Governo de São Paulo aplicou apenas 54 multas administrativas por discriminação racial em 14 anos
15 de outubro de 2024, 8h52
Já é de amplo conhecimento da população brasileira que o racismo e a injúria racial são crimes. Também é sabido que vítimas dessas condutas podem pedir indenizações devido aos danos morais sofridos. O que quase ninguém sabe é que, no estado de São Paulo, além das esferas penal e cível, existe uma terceira possibilidade de punição por discriminação racial: a administrativa — que, nos seus 14 anos de vigência, porém, não foi muito utilizada e gerou pouco mais de 300 procedimentos e cem punições no total.
A Lei Estadual 14.187/2010 regulamenta os processos administrativos por discriminação racial em São Paulo. Isso significa que o Executivo estadual pode aplicar penalidades contra quem praticar esse delito em seu território.
A revista eletrônica Consultor Jurídico obteve dados sobre essas sanções por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Desde julho de 2010, quando a norma estadual foi publicada e entrou em vigor, até o último dia 13 de setembro, o governo paulista abriu apenas 325 processos administrativos e aplicou somente 111 penalidades: 57 advertências e 54 multas.
Os pagamentos destas últimas, somados, representaram um total de cerca de R$ 911 mil (valor não corrigido pela inflação) — quantia irrisória para um estado com estimativa de arrecadação de pouco mais de R$ 328 bilhões em 2024. E boa parte dessas multas teve valor inferior ao mínimo estipulado pela própria lei.
Punições
Segundo a norma, o governo paulista pode aplicar sanções administrativas contra pessoas físicas e empresas em função de qualquer “ato discriminatório por motivo de raça ou cor praticado no estado”. A lei estadual prevê quatro tipos de punições por discriminação racial. A mais branda é a advertência.
Em seguida, vem a multa, cujo valor pode variar de 500 até mil unidades fiscais do estado de São Paulo (Ufesps). Hoje, isso equivale a um intervalo entre R$ 17.680 e R$ 35.360. Em caso de reincidência, a multa pode chegar a três mil Ufesps, ou seja, pouco mais de R$ 106 mil.
Apesar de estabelecer esses parâmetros, a norma diz que o valor deve levar em conta “as condições pessoais e econômicas do infrator”. A multa ainda pode ser elevada até o triplo “quando se verificar que, em virtude da situação econômica do infrator, sua fixação em quantia inferior seria ineficaz”.
As 54 multas aplicadas até hoje tiveram um valor médio de aproximadamente R$ 16,9 mil. As maiores multas tiveram valor de cerca de R$ 79,6 mil. Duas nesse mesmo montante foram pagas em 2019.
Muitas multas — 25 delas — sequer chegaram à casa dos milhares. Um total de 24 teve valor entre R$ 522 e R$ 535. Além disso, uma multa foi de apenas R$ 10.
Nesses 14 anos, o valor de uma Ufesp mais do que dobrou. Mesmo assim, nesse período, o valor mais baixo correspondente ao piso de 500 Ufesps, estipulado pela própria lei, foi de R$ 8.210. Ou seja, boa parte das multas aplicadas não seguiu o parâmetro mínimo.
A ConJur questionou a Secretaria da Justiça e Cidadania do governo estadual quanto a esse cenário. Não houve resposta até a publicação desta reportagem.
A menor de todas as multas foi também a primeira delas, paga somente em 2016, seis anos após a entrada em vigor da lei. A mais recente é de julho deste ano. A maioria dos pagamentos ocorreu em 2017 (21 multas, com um valor total de R$ 419 mil).
O ano de 2018 teve o segundo maior número de multas (16), mas a soma dos valores foi de apenas R$ 42 mil. O ano seguinte, por outro lado, teve apenas três punições, mas seus valores chegaram a quase R$ 160 mil.
A média de multas por ano foi de 3,9 e o valor médio anual arrecadado com elas foi de aproximadamente R$ 65 mil.
As outras duas modalidades de punição previstas na lei são voltadas a empresas: suspensão da licença estadual para funcionamento por 30 dias e cassação dessa licença. Tais sanções nunca foram aplicadas pelo governo paulista.
Competência estatal
O advogado e ex-juiz Márlon Jacinto Reis, membro da Comissão Nacional de Direitos Difusos e Coletivos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), com experiência em casos de racismo e ações coletivas, explica que o poder do estado para aplicar tais sanções “é legitimado pelo princípio da competência constitucional dos entes federativos para legislar sobre temas de interesse local e suplementar a legislação federal”.
Segundo ele, “não há obstáculo na Constituição” para que os estados tenham legislações complementares em temas que envolvem a proteção de direitos fundamentais. O combate à discriminação racial se enquadra nisso.
“As sanções administrativas estaduais não substituem, mas complementam as medidas penais e cíveis previstas na legislação federal, reforçando o combate ao racismo em múltiplas esferas de atuação”, assinala Reis.
Irapuã Santana, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB paulista, lembra que o artigo 3º da Constituição coloca o combate ao racismo como um dos objetivos da República. Já o Estatuto da Igualdade Racial atribui ao Estado o dever de combate ao racismo.
“Cabe também ao estado de São Paulo, nesse sentido, colocar essa pauta como prioritária e, dessa forma, coibir a prática desses atos, que são tidos como extremamente negativos pela Constituição.”
Mesmo assim, a iniciativa paulista é única no Brasil. Atualmente, o governo da Bahia e a prefeitura do Rio de Janeiro também recebem denúncias de racismo, mas elas são encaminhadas para delegacias de crimes raciais. Ou seja, não há punições administrativas, apenas um direcionamento para investigações penais.
Denúncias e procedimentos
Os processos administrativos por discriminação racial têm origem, geralmente, em denúncias recebidas pela Secretaria da Justiça. Elas podem ser feitas pela vítima, por seu representante legal ou qualquer outra pessoa “que tenha presenciado os atos”.
Após receber uma denúncia, a Comissão Especial de Discriminação Racial da secretaria decide se instaura um processo administrativo e, em seguida, dá início à apuração do caso: cita as partes, reúne as provas e julga se houve conduta discriminatória. Há a possibilidade de recurso contra a decisão da comissão. Ele é encaminhado para análise da Secretaria da Justiça.
A pasta também tem a competência para informar a polícia sobre a denúncia “quando o fato descrito caracterizar infração penal”, mas o governo paulista não precisa receber uma denúncia para instaurar um processo administrativo por discriminação racial. Por vezes, isso é feito de ofício.
A própria secretaria já informou, por exemplo, que sua Coordenação de Políticas para a População Negra e Indígena (CPPNI) solicitou a abertura de um procedimento do tipo em 2020 após tomar conhecimento do caso pela televisão e pelas redes sociais.
Em resposta ao pedido de acesso à informação da ConJur, a Secretaria da Justiça afirmou ter localizado os dados sobre denúncias recebidas somente a partir de 2018. Daquele ano em diante, a pasta registrou um total de 1.386 denúncias por discriminação racial. Por outro lado, os dados mostram que, desde 2010, foram instaurados apenas 325 processos administrativos baseados na Lei 14.187.
Santana ressalta que as pessoas têm feito denúncias ao governo de São Paulo, mas elas não têm gerado punições. “Isso demonstra uma falta de aparelhamento do governo do estado para cuidar desses casos.”
O advogado avalia que, apesar de demonstrar uma preocupação inicial com os casos de discriminação racial ao receber as denúncias, o governo paulista não vem dando continuidade aos procedimentos, o que esvazia o mecanismo.
Com base nos dados sobre o total de denúncias desde 2018 e de processos instaurados desde 2010, ele conclui que a sociedade paulista não terá confiança de que algo de fato acontecerá após uma denúncia à Secretaria da Justiça.
Ou seja, se alguém é vítima de agressão racial, mas “sabe que não vai ter uma resposta estatal eficaz”, pode acabar desistindo de registrar uma denúncia ao governo do estado.
Pouco conhecida
Enquanto o governo paulista aplicou apenas 111 sanções administrativas por discriminação racial desde julho de 2010, a plataforma de pesquisas jurídicas Jusbrasil mostra um total de 2.479 acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo nesse mesmo período em ações criminais de racismo (142) e injúria racial (2.337).
“O descompasso entre o número de sanções administrativas e as decisões judiciais por crimes de racismo parece indicar que a legislação estadual ainda não é amplamente conhecida ou utilizada”, avalia Reis.
Para o advogado e ex-juiz, isso “reforça a hipótese de que a população e os próprios agentes administrativos podem desconhecer a existência desse mecanismo de punição”. Santana concorda.
Segundo Reis, “há uma diferença natural entre a aplicação administrativa de sanções, que tende a ser mais rápida, e o processo judicial, que pode lidar com casos mais complexos e envolve uma análise mais detalhada das circunstâncias”.
Por isso, na sua visão, o número menor de multas “não significa, necessariamente, que a lei seja ineficaz, mas que talvez precise de mais divulgação e incentivo para que a sociedade entenda e utilize esse recurso complementar de combate ao racismo”.
Ele vê a lei estadual como uma medida “eficaz, mas com limitações”. A possibilidade de sanções administrativas “traz um novo escopo de ação para o combate ao racismo” e permite que o Estado “atue de forma mais direta e rápida”. Mas isso depende de uma “aplicação consistente” da norma e da “conscientização pública sobre sua existência”.
“Quanto mais mecanismos forem criados para combater o racismo em todas as suas formas, mais eficaz será a luta”, opina Reis. “Entretanto, é preciso que as instituições responsáveis pela aplicação dessa lei recebam suporte adequado e que a população seja informada sobre a possibilidade de recorrer a esse tipo de penalidade.”
Santana também vê a punição administrativa como um caminho válido, pois amplia as possibilidades de combate ao racismo. “É importante ter esses canais abertos”, diz. “Mas é preciso ir além”.
De acordo com ele, tais canais precisam ter “uma estrutura de acolhimento da vítima” e efetivamente gerar punições aos agressores.
“É louvável que exista, mas também é importante que as pessoas possam investir nisso de uma maneira mais séria”, observa. “Se não, fica ‘para inglês ver’, o que tem marcado as políticas públicas referentes à população negra ao longo dos séculos.”
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