Opinião

Sistema brasileiro de Justiça multiportas e consensualidade no STF

Autores

  • é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

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  • é advogada juíza leiga do TJ-PB mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

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18 de outubro de 2024, 18h28

Uma compreensão mais moderna a respeito do sistema de Justiça brasileiro o compreende como um sistema multiportas. As portas seriam a representações de infraestruturas, cuja finalidade seria a resolução de problemas jurídicos.

Gustavo Moreno/SCO/STF
stf fachada sede prédio

Conforme Didier Jr (2024, p. 42) [1], no sistema de justiça, a solução do problema jurídico será alcançada através de alguma das suas portas de acesso à Justiça. Porta é aqui colocada, portanto, em sentido figurado, no sentido de representar o lugar por onde se entra, por onde se sai ou por onde se vai (caminho).

Ressalte-se, ainda, que nem sempre a porta de entrada é a mesma da saída, tendo em vista que uma porta pode dar acesso a outras tantas, assim como há situações em que não há propriamente um lugar para entrar, mas apenas um caminho a seguir, que será construído, como costuma ocorrer, durante a própria caminhada. Outro ponto fundamental é não confundir a porta com o que se busca ao adentra-la (ponto de chegada), ou seja, a justiça ou a solução justa e efetiva para o problema jurídico.

Nesse contexto de compreensão do Sistema de Justiça brasileiro como um sistema multiportas, o Código de Processo Civil de 2015 constitui-se como a norma central de organização.

O CPC, já em seu artigo 3º, quando trata sobre as normas fundamentais do processo civil, destaca a necessidade de estímulo a outras formas de resolução de problemas jurídicos. Nesse sentido, afirma que não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito, que o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos e que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

O CPC ter trazido essa disposição demonstra uma mudança de paradigma. Isso porque, em um primeiro momento, o Código poderia ser visto como a norma que regula o processo e o procedimento para se ingressar com uma ação cível perante o Poder Judiciário, no entanto, com a inserção dessa norma fundamental, o CPC deve agora ser compreendido como um método para a solução de problemas jurídicos, não necessariamente por meio da jurisdição, que deixa de ser compreendida como via única ou preferencial para essa finalidade.

Antes do CPC já existia no ordenamento brasileiro normas tratando sobre outras formas de resolução de problemas jurídicos, a exemplo da Resolução 125 do CNJ, no entanto, com o CPC essas normas passaram a demonstrar uma ideia de integração entre as diversas portas, a ideia de que as portas de acesso à justiça não são isoladas.

Spacca

Além disso, o artigo 4º do CPC assegura o direito não apenas à solução do problema jurídico (em tempo razoável), mas à sua solução de modo integral. Isso deve ser compreendido em termos muito mais amplos do que uma articulação entre os princípios da duração razoável do processo e da primazia da decisão de mérito.

Com isso, reforça-se a ideia de que o acesso à Justiça deve ser compreendido a partir da premissa da possibilidade de fracionamento da condução e da solução de problemas jurídicos, com a interação entre diferentes portas de acesso à Justiça.

Problemas jurídicos

Nesse contexto, dentro de cada porta, os problemas jurídicos podem ser resolvidos através de três principais formas ou modos: autotutela, autocomposição ou heterocomposição.

A autotutela é a solução do litígio pelas próprias partes, pela unilateralidade, mediante a utilização da força física, moral ou econômica. Apesar de vedada, como regra, ainda há no ordenamento jurídico alguns casos em que essa forma é permitida, a exemplo do desforço imediato (§ 1º do artigo 1.210 do Código Civil) e do direito de retenção (artigos 571 e parágrafo único, 578, 663, 681, 708, 742, 1.219, 1.220, do Código Civil).

Autocomposição, por sua vez, é a solução do litígio determinada de acordo com a autonomia de vontade e o consenso das partes. São formas de resolução pela autocomposição a conciliação, a mediação e a negociação. Na negociação as partes chegam a um consenso e uma resolução através da comunicação direta, diferentemente do que ocorre na conciliação e na mediação em que há a participação de um terceiro imparcial que atua como facilitador da comunicação entre as partes envolvidas.

Na heterocomposição, a solução do problema jurídico é determinada por um terceiro, sendo exemplos a jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição) e a arbitragem (Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996).

Antes das alterações realizadas pelo CPC/15, a forma heterocompositiva, através da tutela jurisdicional era a regra. Contudo, dentro da nova lógica a autocomposição ou a consensualidade passou a ser a regra a ser buscada e estimulada por todos os atores envolvidos na solução de um problema jurídico.

Assim, ainda que o problema venha a ser resolvido na da porta do Poder Judiciário — que ainda é a porta mais tradicional — deve ser dada preferência à solução consensual.

A preferência pela autocomposição ou pelos métodos consensuais reflete, segundo Didier Jr (2024), um “espírito democrático” que orienta essa nova visão do CPC. Isso se dá pelo fato de a solução consensual ser um importante instrumento de desenvolvimento da cidadania, ao passo que põe os interessados na posição de protagonistas — e não meros expectadores — da solução do seu problema. Segundo Didier (2024), “o dispositivo simboliza, então, uma mudança substancial de paradigma no sistema brasileiro de justiça e, ao fazê-lo, incentiva uma transformação cultural — da cultura da sentença para a cultura da paz”.

Sistema de Justiça multiportas

Essa ideia de prevalência dos métodos consensuais, portanto, deve se espraiar por todo o sistema. Neste sentido, em interessante ensaio, Didier Jr e Fernandez (2023) [2] propuseram a compreensão da Justiça Constitucional sob a perspectiva do Sistema brasileiro de Justiça multiportas.

Parte-se, pois, do pressuposto de que, muito embora o Supremo Tribunal Federal seja uma porta altamente qualificada, ela não seria exclusiva, e nem adequada, para o tratamento de problemas constitucionais contemporâneos.

Negar essa constatação, na visão dos autores, não significa apenas a adoção de uma compreensão inadequada do Sistema de Justiça do Brasil, mas também verdadeira tentativa de rejeição da realidade. Faz-se necessário, portanto, pensar em uma justiça constitucional multiportas, cuja abrangência alcança também a autocomposição e o diálogo e a deferência em relação a outros entes dotados de mais elevada capacidade institucional para a solução do problema jurídico de natureza constitucional.

Neste sentido, embora o objeto da jurisdição constitucional seja bem delimitado (solução de problemas jurídicos constitucionais), ele é parte integrante de um sistema mais amplo (o sistema de solução de problemas jurídicos), que, no caso brasileiro, é caracterizado pela abertura (ever-expanding system) e pela integração entre os diferentes modos de resolução de problemas jurídicos.

Não obstante, apenas recentemente foi possível visualizar um movimento de estruturação institucional no Supremo Tribunal Federal para o oferecimento de tratamento de problemas jurídicos pela via da autocomposição, com a criação, pela Resolução nº 697/2020, do Centro de Mediação e Conciliação (CMC), subordinado diretamente à Presidência do tribunal.

Acesso à Justiça constitucional

Com a Resolução, inaugurou-se uma nova porta interna (ou subporta) para acesso à Justiça Constitucional. A Resolução nº 790/2022 do Supremo Tribunal Federal criou o Centro de Soluções Alternativas de Litígios (Cesal/STF), integrado pelo Centro de Mediação e Conciliação (Resolução nº 697/2020), pelo Centro de Cooperação Judiciária (Resolução nº 775/2022) e pelo então constituído Centro de Coordenação de Apoio às Demandas Estruturais e Litígios Complexos (Cadec/STF).

O arranjo institucional estabelecido pela Resolução nº 790/2022 coloca em relevo três aspectos:

a) a solução de problemas estruturais geralmente exige uma abordagem distinta da tradicional, com a realização de atos de cooperação judiciária e a adoção de técnicas de conciliação e mediação;
b) a complexidade dos casos submetidos a mediações e conciliações no Supremo Tribunal Federal aconselha, em muitas hipóteses, o emprego de mecanismos de cooperação, inclusive de natureza interinstitucional;
c) em processos estruturais, técnicas de conciliação e mediação muitas vezes são necessárias.

Em semelhante sentido, Georges Abboud (2021) [3] discute as raízes das novas funções do sistema jurídico na complexidade pós-moderna, mencionando que os paradigmas liberal e material do direito mostraram-se insuficientes para regular situações sociais complexas e dependentes de conhecimentos produzidos de forma descentralizada na sociedade e de forma concorrente por diversos atores públicos e privados.

Assim, dada à complexidade crescente dos conflitos que chegam ao Tribunal, bem como a crescente indecidibilidade de novos temas, que muitas vezes seriam conflitos paradoxais, ou seja, conflitos que não permitem uma solução binária (procedente/improcedente) para sua total resolução, o STF deveria estar aberto à novas soluções de problemas jurídicos.

Para isso, Abboud aposta num modelo de proceduralização, buscando superar o problema da crescente indecidibilidade, criado pela judicialização dos paradoxos, fomentada ainda pela desregulação imposta pela globalização e pelas novas tecnologias.

Em interessantíssimo artigo publicado nesta ConJur, Abboud [4] sustenta que os acordos constitucionais são questões que, muitas vezes, o direito não consegue sequer tangenciar, mas precisa ser capaz de resolver, o que faz, em certas ocasiões, de forma indireta, criando condições de possibilidade do conhecimento adequado e emitindo decisões sujeitas à revisão constante.

Para estes casos, o acordo apresentaria ao menos quatro vantagens em relação às decisões tradicionais:

a) definição em tempo mais razoável do que costumeiramente ocorre até prolação de decisão definitiva;
b) solução mais plural e detalhada, permitindo estabelecimento de cronograma e de regras para implementação e cumprimento da decisão;
c) o acordo, diferentemente da decisão judicial, é mais maleável e possibilita a revisão de seus termos de forma menos traumática;
d) por fim, o acordo é ontologicamente consensual, diferentemente de uma decisão, ele não estabelece vencedores e vencidos. A sua instituição é menos traumática do ponto de vista social., evitando, pois, possíveis backlash.

Dentre os casos em que já houve acordos bem sucedidos no STF, cita-se alguns exemplos elucidativos:

(i) a ADPF 568, em que destinou-se valores bilionários a ações de combate à pandemia de covid-19 para alguns estados;
(ii) ADI 7.191, na qual se encerrou conflito federativo entre União e estados para compensar as perdas de ICMS dos combustíveis; e
(iii) a ADO 25, no qual a União, os estados e o Distrito Federal firmaram acordo concernente aos repasses previstos pela chamada Lei Kandir (LC 87/1996).

Demarcação de terra indígena

Mais recentemente, o STF firmou acordo para solucionar o conflito fundiário envolvendo a demarcação da terra indígena Ñande Ru Marangatu, em Mato Grosso do Sul. O relator do caso é o ministro Gilmar Mendes, que convocou a conciliação.

O ministro Kassio Nunes Marques também marcou, recentemente, uma audiência de conciliação sobre o controle acionário da Eldorado Brasil Celulose. A disputa corporativa envolve a venda de ações da empresa, integrante da J&F Investimentos, para a CA Investment, controlada pela Paper Excellence, da Indonésia.

Este são apenas alguns dos muitos exemplos que evidenciam uma possível virada de chave no atuar do Supremo, de modo que acreditamos ser cada vez mais comum, daqui em diante, presenciarmos a adoção de procedimentos inovadores e voltados à consensualidade, sobretudo à luz da complexidade contemporânea e da abertura e integração entre os diferentes modos de resolução de problemas jurídicos.

Por fim, é fato que a jurisdição constitucional tem desempenhado relevante papel na construção do sistema brasileiro de justiça multiportas. O STF tem reconhecido a complexidade das demandas que lhe chegam e, consequentemente, está em busca de soluções complexas, faseadas, contemporâneas e mais adequadas, exatamente no intuito de atingir a realização de direitos fundamentais que, por outros métodos, ficariam prejudicados.

 


[1] Didier Jr, Fredie. Introdução à Justiça Multiportas: Sistema de solução de problemas jurídicos e o perfil do acesso à Justiça no Brasil. São Paulo: Editora Juspodivm, 2024.

[2] DIDIER JR, Fredie; FERNANDEZ, Leandro. A JUSTIÇA CONSTITUCIONAL NO SISTEMA BRASILEIRO DE JUSTIÇA MULTIPORTAS. Revista da AJURIS-QUALIS A2, v. 50, n. 154, p. 145-184, 2023.

[3] Abboud, Georges. Direito constitucional pós-moderno – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021

[4] https://www.conjur.com.br/2024-ago-27/acordos-no-stf-sao-bons-e-eu-posso-provar/#_ftn4

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  • é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, especialista em Direito Público, membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • é advogada, juíza leiga do TJ-PB, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri, ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

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