Opinião

Código Civil da China: tradição romanística ocidental e direito tradicional chinês

Autores

  • é doutora em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) professora titular da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e professora visitante na Università degli studi di Milano - Bicocca (UNIMIB-1) na Alma Mater Studiorum Università di Bologna (UNIBO) na Università degli studi Del Sannio (UNISANNIO) na Università degli studi 'Gabriele - D'Annunzio Chieti-Pescara (UNICH) e na Università degli studi di Foggia (UNIFOGGIA).

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  • é graduanda em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e bolsista de iniciação científica pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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6 de outubro de 2024, 7h08

O Código Civil chinês (2020) é o primeiro da China continental desde 1949. Além da consolidação das legislações civis existentes, o Código incorporou modificações doutrinárias e estruturais que são significativas dentro e fora do gigante asiático. Promulgado em 1º de janeiro de 2021, representa uma mescla entre tradição e inovação, de forma que une os pilares do direito chinês às bases do sistema romano-germânico, estas trazidas pelos legisladores italianos convidados a integrar a codificação chinesa.

Reprodução

Na China, houve uma série de tentativas de codificação civil fracassadas no século 20, mesmo com a promulgação do Código Civil japonês em 1898, fruto da contribuição alemã. No ano de 1931, aprovou-se um código que nunca foi aplicado de forma ampla, exceto em grandes centros, especialmente tendo em vista a ocorrência de alguns eventos, como a invasão japonesa (1931-1932) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) [1].

Nesse sentido, para entender como se deu o processo de codificação na China, é preciso retomar os pilares do direito chinês. Assim, observa-se que o taoísmo, o legalismo e o confucionismo são as escolas filosóficas que se destacam.

O taoísmo, por meio do princípio do Tao (caminho), propõe ao ser humano que busquem se juntar ao infindável devir, isto é, o eterno fluxo e movimento de mudança do universo, devendo se abstrair do mundo terreno e se integrar à transformação. Caracteriza a chamada busca pelo “vazio”, por meio da concepção de ordem espontânea de equilíbrio na sociedade.

Por outro lado, o confucionismo propõe o caráter humano como um fundamento para a organização da sociedade e o preparo intelectual como necessário para a governança, de forma similar às ideias de Sócrates e Platão, respectivamente.

Para Confúcio, a integração dos seres à transformação eterna se daria pelo cultivo de valores que aproximam o indivíduo da perfeição do Universo, sendo eles a humanidade, perdão, justiça e temperança, por exemplo [2].

União de filosofias para formar cultura milenar

Dessa forma, assim como yin e yang, o taoísmo e o confucionismo caracterizam dois polos inatos do caráter chinês. Isso significa que, enquanto o taoísmo reflete o polo espontâneo, natural e romântico, o confucionismo representa o polo clássico e responsável socialmente [3].

No que se refere ao legalismo, trata-se de uma escola focada na realidade, que diverge consideravelmente do confucionismo, no que se refere ao entendimento da natureza humana.

Os filósofos legalistas utilizam os conceitos de “bem” e “mal” para compreender a natureza humana, de forma a interpretar o ser humano como detentor de egoísmo inerente. Assim, em vez de serem movidos pela preocupação com o coletivo, os seres humanos estão preocupados com o ganho pessoal, buscando sua felicidade, acumulando riqueza e evitando o mal [4].

Spacca

Apesar de bem distintas, as três escolas de pensamento se unem ao formar a cultura chinesa milenar, que preconiza pelo controle social baseado na tradição e acaba por influenciar na construção do Código Civil de 2021.

A partir da Revolução de 1911, que depôs a última Dinastia Imperial, observou-se o início do enfraquecimento do confucionismo, que chegou ao seu ápice com a ascensão dos princípios marxistas, durante a Era Maoísta. Nesta mesma época, com a fundação da República Popular da China em 1949, o interesse no direito romano que existia até então começou a se enfraquecer, até a sua eliminação no período da Revolução Cultural, entre 1966 e 1976.

Com a tomada de poder de Deng Xiaoping, em 1978, presenciou-se a volta da influência dos ideais confucionistas e a retomada do estudo do direito romano nas universidades. A seguir, ocorreu a aprovação dos princípios gerais do direito civil, no ano de 1986, seguida da promulgação de algumas leis especiais relacionadas ao direito privado.

Entretanto, foi a partir de 1989 que o diálogo entre o direito chinês e o direito romano abriu novas portas: um encontro entre o professor Sandro Schipani e o professor Jiang Ping, na Faculdade de Direito da Università degli Studi di Roma Tor Vergata, que suscitou uma série de colaborações entre juristas italianos e chineses [5].

A partir disso, torna-se possível discutir a influência romana na criação do Código chinês, cuja aprovação se deu em 28 de maio de 2020, pela Assembleia Popular Nacional. Para a elaboração, o governo chinês contou com o auxílio de dois importantes juristas italianos: Oliviero Diliberto e Sandro Schipani. Ambos os professores titulares da Universidade de Roma “La Sapienza” fizeram parte da formação da classe de juristas que redigiram o texto legal, além de terem realizado a tradução do Corpus Iuris Civilis, do latim para o mandarim [6].

Dentre as razões pelos juristas chineses terem optado pelo modelo romano em vez do modelo consuetudinário, estão: a racionalidade do direito romano; a proximidade entre as culturas jurídicas chinesa e japonesa; e os intercâmbios ocorridos entre universidades chinesas e italianas, a partir da década de 1980 [7].

Código simplificado a partir de 2014

O referido processo de codificação se iniciou em 2014, com a decisão do Comitê Central do Partido Comunista Chinês de desenvolver um código que simplificaria inúmeras disposições em matéria civil e comercial. Nesse âmbito, no ano de 2017, promulgou-se a Parte Geral do Direito Civil da República Popular da China.

A seguir, em dezembro de 2019, a 15a Sessão da 13a Assembleia Nacional Popular examinou o projeto formado em novembro — que hoje corresponde à versão definitiva — e o colocou à disposição dos cidadãos chineses no site oficial, para recebimento de sugestões. Logo em seguida, em maio de 2020, se deu a sua aprovação.

O texto civilístico é composto por mais de 1200 artigos, divididos em sete livros correspondentes a: (i) disposições gerais; (ii) direitos de propriedade; (iii) contratos; (iv) direitos de personalidade; (v) casamento e família; (vi) sucessão; e (vii) responsabilidade civil. O Código Civil chinês se destaca dos demais pelo fato de legislar sobre temas contemporâneos, como biossegurança, proteção de dados, preservação do meio ambiente e inovações científicas [8].

Assim sendo, a tarefa de elaborar o Código da República Popular da China não foi simples e exigiu dos juristas muita cautela, tendo em vista alguns desafios a serem enfrentados, como a proteção dos bens estatais em uma economia predominantemente privada, a adaptação do direito privado ocidental para atender a um sistema parcialmente estatal e a reconciliação de normas conflitantes.

O novo Código Civil, portanto, marca um importante passo para a China continental e além, ao incorporar valores tradicionais chineses, práticas internacionais e a engenhosidade necessária para enfrentar os desafios contemporâneos do século 21 [9]. Ao cabo, representa o interesse da República Popular da China em aproximar suas relações com os países do Ocidente, ao mesmo tempo, em que preserva suas raízes histórico-culturais milenares.

 


[1] HUANG, Meiling (trad.). Codice civile della Repubblica Popolare Cinese. Curadoria de Diliberto Oliviero, Dursi Domenico, Masi Antonio. Introdução de Diyu Xu. Torino: G. Giappichelli Editore, 2020.

[2] LI, Weng. Philosophical Influences on Contemporary Chinese Law. Indiana International and Comparative Law Review, Indianápolis, v. 6, n. 2, p. 327-336, 1996. Disponível em: https://journals.iupui.edu/index.php/iiclr/article/view/17643/17705, acesso em 30.09.24.

[3] CORDEIRO, Ana Lúcia Meyer. Taoísmo e Confucionismo: duas faces do caráter chinês. Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 6, n. 1, p. 4-11, 2009. Disponível em: http://www.ufjf.br/sacrilegens/files/2010/04/6-2.pdf, acesso em 30.09.24.

[4] LIU, Dongwang. Differences and integration of political thought between ancient Chinese Confucianism and legalism. Trans/Form/Ação, v. 47, n. 4, p. 1-14, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0101-3173.2024.v47.n4.e0240042, acesso em 30.09.24.

[5] CILIBERTI, Eugenio. Il dialogo tra diritto cinese e tradizione romanistica nella prospettiva del codice civile della repubblica popolare cinese: un esempio di “solidarietà eurasiatica”? Revista General de Derecho Romano, Madri, v. 41, p.1-26, dez. 2023.

[6] BRUNO, Mauro. Codice civile cinese: una novità “made in Italy”. 2021. Disponível em: https://inchiostrovirtuale.it/codice-civile-cinese/, acesso em 29.09.24.

[7] UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI ROMA “LA SAPIENZA”. Il Nuovo Codice Civile Cinese del 28 maggio 2020. Oltre le Sfide della Globalizzazione tra Diritto Romano e Comparazione. 2022. Disponível em: https://research.uniroma1.it/il-nuovo-codice-civile-cinese-del-28-maggio-2020-oltre-le-sfide-della-globalizzazione-tra-diritto, acesso em 30.09.24.

[8] CHINA. 中华人民共和国民法典 (Código Civil da República Popular da China). Pequim, Hebei: Agência de Notícias Xinhua, 2020. Disponível em: https://www.gov.cn/xinwen/2020-06/01/content_5516649.htm, acesso em 01.10.24.

[9] JIANG, Hao; SERENA, Pietro (ed.). The Making of the Chinese Civil Code. Promises and Persistent Problems. Cambridge: Cambridge University Press & Assessment, 2023.

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