'China tem tradição em mediação, enquanto no Brasil existe a cultura de litigância', diz presidente do Ibrachina
13 de outubro de 2024, 9h51
Há 15 anos, a China se tornou o maior parceiro comercial do Brasil. Desde então, a relação entre os dois países tem um denominador comum: o advogado Thomas Law, presidente do Instituto Sociocultural Brasil-China (Ibrachina), que já integrou comitivas tanto do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quanto do governo de Jair Bolsonaro (PL) em viagens estratégicas à nação asiática.
No momento em que são comemoradas as cinco décadas de relação entre Brasil e China, Law, que tem entre suas especialidades o Direito Internacional e o Direito Comercial, compara em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico as duas culturas jurídicas. Segundo ele, enquanto a China tem tradição em mediação e soluções alternativas de conflitos — ainda que com certa intervenção do Poder Judiciário —, no Brasil há a predominância da litigância.
“(Na China) Há um forte incentivo para resolver conflitos sem recorrer ao litígio, que é visto como um último recurso. A mediação é normalmente a primeira escolha para resolver conflitos, e está integrada ao sistema judicial chinês”, diz o advogado.
“Já o Brasil historicamente possui uma cultura de litigância, mas há um esforço crescente para mudar isso em favor da mediação e conciliação, especialmente com o Novo Código de Processo Civil em 2015 e a Lei de Mediação, até como incentivo para reduzir a sobrecarga do sistema judicial e resolver disputas de forma mais rápida e eficaz.”
Ainda no campo do Direito, o advogado diz que China e Brasil têm em comum o fato de que seus ordenamentos jurídicos estão em evolução. Ele destaca que esse avanço recente culminou no primeiro Código Civil chinês, promulgado em 2020.
Sob a perspectiva econômica, Law observa que a China tem adotado um olhar estratégico para as novas rotas comerciais que podem surgir na América do Sul, como a bioceânica e a amazônica. O reflexo, diz o advogado, pode ser a maior competitividade dos produtos do chamado Sul Global, do qual o Brasil faz parte. A rota amazônica, por exemplo, poderia “reduzir” a distância entre os dois países em sete mil quilômetros.
“Para as entidades chinesas no Brasil, essa rota representa uma oportunidade de integrar ainda mais as cadeias produtivas e ampliar o fluxo de mercadorias com maior agilidade e menor custo”, afirma o advogado, que também atua como consultor da frente parlamentar do BRICS — grupo de países emergentes fundado por Rússia, China, Índia e Brasil. A fala converge com outra percepção de Law, a de que o Sul Global não deve ser excluído das decisões sobre o futuro do planeta.
“Nesse sentido, a ideia é que, cada vez mais, as relações entre os países se aprofundem, especialmente no atual momento do Brasil, de uma neoindustrialização, o que abre novos horizontes e novos investimentos com a China, que é nosso maior parceiro comercial.”
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — O que une e o que separa Brasil e China no campo do Direito?
Thomas Law — Há muitos aspectos nos quais Brasil e China convergem, uma vez que ambos os países vivem um cenário de sistemas jurídicos em evolução. O Brasil, por exemplo, vem em um processo de transição com a Constituição de 1988, que estabeleceu novos parâmetros para a sociedade civil. Desde então, estamos implementando reformas legais importantes, como o novo Código Civil (2002), reformas no Código de Processo Civil, em 2015, e atualizações na legislação trabalhista, em 2017.
Na China, houve uma evolução significativa do sistema jurídico desde as reformas do final dos anos 1970, quando se iniciou um grande movimento de codificação de suas normas, o que culminou na adoção do primeiro Código Civil, em 2020, que entrou em vigor em 2021. Com o crescimento econômico e a iniciativa Belt and Road, a China tem adaptado seu sistema legal para lidar com questões internacionais de comércio e investimentos. Vale destacar ainda que os dois países têm buscado modernizar seus sistemas jurídicos para lidar com desafios atuais como comércio eletrônico, proteção de dados e crimes cibernéticos.
ConJur — Quais são as principais discussões contemporâneas no Direito chinês? Por exemplo, nos campos do trabalho e de tecnologia…
Thomas Law — A consolidação da China como primeira ou segunda potência econômica mundial está transformando o planeta, mas é importante notar que ela ainda se posiciona como país em desenvolvimento. Essa autopercepção como país emergente impacta o trabalho dos profissionais do Direito, sejam advogados ou juristas. O ponto principal é que a China busca o multilateralismo.
O país asiático aposta que o Sul Global, onde está o Brasil, que tem quase cinco vezes o número de habitantes do centro de poder América do Norte/Europa, não pode continuar alijado das decisões do futuro do planeta. Nesse sentido, a ideia é que, cada vez mais, as relações entre os países se aprofundem, especialmente no atual momento do Brasil, de uma neoindustrialização, o que abre novos horizontes e novos investimentos com a China, que é nosso maior parceiro comercial.
ConJur — Pelas leis chinesas, um escritório estrangeiro de advocacia pode atuar lá? Como é feita essa operação?
Thomas Law — Na China, como em outros países, há limitações para o estabelecimento de escritórios. Primeiramente, juristas estrangeiros não podem operar o Direito diretamente, como advogados. Isso significa que eles não podem representar clientes em tribunais chineses, redigir documentos legais com validade sob a lei chinesa ou fornecer pareceres legais sobre a interpretação da legislação chinesa.
Mas eles podem fornecer consultoria sobre Direito Internacional e sobre a legislação de seus países de origem, bem como oferecer orientação estratégica para empresas que operam globalmente. Os advogados que desejam trabalhar na China precisam obter uma licença especial para atuar como consultores legais estrangeiros.
ConJur — O novo Código Civil chinês pode facilitar o comércio internacional?
Thomas Law — O Código Civil chinês marca um momento único, e representa um marco importante no desenvolvimento do sistema jurídico da China, com implicações profundas para o comércio internacional. Para empresas estrangeiras, há desafios quanto às oportunidades e à demanda por uma adaptação às novas regras, bem como quanto a uma compreensão profunda do ambiente regulatório chinês.
O novo código traz mudanças nos contratos, com a harmonização das regras contratuais; traz maior segurança jurídica no tema do direito de propriedade imobiliária; e é mais rígido na proteção do consumidor e na responsabilidade civil, entre outros exemplos. Com o tempo, o novo código certamente contribuirá para um ambiente de negócios mais dinâmico, facilitando cada vez mais o comércio e a cooperação internacional com a China.
ConJur — E nos âmbitos da arbitragem e do Direito Empresarial, quais as semelhanças e diferenças entre os dois países?
Thomas Law — Na China, a arbitragem é administrada principalmente pela Comissão de Arbitragem de Comércio Internacional da China (Cietac), uma das instituições mais antigas e prestigiadas do país. Além disso, a China tende a ter uma maior intervenção estatal na arbitragem, refletindo o papel mais proeminente do Estado no sistema jurídico chinês. Nesse sentido, vale ressaltar o posicionamento do presidente Xi Jinping sobre a cooperação jurídica e o intercâmbio com os BRICS.
Já no Direito Empresarial, os países têm leis e regulamentações que visam a proteger os investidores, sejam eles domésticos ou estrangeiros, com a exigência de formalidades semelhantes para a constituição de empresas (registro, capital social, contrato social, estatuto etc.), e a responsabilidade dos sócios ou acionistas pode ser limitada às suas contribuições para o capital social. Por outro lado, na China, o Direito Empresarial é bastante influenciado pelo Estado e sua interferência na economia. No Brasil, ainda que o Estado tenha um papel relevante na economia, há maior liberdade para a iniciativa privada e uma abordagem relativamente mais aberta para o investimento estrangeiro.
ConJur — O que a China pode ensinar ao Brasil no campo da mediação?
Thomas Law — A mediação tem grande tradição na cultura chinesa, que valoriza a harmonia e a resolução pacífica de disputas, o que explica a preferência pela mediação e conciliação. Há um forte incentivo para resolver conflitos sem recorrer ao litígio, que é visto como um último recurso. A mediação é normalmente a primeira escolha para resolver conflitos, e está integrada ao sistema judicial chinês. Já o Brasil historicamente possui uma cultura de litigância, mas há um esforço crescente para mudar isso, em favor da mediação e conciliação, especialmente com o Novo Código de Processo Civil, em 2015, e a Lei de Mediação, até como incentivo para reduzir a sobrecarga do sistema judicial e resolver disputas de forma mais rápida e eficaz.
ConJur — Como a China vê a possibilidade da rota amazônica (que passaria por Amazonas, Equador, Peru e Colômbia), que pode aproximar o mercado chinês e o brasileiro em sete mil quilômetros?
Thomas Law — A China enxerga a rota amazônica com grande potencial estratégico. A redução de sete mil quilômetros no transporte entre o Brasil e a China não só tornaria o comércio mais eficiente, mas também fortaleceria as relações econômicas entre os dois países. Para as entidades chinesas no Brasil, essa rota representa uma oportunidade de integrar ainda mais as cadeias produtivas e ampliar o fluxo de mercadorias com maior agilidade e menor custo. A conectividade proporcionada por essa rota é vista como um avanço significativo na logística entre as duas nações.
ConJur — E a rota bioceânica, que seria uma saída pelo Paraguai e pela Argentina, sem passar pelos Andes?
Thomas Law — A rota bioceânica é uma alternativa de grande interesse para a China, especialmente por evitar as dificuldades logísticas associadas à travessia dos Andes. Essa rota abriria uma nova porta de acesso para os produtos sul-americanos ao mercado chinês, além de criar novas oportunidades comerciais para todos os países envolvidos. As entidades chinesas consideram que essa rota poderia aumentar a competitividade dos produtos brasileiros e sul-americanos em geral, ao reduzir custos de transporte e tempo de entrega, consolidando ainda mais a presença chinesa na região.
ConJur — O que se fala na China sobre a viabilização dessas duas rotas de acesso?
Thomas Law — Há um interesse claro em explorar essas novas vias de acesso como parte da estratégia de diversificação e ampliação das rotas comerciais internacionais. Contudo, a viabilização depende de uma série de fatores, incluindo investimentos em infraestrutura, cooperação multilateral e superação de desafios técnicos e ambientais. A China está atenta a essas questões e acredita que a concretização dessas rotas poderia representar uma evolução significativa nas relações comerciais com os países da América do Sul. A visita do presidente Xi Jinping ao Brasil, agendada para novembro, será um impulso para essa integração da América Latina como um todo, liderada pelo Brasil em suas relações com o Oriente.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!