Opinião

A jurisdição civil em crise (cui prodest?)

Autor

11 de outubro de 2024, 7h15

Este artigo tem por objetivo maior trazer às luzes algumas reflexões a respeito do atual estado de coisas na jurisdição civil, notadamente a crise enfrentada pelo Poder Judiciário na atual quadra histórica e que tanta angústia propicia a um número crescente de consumidores de seus serviços.

O título deste texto, composto por uma pedante expressão latina, é autoexplicativo: há uma crise, e essa crise traz benefícios a uma determinada casta privilegiada de jurisdicionados.

São reflexões que trago menos com base em dados extraídos dos relatórios do Conselho Nacional de Justiça do que na experiência diária de um magistrado que vem mourejando há quase duas décadas na jurisdição civil e que também já exerceu a advocacia pública e a advocacia privada, de onde veio e para onde certamente retornará, se os desgastes físicos e emocionais da atual labuta assim o permitirem.

E por que a jurisdição civil?

Porque a jurisdição penal, de natureza necessária, não produz grandes incômodos ao jurisdicionado ou a seus advogados.

A verdade é que, estando solto o réu, pouco importa, na maior parte das vezes, a duração do processo. Nos processos penais que digam respeito a crimes “menores”, o advogado certamente aguardará pela benfazeja interferência do tempo na extinção da pretensão punitiva de seu constituinte; quanto ao Ministério Público, não se tratando de crimes que estejam na ribalta dos noticiários ou que não tenham trazido grandes impactos na vida das vítimas, a inércia judicial tampouco lhe causará maiores incômodos.

Pouco direi dos processos envolvendo a Fazenda Pública, a maior litigante em nossos fóruns, e isso porque o contato do cidadão com o Estado é tão intenso e amiudado que é natural o inflacionário número de processos que acedem ao Poder Judiciário, envolvendo as pessoas jurídicas de direito público.

Noves fora as execuções fiscais de pequenos créditos e de “créditos podres”, objeto de especial atenção pelo Conselho Nacional de Justiça e que respondem por cerca de 40% do acervo processual, os feitos envolvendo servidores públicos e beneficiários de prestações do INSS são repetitivos e de fácil solução, na maior parte das vezes, restando a sempre sensível responsabilidade extracontratual do Estado, é bem verdade.

Sistema ineficiente

Objeto de especial preocupação é a jurisdição civil no que diz respeito aos interesses mais imediatos do cidadão e das pessoas jurídicas de porte pequeno e médio, que vêm sendo os maiores agravados pela ineficiência de um sistema que já não se mostra capaz de trazer lenitivo às suas angústias e necessidades.

Conflitos societários, de vizinhança, possessórios, a cobrança judicial de créditos, os golpes e fraudes que germinam em profusão, causando prejuízos e desassossego a miríade de consumidores, vêm tendo suas soluções cada vez mais prejudicadas.

Spacca

O atual estado de coisas é fruto de um lento processo, do qual a excessiva judicialização é apenas a ponta de um icerberg nefando.

Com efeito, existe um fator sociológico que contribuiu sobremaneira para o recrudescimento do número de demandas judiciais.

A cultura cartorial sempre deitou profundas raízes no Brasil, fruto não somente, mas sobretudo, da excessiva ingerência do poder estatal nos assuntos privados.

Com o passar do tempo, nenhuma solução que não contasse com o carimbo de algum órgão estatal desfrutaria da confiança do cidadão, diferentemente do que sucede em países de culturas em que a entrega da solução de um conflito a um terceiro desinteressado é considerada até mesmo motivo de vergonha, e onde prevalece a resolução dos conflitos por meio de mecanismos sociais e comunitários e sem a interferência estatal, como, v.g., sucede no Japão.

Esta sempre foi uma característica muito brasileira, altamente contaminada pelas tessituras normativas das Ordenações Manuelinas e Filipinas, que se protraiu no tempo e que, paradoxalmente, convive com um imaginário repto desestatizante.

A autoridade estatal reina onde há desconfiança entre os cidadãos, e a vida comunitária brasileira é altamente contaminada pela desconfiança.

De se notar que, até meados da década de 1980, havia apenas cerca de 200 faculdades de direito no país.

O acesso a um profissional do direito era, portanto, muito oneroso.  O número de demandas judiciais, ipso facto, reduzido, o que se refletia num sistema judiciário relativamente rápido e eficaz, mas apenas para um reduzido número de pessoas.

Represamento de demandas judiciais

Poder-se-ia imaginar que este cenário de um Poder Judiciário extremamente elitizado causaria um represamento de demandas e a sensação de desassossego social artificialmente contido, o que é apenas uma meia-verdade, na medida em que, a fórceps, as lides, como fator exclusivamente sociológico, encontravam acomodação por outros meios, e não se pode dizer, com razoável dose de certeza, que a Justiça privada grassasse nas questões cíveis.

E, como se verá, o estímulo à judicialização não fez com que o Poder Judiciário deixasse de se tornar um meio de perpetuação de privilégios.

Com a promulgação da Constituição, o acesso ao Poder Judiciário foi sobremaneira facilitado e, paralelamente, a cultura cartorial fez com que centenas de milhares de pessoas quisessem acorrer ao serviço público.

Se, até meados da década de 1990, havia pouco mais de 200 faculdades de direito, atualmente chegamos ao paroxístico número de 1.896 cursos de autorizados a funcionar e cerca de 1.370.000 advogados aptos a atuar no foro em geral, ou seja, 0,6% da população economicamente ativa.

Como resultado, houve uma explosão de demandas judiciais, algumas das quais achavam-se efetivamente represadas, mas a grande parte versando sobre questões frívolas, massificadas ou predatórias.

O fenômeno da litigiosidade hiperinflacionada é o resultado de diversas concausas.

Se o Projeto de Florença de Acesso à Justiça, que remonta à década de 1970, concebido pelas penas geniais de Capelletti e Garth, se mostrava consentâneo com o ambiente vivenciado naquela quadra histórica, o certo é que as três primeiras “ondas” ali plasmadas, notadamente aquela que visava à amplificação de acesso ao sistema judicial por meio da derruição de barreiras econômicas, culminou por incentivar a litigância predatória sob o broquel da gratuidade judiciária, causando proliferação de demandas sem lastro jurídico, o que conta com interesses corporativos, como a vedação da condenação de advogados nas sanções da litigância de má-fé.

O próprio Bryant Garth, certamente cônscio dos efeitos nefastos da hiperinflação judicial, já no ano de 2019 concebeu quatro novas ondas renovatórias em seu “Global Access to Justice Project” [1], uma das quais, mais precisamente a “quarta onda”, não é senão a “ética nas profissões jurídicas e acesso dos advogados à justiça”.

Não se trata, portanto, de um fenômeno exclusivamente tupiniquim.

O predatório invadiu os fóruns

As chamadas demandas predatórias simplesmente invadiram os fóruns brasileiros de forma desavergonhada, acompanhadas da robotização, da formulação de demandas por meio de petições genéricas, tudo facilitado por um processo judicial eletrônico que possibilita que um escritório especializado nesse tipo de demanda as ajuíze em fóruns distantes milhares de quilômetros de sua sede.

A concessão indiscriminada da gratuidade judiciária apenas aguilhoa ainda mais o ajuizamento desse tipo de demanda.

Tal fenômeno vem impactando fortemente o orçamento dos tribunais, que se veem obrigados a inverter substanciais quantias no desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial e outras ferramentas destinadas a identificá-las e, ainda timidamente, coibi-las.

Desenvolveu-se um comércio intrincado de informações sobre contratos, inscrições em cadastros de inadimplentes, boletins de acidente de trânsito, propiciando a prospecção de clientes e o ajuizamento formulário de ações.

De se mencionar, outrossim, um outro anátema que é causa de grande mobilização de recursos públicos e de gasto de tempo e energias judiciais, que são as demandas de cobrança lato sensu promovidas por instituições financeiras que, quando já baldadas todas as tentativas de recobrarem seus créditos, inclusive mediante utilização de meios coativos, como inscrições em cadastros de inadimplentes, e cônscias da natureza putrefata de tais créditos, insistem na cobrança judicial.

Judiciário e instituições financeiras

Há um estímulo muito especial para esse fenômeno.

O artigo 347 do Regulamento do Imposto de Renda (RIR/2018) autoriza a dedução, como despesa, para fins de determinação do lucro real das instituições financeiras, as perdas no recebimento de créditos, mas desde que “iniciados e mantidos os procedimentos judiciais para o seu recebimento”, justamente nos casos de créditos podres de valores superiores a R$ 50 mil e R$ 100 mil, conforme o crédito esteja ou não garantido.

É o Estado estimulando não só o ajuizamento, mas também a manutenção em atividade de processos judiciais fadados ao fracasso, visando a fomentar os lucros contábeis de instituições financeiras.

É dizer, aqui, o Poder Judiciário atua como agente involuntário no incremento do lucro de instituições financeiras e de seus acionistas, em detrimento de toda uma massa de jurisdicionados que realmente necessita de a ele aceder para fazer valer seus mais comezinhos direitos.

Qualquer um que se debruce sobre um processo de execução extrajudicial promovido por instituições financeiras poderá constatar que as petições, na imensa maioria dos casos, limitam-se a postular medidas que já foram adotadas, inclusive em relação a pessoas jurídicas tidas por inaptas pela Receita Federal, e que, por isso, não podem manter relações creditícias com instituições financeiras ou sequer emitir notas fiscais (artigo 49, inciso II, alíneas ‘d’ a ‘f’ da Instrução Normativa RFB nº 2119, de 2022).

Tais instituições financeiras são patrocinadas por grandes bancas de advocacia que praticam a “advocacia de partido”, que consiste, regra geral, na cobrança de um valor periódico fixo por ação ou lote de ações.

Esses valores justificam a contratação de advogados com remuneração pífia e são eles que pagam as contas de consumo das bancas, que poderão dedicar mais tempo e energias para as “ações nobres” e cujos resultados impactarão positivamente no lucro presumido e, a fortiori, na distribuição de lucros livres de imposto de renda.

Caso as bancas financeiras houvessem de contratar pontualmente advogados para a defesa de seus interesses, pagando honorários condizentes com os preconizados pelos conselhos seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil,  certamente haveria uma divisão do bolo e não estaria a maior parte dos advogados à míngua, a atuar como correspondentes, dativos ou a se dedicar a atividades paralelas para proverem seus sustentos e de suas famílias.

Há, portanto, uma retroalimentação perversa do sistema em que o Poder Judiciário, distraído de sua finalidade precípua, que é a de trazer alguma dose de paz social e de justiça a quem realmente dele necessita, geralmente vulneráveis sob todos os aspectos, figura como ator principal no proscênio de sistema que não deixou de ser elitista pela ampliação do acesso à Justiça.

Se comparados com a organização desse sistema que atulha o Poder Judiciário de demandas fadadas ao fracasso, ou predatórias, os gabinetes judiciários atuam como verdadeiros pequenos “exércitos de brancaleone”, sem falar no adoecimento de muitos servidores e magistrados que, preocupados com aquelas poucas demandas que realmente tocam diretamente na vida do cidadão, veem-se obrigados a mourejar para a perpetuação de um sistema contraproducente e que produz resultados a muitos poucos, e que se presta, posto que involuntariamente (quero eu crer) para a ampliação do fosso das desigualdades sociais.

Fica, então, a pergunta inicial:  a jurisdição civil em crise. Quem realmente aproveita?

 


[1]     https://globalaccesstojustice.com/book-outline/?lang=pt-br

Autores

  • é juiz titular da 2ª Vara Cível de Contagem (MG), pós-graduado em Direito de Empresas pela PUC-Rio e graduado em Direito pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Foi procurador e procurador-geral adjunto da Fazenda Nacional, além de procurador regional da Fazenda Nacional da 1ª Região.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!