Prisão para Nivaldo, liberdade para Gusttavo: um retrato do processo penal brasileiro
19 de outubro de 2024, 8h00
Recentemente, a notícia da decretação da prisão preventiva em desfavor do cantor Gusttavo Lima foi destaque nos tabloides nacionais. Logo em seguida, antes mesmo do cumprimento do mandado de prisão, lhe foi concedida uma ordem de habeas corpus. A liberdade de Gusttavo foi assegurada. Entrementes, em razão dessa notícia, típica da transformação de casos penais em mercadorias espetaculares, a imensa maioria dos fãs foi surpreendida com a revelação do nome de batismo do cantor: Nivaldo.
Neste breve artigo, não se pretende discutir o caso concreto que envolve a participação, ou não, do cantor sertanejo em um esquema de lavagem de dinheiro através de jogos de azar, mas retomar o debate sobre a principal marca do sistema penal: a seletividade. Uma característica estruturante do funcionamento concreto tanto da agência judicial como das agências encarregadas da persecução penal desde a fase da investigação preliminar.
A seletividade não é a consequência pontual de desvio de um julgador e nem um detalhe diabólico que leva a injustiças eventuais, mas um fenômeno sem o qual é impossível entender o processo penal brasileiro. Olhar as prisões, bem como os locais em que ocorrem buscas pessoais, abordagens policiais e tratamento abusivos fornece evidências importantes de que o tratamento processual penal não é o mesmo para cada pessoa acusada de cometer um delito.
Com Jean-Paul Sartre, pode-se afirmar que o “inferno são os outros” [1]: o que caracteriza o inferno é o olhar do outro. O sistema penal brasileiro, por exemplo, é infernal porque construído a partir de um olhar sempre seletivo e condicionado tanto pela tradição autoritária em que o ator jurídico está lançado, que naturaliza uma espécie de hierarquização entre as pessoas (em grande parte um sintoma da ausência de uma elaboração adequada do fenômeno da escravização), como pela hegemonia da racionalidade neoliberal, que faz do Estado um instrumento que favorece as camadas privilegiadas da sociedade.
Liberdade para Nivaldo?
Para guiar esse pequeno exercício intelectual, lança-se uma reflexão: se o milionário Gustavo ainda fosse o pobre Nivaldo, conseguiria uma liminar em habeas corpus passadas menos de 24 horas da decretação da prisão? Talvez. Pouco provável se observamos o funcionamento concreto da agência judicial de norte a sul do Brasil. Um alerta: não há que se criticar a liberdade de Gusttavo (ex-Nivaldo), tampouco a celeridade processual. A liberdade e a duração razoável do processo são direitos fundamentais do acusado. A questão é distinta: em um país que naturaliza prisões ilegais e desproporcionais, e que chega a estranhar a rapidez com que a liberdade de Gusttavo foi assegurada, quantos “Nivaldos”, percebidos como objetos descartáveis, se encontram indevidamente presos preventivamente?

Reza a lenda que o processo penal corresponde a uma cadeia de fatos e atos jurídicos modelada por normas constitucionais e legais, cujo escopo é a apuração da existência de um crime, identificação de sua autoria e aplicação de sanções penais. Essa visão reducionista camufla um dado importante: em Estados condicionados pela racionalidade neoliberal, que favorece o aprofundamento da desigualdade social, como é o caso do Brasil, o processo penal é, ainda mais do que em outros países, uma forma de controle social dos “indesejáveis”: de pessoas que não interessam aos detentores do poder político e/ou econômico.
Judiciário como mero homologador
É também a lógica neoliberal que faz com que, no lugar de decisões penais produzidas a partir de regras e princípios adequados à Constituição Federal, em atenção aos valores “liberdade” e “verdade” (valores da jurisdição democrática), as decisões judiciais passem, com frequência cada vez maior, a ser produzidas a partir de cálculos de interesse que visam potencializar a eficiência repressiva do Estado ou proporcionar algum tipo de vantagem (exposição midiática, promoção na carreira etc.) aos atores jurídicos responsáveis por elas. Diante desse quadro, o Poder Judiciário, em grande parte, abdica de atuar como um garantidor dos direitos fundamentais para funcionar como um mero homologador dos interesses dos detentores do poder político e/ou econômico, com destaque para a função de encarcerar os indesejáveis (pobres e inimigos do projeto neoliberal). Gusttavo não é um indesejável, porém os Nivaldos costumam ser.
Conforme expresso na nossa Constituição da República, o Brasil é (ou deveria ser) um Estado Democrático de Direito, a saber: um tipo ideal de Estado que se caracteriza pela existência de limites rígidos ao exercício do poder (de qualquer poder, inclusive do poder econômico). No Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais são os principais limites às ações das agências estatais e, ainda, funcionam como trunfos contra maiorias de ocasião: o juiz deve julgar contra a vontade de maiorias eventuais para fazer prevalecer um direito fundamental do indivíduo (por evidente, a chamada “voz das ruas” não pode condicionar decisões judiciais). Na seara penal, a dignidade da pessoa humana, que veda a instrumentalização de pessoas, e a presunção de inocência, percebida como uma regra de tratamento inegociável, são elevados ao epicentro das premissas que os atores jurídicos devem atender durante a persecução penal.
Não por acaso, as lições de Luigi Ferrajoli apontam que o respeito aos direitos e garantias fundamentais é a tônica de uma democracia em sentido substancial (democracia constitucional) [2]. Entretanto, no Brasil, a conjugação entre uma forte tradição autoritária e a racionalidade neoliberal [3], que tem como marco normativo a ilimitação, impedem a concretização de limites rígidos ao exercício do poder penal. Mais do que isso, a hegemonia da racionalidade neoliberal produziu uma profunda mutação no funcionamento e nos objetivos das Agências Estatais. Instaurou-se o que Colin Crouch chamou de pós-democracia [4], fenômeno marcado pela reaproximação pornográfica entre poder político e poder econômico, bem como pelo desaparecimento das políticas sociais e a correlata relativização dos direitos fundamentais. Diante do enfraquecimento da “mão esquerda” do Estado, na metáfora de Pierre Bourdieu [5], percebia-se o crescimento do Estado Penal. Isso porque não só é preciso gerir a população através da manipulação do medo e da exclusão através da prisão como também, no sistema capitalista, há quem lucre com a disseminação da insegurança, afinal, prisões implicam (muito) dinheiro, desde a fase da construção até a etapa da administração [6].
Repressão desigualitária
Não é raro que magistrados, contrariando a natureza contramajoritária de sua função, façam prevalecer argumentos jurídicos-populistas em detrimento de uma análise técnica-jurídica do caso a ser julgado, simplesmente no afã de agradar parcela da população e provar à opinião pública –correspondente à “opinião publicada” pelos meios de comunicação de massa – que o Judiciário não é leniente com a criminalidade. Repristinam-se, então, teorias arcaicas sobre segurança pública, mitos como o da verdade real, perversões inquisitoriais e os ideais de pessoas que vislumbram o processo penal como um instrumento de defesa da sociedade contra o indivíduo delinquente.
Se alguns precisam ser presos para controlar a sociedade e satisfazer aqueles que acreditam na prisão para resolver os mais variados problemas sociais, outros não podem ser presos. A constatação é simples: na cartilha do neoliberalismo, são os “Nivaldos” que devem ser presos e ter seus direitos relativizados (ou mesmo ignorados). No sistema de produção e opressão capitalista, a repressão à criminalidade, assim como todos as mercadorias, é distribuída de forma desigualitária.
O estereótipo de “criminoso” recai prioritariamente sobre os “indesejáveis”, que são vistos como verdadeiros outsiders ou ameaças pelos que se encontram no topo da pirâmide social. Os pobres não são enquadrados apenas como os efeitos de um problema social, mas como inimigos (não-cidadãos) que precisam ser neutralizados, em relação aos quais não devem atuar os sistemas legais de contenção do arbítrio e da opressão. Em sua obra, Alessandro Baratta [7] explicita que pesquisas empíricas descortinam as variações de comportamentos emotivos e valorativos dos magistrados em relação a indivíduos oriundos de classes sociais diferentes, sendo possível concluir que, comumente, os julgadores, ainda que de maneira inconsciente, tendem a acreditar que os indivíduos pertencentes às classes socialmente médias e altas agem na conformidade da lei, ao passo que raciocínio inverso é desenvolvido com relação aos integrantes das classes economicamente desfavorecidas.
Os pobres são, por conseguinte, duplamente prejudicados (os indesejáveis dentre os indesejáveis): além de mais facilmente selecionados para a posição de criminoso, são também mais vulneráveis a serem vítimas de delito, uma vez que “a insegurança é uma desigualdade social que afeta sobretudo os cidadãos menos favorecidos” [8]. E, nesse contexto, ao invés de reivindicarem seus direitos, aderem à ideologia punitivista e passam a pugnar por campanhas de “lei e ordem”.
Processo penal para manutenção do sistema
Diante desse quadro, o processo penal, ao invés de servir como controle do poder punitivo, se torna instrumento de um projeto político autoritário de naturalização de distorções, dentre as quais destacam-se as desigualdades sociais. Dito de outro modo: o processo penal deixa de ser um dispositivo garantidor dos direitos fundamentais para ser uma cerimônia protocolar justificadora de condenações que são necessárias à manutenção do atual sistema de opressão. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados em julho do ano corrente, o sistema prisional brasileiro conta com 208.882 presos provisórios [9]. Esse mapeamento evidencia empiricamente o fenômeno da banalização das prisões preventivas. Não há prazo máximo para a prisão cautelar, e a exigência de revisão nonagesimal, formalmente prevista no parágrafo único do artigo 316 do CPP, tornou-se inócua após o julgamento da ADI 6.582 pelo STF.
As medidas cautelares diversas da prisão, introduzidas no ordenamento jurídico por intermédio da Lei n° 12.403/2011, foram uma tentativa frustrada do legislador de diminuir o encarceramento provisório. Na prática, as pessoas que antes eram presas provisoriamente, continuaram a ser encarceradas, mas aumentou o número de pessoas submetidas a controle do estado através das medidas penais “alternativas”.
Essa atuação punitivista da agência judicial viola a “função de tutela” (Schutzfunktion) da liberdade atribuída ao Estado de Direito, ou seja, “o princípio da preservação a maior possível da liberdade sob a limitação a menor possível da liberdade” [10]. Vale frisar que o discurso populista de que prisões são necessárias a bem do “interesse público” não convence! A uma, porque a liberdade não é um “interesse privado”, uma vez que integra o rol dos direitos e garantias constitucionalmente assegurados a todos os cidadãos [11]; a duas, eis que a abstração “interesse público” é um significante frequentemente utilizado para ocultar o objetivo de atender aos interesses dos detentores do poder político e/ou econômico. A decretação desmedida de prisões preventivas de pobres e inimigos da hegemonia neoliberal descortina como o Poder Judiciário, frequentemente, adere ao projeto político-ideológico das classes dominantes [12].
Essa conjectura nos faz imaginar que se Gusttavo ainda fosse Nivaldo, menino pobre da periferia, poderia ainda estaria preso. Talvez o habeas corpus ainda nem tivesse sido julgado se a mídia não mirasse os holofotes para o caso dele. Todavia, a convivência minimamente racional entre democracia e o poder penal tem como pressuposto fundamental o respeito à dignidade da pessoa humana. A luta pela efetivação do princípio da presunção de inocência e de outros direitos fundamentais dos acusados (independentemente de serem “Gusttavos” ou “Nivaldos”) deve mirar no abandono de renças repressivas que sustentam a flexibilização das garantias do processo penal e o aumento do poder penal. Uma espécie de esclarecimento radical, com o abandono das crendices que contaminam o poder penal e o resgate do valor “liberdade” como fundamental à jurisdição penal, constitui condição de possibilidade para a construção de um processo penal (saber + prática) comprometido com a superação das múltiplas opressões (classe, raça, gênero etc.) em uma direção emancipatória.
[1] SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022.
[2] FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione: teoria del garantismo penale. Bari: Laterza, 2009.
[3] Por racionalidade neoliberal entende-se, grosso modo, um certo modo de compreender e atuar no mundo-da-vida que trata tudo e todos como objetos negociáveis (ou descartáveis) a partir de cálculos que visam o lucro ou a obtenção de vantagens pessoais. Sobre o tema: CASARA, Rubens. Contra a miséria neoliberal. São Paulo: Autonomia Literária, 2021.
[4] CROUCH, Colin. Post-democracy: a sociological introduction. Cambridge: Polity Press, 2004.
[5] BOURDIEu, Pierre. A mão esquerda e a mão direita do Estado. In Contrafogos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
[6] CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. Traduzido por Luis Leiria. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 101.
[7] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. 2 reimp. Traduzido por Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2014, p. 177-178
[8] WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 3 ed. Traduzido por Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2015, p.460.
[9] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/07/22/dados-anuario-prisao-provisoria.htm?cmpid=copiaecola na semana passada pelo FSP, acesso em 01/10/2024
[10] NEVES, António Castanheira. O princípio da legalidade criminal. In Digesta, Vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 411
[11] HASSEMER, Winfried. Direito Penal Libertário. Traduzido por Regina Greve. Belo Horizonte: editora Del Rey, 2007, p.116.
[12] TAVARES, Juarez; CASARA, Rubens. Prisão: além do senso comum. Rio de Janeiro: Da Vinci Jur, 2024, p.169-171.
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