exemplo, em 2006, Aza Raskin, um designer de interfaces para aplicativos concebeu uma das mais impactantes inovações relacionadas a usabilidade de aplicativos para dispositivos móveis smartphones, qual seja, a rolagem infinita (infinite scrolling), manifestando-se posteriormente arrependido pelos efeitos sociais negativos advindos de sua invenção. [3]

Atualmente essa funcionalidade tem sido apontada como um dos fatores que comprovadamente aumentam o engajamento de crianças, adolescentes [4] e adultos em aplicativos e redes sociais, aumentando a incidência de vício em tecnologia.

Há também casos em que a inovação tecnológica consistiu em práticas antimercado e prejudiciais ao consumidor. Em 2018, as empresas Apple e Samsung figuraram como réus em ação judicial que alegou que deliberadamente tornaram seus dispositivos móveis de modelos mais antigos lentos por meio de atualização compulsória de software. [5]

E atualmente a sociedade brasileira tem presenciado os efeitos deletérios à sociedade e à economia popular decorrentes das plataformas de jogos de azar e de apostas, sob o fundamento de uma suposta política pública inovadora de atualização e permissão do funcionamento de atividades dessa natureza por meio da Medida Provisória 1182/23, que regulamenta a exploração das apostas de quota fixa, conhecidas como bets ou apostas online.

Permitidas sob o fundamento do aumento da arrecadação orçamentária, hoje as bets já causam problemas que perpassam o incremento da insolvência civil, superendividamento, destinação indevida de recursos de benefícios sociais, envio de recursos públicos a empresas do exterior e até assoberbamento do Sistema Único de Saúde, com aumentos de casos de autoextermínio decorrente desse endividamento.

Um exemplo claro da ambiguidade inerente à inovação tecnológica pode ser observado na utilização da inteligência artificial. Por um lado, essa tecnologia tem gerado benefícios inquestionáveis em diversos setores. Entretanto, ao mesmo tempo em que a IA se revela uma ferramenta poderosa para o avanço social e econômico, ela também tem dado azo a fenômenos preocupantes, como a proliferação de fake news e a criação de deep fakes [6], permitindo a simulação fraudulenta da voz e da imagem de pessoas. Há também relatos de ferramentas de IA que produzem resultados com viés racial em aplicativos de reconhecimento facial [7] e até de gênero, quando usado no processo seletivo automatizado de currículos para contratação. [8]

A combinação desses dois fenômenos exemplifica como a inovação, quando não guiada por princípios éticos e pelo respeito aos direitos humanos, pode ser deturpada para servir a interesses escusos, colocando em risco a integridade das estruturas sociais. Diante de tais exemplos, é imprescindível uma reflexão profunda sobre os valores que orientam a inovação, seja tecnológica, metodológica, de gestão ou de serviços.

Ética da inovação

É necessário reconhecer que determinadas inovações são frequentemente criadas em atendimento a um desejo constante de consumo e de incremento do lucro empresarial, sem se preocuparem com os danos aos direitos e garantias humanos a longo prazo. A busca incessante por novidades é um reflexo da lógica de um capitalismo de consumo tardio, que prioriza o lucro imediato em detrimento de um planejamento ético e sustentável.

Agenda 2030 como lente interpretativa para a inovação humana

A lente da humanização permite que as teorias e metodologias de inovação se alinhe aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030, servindo como um parâmetro para garantir que os serviços inovadores estejam focados no bem-estar humano e no progresso sustentável. Ao usar os ODS como régua de avaliação, as iniciativas de inovação podem ser ajustadas e priorizadas para garantir que suas contribuições sejam positivas para as gerações atuais e futuras.

A inovação humanística, ao contrário da inovação focada apenas no retorno sobre o investimento, considera as necessidades sociais, emocionais. Uma inovação humanística coloca o ser humano no centro do processo, não apenas como consumidor, cliente ou ente de fomento ao lucro, mas como simples cidadão.

Ao inovar, devemos efetuar questionamentos devem abordar questões essenciais como:

  1. Houve consulta democrática e representativa com as partes afetadas?
  2. Quais são as oportunidades e ameaças para os povos originários e comunidades economicamente vulneráveis?
  3. Quais são os impactos na desigualdade de gênero e raça?
  4. Qual o impacto da iniciativa para as futuras gerações, para o meio ambiente, para as mudanças climáticas e para a redução das desigualdades?

Questionamentos dessa natureza podem auxiliar que as inovações estejam em sintonia com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e com as aspirações locais de progresso social e ambiental. A metodologia de inovação deve também considerar a perspectiva da evolução humana conforme os ODS.

Isso envolve questionar quais benefícios ou ameaças uma inovação traz para o meio ambiente, o clima e as futuras gerações. Sem essas considerações, a inovação corre o risco de agravar crises ambientais e sociais, em vez de contribuir para a sustentabilidade e o bem-estar humano. A adaptação local das teorias de inovação, portanto, exige uma lente crítica que vá além da simples transposição de modelos teóricos estrangeiros.

Estrangeirismos intelectuais na teoria da inovação

Inspirado na corrente artístico-conceitual do modernismo brasileiro e no movimento antropofágico, os teóricos da inovação em um contexto brasileiro podem passar a ter a capacidade de adotar teorias estrangeiras e reconfigurá-las a partir de uma visão humanista e pós-moderna.

Deixam de ser meros receptores passivos de metodologias estrangeiras, como o Lean Thinking, Design Thinking, Agile Methodology, Design Sprint, Kanban, Scrum, entre outros da pletora da cartografia da inovação mundial, para reinterpretá-las à luz das nossas necessidades, problemas e valores locais.

Essa revolução intelectual no Brasil pode ser vista como um processo de decolonização das práticas de inovação. Essas abordagens podem ser reimaginadas para não apenas focar na criação de valor econômico, mas para promover a equidade, o empoderamento social e a justiça. Isso implica envolver as comunidades locais em cada etapa do processo de design, desde a identificação do problema até a implementação da solução, garantindo que as inovações sejam culturalmente adequadas e socialmente justas.

A questão que se coloca é: como podemos garantir que as inovações importadas sejam apropriadas para o contexto local e contribuam para a dignidade e o bem-estar das populações? A resposta passa por um processo contínuo de crítica e adaptação.

Ao aplicar modelos e conceitos imbuídos de estrangeirismos e objetivos puramente mercadológicos, precisamos reformular as perguntas que orientam o processo: estamos realmente considerando as vozes das populações mais vulneráveis? Como essa inovação se encaixa nas estruturas sociais e culturais locais? Quais são os impactos a longo prazo dessa inovação em termos de sustentabilidade e justiça social?

Outro ponto importante é reconhecer que as metodologias importadas muitas vezes refletem valores e prioridades de economias de mercado altamente desenvolvidas, que podem não se alinhar com as necessidades das economias emergentes. No Brasil, uma sociedade marcada por desigualdades profundas, a inovação deve ser vista como uma ferramenta para combater essas disparidades, e não para reforçá-las. Importar metodologias sem reflexão crítica pode levar à perpetuação dessas desigualdades, tornando a inovação mais uma ferramenta de exclusão do que de inclusão.

Conclusão

Ao usar a régua dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 para direcionar inovações verdadeiramente significativas, principalmente em se tratando de inovação em instituições públicas, as quais devem zelar pela manutenção e garantia dos direitos dos cidadãos, criamos a perspectiva de futuro muito mais humanizada.

Essas considerações e pontos de vista que consideram a perspectiva de gênero, raça, de minorias e objetivos voltados à verdadeira essência da evolução humana devem perpassar todas as fases de construção de uma inovação pública.

Assim, a mensuração da utilidade ética e da razoabilidade das inovações do presente serão sentidas e analisadas pelas gerações presentes e futuras, como um legado cultural de nossa época atual para um futuro em que os benefícios da inovação sejam usufruídos por toda a sociedade, e não apenas por uma casta ou por uma classe social específica, ou que os benefícios da inovação sejam automaticamente convertidos em lucro corporativo.

No afã de inovar, por vezes perdemos nosso senso crítico de humanidade. E desse modo, buscamos ressaltar e resgatar a necessidade de usar a lente do verdadeiro progresso humano em observância às futuras gerações, com vistas a um Poder Judiciário inovador e verdadeiramente mantenedor do bem-estar humano.

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[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução Nº 395 de 07/06/2021. Institui a Política de Gestão da Inovação no âmbito do Poder Judiciário. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3973 .

[2] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Plataforma Renovajud. Disponível em: https://renovajud.cnj.jus.br/ .

[3] Andersson, H. (2018, July 4). Social media apps are ‘deliberately’ addictive to users. BBC. https://www.bbc.com/news/technology-44640959

[4] NATARAJAN, Nikhila. Do They Stop? How Do They Stop? Why Do They Stop? Whether, How, and Why Teens Insert “Frictions” Into Social Media’s Infinite Scroll. International Journal of Communication, [S.l.], v. 18, p. 20, feb. 2024. ISSN 1932-8036. Available at: <https://ijoc.org/index.php/ijoc/article/view/21618/4548>. Date accessed: 01 Oct. 2024.

[5] GECIT, Baris Batuhan. Planned obsolescence: A keyword analysis. Journal of Management Marketing and Logistics, v. 7, n. 4, p. 227-233, 2020.

[6] CHESNEY, Bobby; CITRON, Danielle. Deep fakes: A looming challenge for privacy, democracy, and national security. Calif. L. Rev., v. 107, p. 1753, 2019.

[7] LUNTER, Jan. Beating the bias in facial recognition technology. Biometric Technology Today, v. 2020, n. 9, p. 5-7, 2020.

[8] ALBAROUDI, Elham; MANSOURI, Taha; ALAMEER, Ali. A Comprehensive Review of AI Techniques for Addressing Algorithmic Bias in Job Hiring. AI, v. 5, n. 1, p. 383-404, 2024.

Autores

  • é juíza federal, conselheira do CNJ, doutora em Direito pela Universidad Complutense de Madrid (Espanha), mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), presidente da Comissão Permanente de Acompanhamento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 2030, membro da Comissão Permanente de Sustentabilidade e Responsabilidade Social, integrante do Comitê Gestor da Política Nacional de Atenção Prioritária ao Primeiro Grau de Jurisdição, integrante do Grupo Decisório do Centro de Inteligência do Poder Judiciário (CIPJ), integrante da Comissão Permanente de Sustentabilidade e Responsabilidade Social.

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