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Operadores do Direito não precisam de poesia: juristas, sim!

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9 de outubro de 2024, 8h00

Metaforicamente, certa feita um poeta encontrou-se com um operador do Direito no centro de uma cidade agitada, ao passo que este, engravatado, carregando mala e com sapatos lustrosos, dirigiu-se ao poeta como se já o conhecesse de algum lugar e em dado momento verbalizou “acho que já nos vimos, senhor”. O poeta, sofisticado a ponto de ser simples [1], olhou com olhar de azul-perdão [2] para o operador do Direito e arrematou: “eu o vi nascer, garoto”. É como se o poeta dissesse: primeiro os fatos, depois o Direito; primeiro pessoas humanas, depois suas categorizações sociais e econômicas e por aí vai.

Explica-se com a ciência do Direito. Se a teoria tridimensional de Miguel Reale registra que Direito é fato, valor e norma [3], então esse caminho do fato à norma carece de uma conduta animada que só o ser humano pode operar (melhor seria: concretizar, como fazem juristas), o que se faz por meio da hermenêutica jurídica [4], procedimento de interpretação e aplicação do Direito a casos concretos (quando se verifica o fato e se valora de acordo com o direito posto e pressuposto).

Ocorre que, em se tratando de operador de direito, como o nome sugere, a ação passa a ser operacionalizada no modo autômato e, a bem da verdade, poderia inclusive ser trocada em algum momento da história mundial e do avanço das tecnologias generativas por máquinas (não é novidade que pululam notícias sobre machine learning, decisões automatizadas, IA no Judiciário etc. [5]). Aqui entende-se que operadores do Direito são, como diz Eros Grau em Por que tenho medo dos juízes [6], apenas operários de chão de fábrica (sem demérito a esta classe operária), despidos de qualquer valoração do serviço que precisam fazer dentro de um contexto pré-determinado (algo como Charles Chaplin no filme Tempos Modernos [7].

Esses operadores, já se pode intuir, verdadeiramente não carecem de poesias, de versos, de humanidade para bem procederem ao seu mister. Portanto, se o caro leitor ou leitora dessas breves divagações não se contenta em ser operador do Direito, aí ele precisará, invariavelmente, de poetas e de suas poesias, como passo a tentar convencê-lo.

Que têm a ver poesia e Direito?

Pois bem: a ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia, em seu recente livro Direito de/para todos, aponta que “os animais não fazem escolhas contra sua condição: a onça não ‘desonça’, o lobo não ‘desloba’, a serpente não ‘desserpenta’. O ser humano desumaniza-se!” [8]. Ou seja, ao contrário dessas constatações de que a natureza não perde sua essência ao longo da existência, o ser humano é o único que consegue se desumanizar. A existência de uma Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) — para ficar em um único exemplo — e os horrores que a antecederam em grande medida por conta de operadores de textos jurídicos (fatos valorados e com resultado norma) é prova cabal da capacidade que tem o ser humano de perder sua essência.

Mas o leitor ou a leitora, com razão, pode estar se perguntando: mas textos normativos não têm como uma de suas características exatamente serem genéricos? Pois é, mas direitos humanos se afirmam não por sua formalidade, mas sim por sua materialidade [9]. É dizer: no plano individual a menina dos olhos de ouro da Constituição Federal Brasileira (reproduzindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 1º) é a dignidade da pessoa humana, e não por outro motivo é o princípio continente do qual todo o mais é conteúdo.

E de que forma poetas e suas poesias podem vir a auxiliar juristas no campo do Direito, nomeadamente na interpretação e aplicação humanizada de textos normativos? Ora, enquanto o Direito é geral e genérico, e os operadores acabam por coisificar não raras vezes até sujeitos de direitos, os poetas tudo personalizam, em absoluto, razão pela qual não existe condição de existência de diálogo profícuo entre poetas e operadores do Direito.

Confirma o que ora afirmo o constitucionalista alemão Peter Haberle, no livro Poesia e Direito Constitucional, quando aponta que enquanto o Direito é campo fechado para interpretações, a poesia persegue holisticamente analisar possibilidades, sempre com personalidade e singularidade [10]. Com este entendimento adentrou-se ao ordenamento jurídico brasileiro o instituto jurídico/poético das amici curiae.

Também, no Brasil, o ministro do STF Gilmar Mendes, quando reflete: “que têm a ver poesia e Direito? Tudo. Afinal, se pela via das definições, a jurisprudência persegue a certeza, é a indeterminação da poesia que possibilita a abertura e transformação do sentido necessárias à apreensão dos conceitos jurídicos, principalmente numa sociedade aberta de intérpretes constitucionais” [11].

Tudo é singular

Dito isto, trago à baila duas hipóteses para que o jurista ou a jurista (aqui os operadores saem da conversa) perceba a importância da personificação, da singularização, na medida do possível, do direito posto, em busca mesmo de melhor ouvir (escuta qualificada) para interpretar/aplicar dispositivos normativos.

  1. Há uma poesia do insuperável Mario Quintana, chamada Marciano (publicada no livro Esconderijos do Tempo, em 1980) que lá pelas tantas registra “Uma cadeira? Não. A cadeira. Tudo é singular! ”. O poeta gaúcho estava a se referir a uma coisa, a um bem, e ainda assim se percebe o cuidado ao tirar o trecho do artigo indefinido para o definido “a”.
  2. Novamente Mario Quintana. O poeta gaúcho escreveu “Seiscentos e sessenta e seis”, versos que refletem, digo eu, acerca da importância de sermos pessoas de fazer, de ação, em detrimento de somente cadáveres adiados que procriam (Fernando Pessoa, mas poderia ser Machado de Assis em sua fase realista):

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.

Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…

Quando se vê, já é 6ª-feira…

Quando se vê, passaram 60 anos!

Agora, é tarde demais para ser reprovado…

E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,

eu nem olhava o relógio

seguia sempre em frente…

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

Não confessei entre parênteses o destaque que fiz logo após a última palavra, como manda a norma de regência, mas agora explico que coloquei em itálico o trecho “a vida é uns deveres” para mostrar que, ao contrário do que fez, p. ex., Antônio Abujamra, em sua declamação destes versos [12] (começou por alterar “a vida é uns deveres” para “a vida são deveres”, talvez com preocupações terrenas, gramaticais), o poeta (digo eu novamente), que sempre personifica tudo, nunca deixaria a vida, logo a vida, em plural: a vida é.

Em uma frase: a poesia vence o direito [13] se o assunto é humanizar-se, e este, por meio de seus agentes transformativos (expressão da ministra Cármen Lúcia [14]), precisa ouvir e aprender muito com aquele sempre que não admitir ser operador, mas jurista que intenta concretizar (aqui você faz parte da criação, caro leitor ou leitora que conseguiu ler até aqui em tempos de bet) uma sociedade livre, justa e solidária.

 


[1] Leonardo da Vinci.

[2] BARROS, Manoel. O fotógrafo. Meu quintal é maior do que o mundo: 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015, p. 115.

[3] “A compreensão tridimensional do Direito sugere que uma norma adquire validade objetiva integrando os fatos nos valores aceitos por certa comunidade num período específico de sua história. No momento de interpretar uma norma é necessário compreendê-la em função dos fatos que a condicionam e dos valores que a guiam. A conclusão que nos permite tal consideração é que o Direito é norma e, ao mesmo tempo, uma situação normatizada, no sentido de que a regra do Direito não pode ser compreendida tão somente em razão de seus enlaces formais”. In: Revista Estudos Filosóficos nº 14/2015 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME – UFSJ – São João del-Rei-MG Pág.   201 – 212.

[4][4] “A palavra hermenêutica deriva do grego hermeneuein, adquirindo vários significados no curso da história. Por ela, busca-se traduzir para uma linguagem acessível aquilo que não é compreensível. Daí a ideia de Hermes, um mensageiro divino, que transmite – e, portanto, esclarece – o conteúdo da mensagem dos deuses aos mortais. Ao realizar a tarefa de bermeneus, Hermes tornou-se poderoso. Na verdade, nunca se soube o que os deuses disseram. Trata-se, pois, de uma inter(mediação). Desse modo, a menos que se acredite na possibilidade de acesso direto às coisas (enfim, a essência das coisas), é na metáfora de Hermes que se localiza toda a complexidade do problema hermenêutico. Trata-se de traduzir linguagens e coisas atribuindo-lhes um determinado sentido.” In: STRECK, Lenio. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Casa do Direito, 2020, p. 120. Já sobre a hermenêutica jurídica, Luís Roberto Barroso: “A hermenêutica jurídica consiste na atividade de revelar ou atribuir sentido a textos ou outros elementos normativos (como princípios implícitos, costumes; precedentes), notadamente para fins de solucionar problemas”. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 2011. (Malheiro, 2023).

[5] Sobre o tema: Decisões automatizadas no Judiciário: a necessidade de revisão humana. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2023-dez-21/decisoes-automatizadas-no-judiciario-a-necessidade-de-revisao-humana/>. Acesso: 6 out. 2024.

[6] GRAU, Eros Roberto. Por   que   tenho   medo   dos   juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). 6. ed., São Paulo: Malheiros Editores. 2013.

[7] Tempos Modernos é um filme de 1936 idealizado por Charles Chaplin. A produção se tornou um clássico do cinema e é uma das mais conhecidas do cineasta.

[8] ROCHA, Carmén Lúcia Antunes. Direitos de/para todos. Ilustração Candido Portinari, 1ª ed., Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2024, p. 190.

[9] ROCHA, Carmén Lúcia Antunes. Direitos de/para todos. Ilustração Candido Portinari, 1ª ed., Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2024, p. 10.

[10] HABERLE, Peter. Um diálogo entre poesia e direito constitucional. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: Saraiva, 2017.

[11] MENDES, Gilmar. Da apresentação à edição brasileira. HABERLE, Peter. Um diálogo entre poesia e direito constitucional. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 5.

[12] Antônio Abujamra declara Mario Quintana. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=473CuobszBc.> Acesso em: 6.10.2024.

[13] “(…) uma balança, em que o prato que contém uma rosa é mais pesado que o que contém um código: a poesia vence o direito”. CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. Introdução de Paolo Barile; tradução de Eduardo Brandão. 2ª ed. – São Paulo Editora WMF Martins Fontes, 2015, p. 18.

[14] “Hoje, queremos ‘ações transformativas’. É preciso transformar para humanizar”, acrescentou. Isso inclui, segundo ela, “conceder espaços para que sejam igualados aqueles que foram segregados historicamente, como negros, indígenas e mulheres”. “Que nós possamos nos igualar na nossa condição humana, que é única”, conclamou. ” In: Constituição de 1988 foi marco da ‘recriação’ do Estado brasileiro, diz ministra Cármen Lúcia. Disponível em: < https://ufmg.br/comunicacao/noticias/constituicao-de-1988-foi-marco-da-recriacao-do-estado-brasileiro-diz-ministra-carmen-lucia>. Acesso: 6 out. 2024.

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