Segunda leitura

A complexa reportagem da Veja sobre venda de sentenças no STJ

Autor

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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6 de outubro de 2024, 8h00

Reportagem da revista Veja, de 4 de outubro de 2024, edição nº 2913, com o título “PF investiga rede de venda de sentenças que envolve até funcionários do STJ” [1], circulou intensamente nas redes sociais nos últimos dias, provocando as mais variadas reações, predominando, contudo, as negativas. O título foi cauteloso. Não acusa explicitamente, menciona apenas o verbo “investiga”. Por outro lado, não acusa nenhum ministro, mas sugere que a corrupção envolva “até funcionários do STJ”.

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Ainda assim, inegavelmente, foram atingidos diretamente os ministros Isabel Gallotti, Og Fernandes, Nancy Andrighi e Moura Ribeiro, titulares dos gabinetes sob investigação e, indiretamente, toda a corte, incluindo, por óbvio, todos os ministros que a compõem. É oportuno deixar expresso que os quatro ministros atingidos diretamente detêm absoluto respeito da comunidade jurídica, fruto de suas carreiras bem conduzidas.

O caso que originou as investigações não tem, nestes comentários, maior relevância. O que interessa pôr às claras é que administrar um gabinete no STJ é, atualmente, atividade de enorme complexidade. Cada gabinete conta, em média, com cerca de 40 a 50 servidores, algo bem diverso de um gabinete de justice da Suprema Corte do Reino Unido, onde trabalha apenas um assessor.

Vejamos, pois, como funcionam os gabinetes de ministros do STJ.

Cada ministro tem alguns assessores, muitos possuem também o auxílio de dois juízes de primeira instância, que são convocados por determinado período. A eles cabem funções variadas, como processos de alta complexidade, sigilosos ou atender, com exclusividade, advogados.

Aos assessores, que ocupam cargos de confiança, cabe refinar os votos e liderar núcleos temáticos. Essa não é uma regra absoluta, mas, sim, um procedimento predominante. Por exemplo, um gabinete criminal terá núcleos por matéria, como HC. Dá-se o mesmo nos TRFs, onde núcleos são criados dentro de matérias especializadas. Por exemplo, um gabinete de previdenciário terá núcleos como o de aposentadoria por tempo de serviço. Ganha-se na produtividade e uniformizam-se posições.

Para alimentar a produção, é preciso gente a trabalhar. Ou será que alguém imagina que seria possível cada ministro receber centenas de processos diariamente, alguns com dezenas de volumes e centenas de documentos, e lê-los atentamente, com livros de doutrina ao lado, auxiliando-o? Assim era no passado, antes da Constituição de 1988.

Então, cada núcleo terá um comando que fará um exame preliminar do projeto feito pelos servidores, que serão técnicos judiciários e analistas concursados e, aprovando-o, encaminharão ao ministro. O assessor conduzirá a decisão, de acordo com a orientação do ministro sobre a posição genérica de como deverá ser tomada na matéria. Ele colocará a versão preparatória no sistema, para avaliação do ministro, ali ficando a sua digital, que é a prova da sua participação. Claro que o que aqui se afirma é em termos gerais, certamente em um ou outro gabinete existirão rotinas com diferenças. Mas de algo parecido nenhuma escapará.

Cada ministro, só para ler o projeto de voto proposto ao final, perderá bom tempo de seu dia. Por exemplo, nos gabinetes criminais entram cerca de 40 HC por dia, todos querendo liminar. Ler os projetos toma muito tempo e este tem de ser dividido com exame do mérito de outros projetos de voto, revisão de votos de outros ministros, participar de sessões, atender aos advogados e, se der tempo, viver.

Na reportagem, de forma muito mais genérica do que aqui foi exposta a matéria, afirma-se que cabe aos “assessores preparar as minutas que subsidiam as decisões do magistrado, através da análise de documentos nos autos. Se mal-intencionados, eles podem de fato manipular essas informações e induzirem os magistrados a erro”.

Aqui a parte mais sensível do problema. Como pode haver manipulação de votos?

A primeira forma de corrupção em tribunais é um assessor, ou mesmo os que lhe são subordinados, ter conhecimento do voto já aprovado e de, com a certeza do resultado, fazer contato com o advogado interessado, garantindo a vitória mediante pagamento de determinada quantia. Pode o ministro ser tido como “vendido” sem que nada saiba a respeito. Isso não é comum, mas já ocorreu muitas vezes em tribunais de segunda instância há décadas. Não há antídoto contra tal prática, a única forma de combatê-la é a total e irrestrita confiança no assessor. E aí fica por conta de cada desembargador ou ministro, não havendo lugar para a ingenuidade.

A outra ─ e a ela se dirige a reportagem ─ é inversa, ou seja, a posição a ser tomada vem da base, dos assistentes nos núcleos ou, eventualmente, da própria assessoria. Quem estuda o conflito prepara uma decisão favorável à tese do advogado corruptor, submetendo-a ao escalão superior. Dificuldade: a tese não poderá contrariar posição clara do ministro em sentido oposto. Facilidade: a existência de muitos temas diversos nas alegações e de provas (o STJ, na prática, as examina) pode facilitar a justificativa de que o caso é diferente da posição normalmente adotada pelo ministro, o que admitiria voto favorável.

O antídoto aqui ainda não foi descoberto. A confiança em 40 pessoas é impossível, não há como conhecê-las mais profundamente.

Uma terceira modalidade pode surgir e ser a mais complexa, ou seja, casos individualizados. Algo comum no âmbito do Direito Civil e do Empresarial, por vezes discutindo-se contratos feitos no exterior, matéria nova e sem precedentes.

Mas, se solução certa não há, auxílios paralelos têm de ser tentados. Por outro lado, algo tem que ser feito. A pensar:

a) Orientar assessores e demais servidores para que não forneçam número de telefone celular aos advogados das partes para remessa de memorial ou outra medida, evitando uma proximidade inconveniente. Para os memoriais deverá haver um e-mail especifico, único.

b) O acesso ao gabinete, mesmo de concursado, exige a aprovação do ministro. O aceite costuma ser automático, face à necessidade permanente de auxílio. Mas o exame do CV e uma entrevista feita por um assessor poderiam auxiliar em caso de dúvidas.

c) Exigir dos líderes dos núcleos acompanhamento mais próximo de seus subordinados, o que implica em conhecimento da vida fora da corte, pode ser também de grande utilidade.

d) A OAB divulgar os resultados de suas investigações sobre advogados acusados de tal tipo de corrupção é imprescindível. Atualmente, nada se sabe sobre os processos administrativos disciplinares da Ordem, o que revela conduta incongruente, pois, apesar de cobrar transparência das instituições públicas, não as pratica.

Em suma, no STJ, mas não só nele, tramitam ações milionárias que despertam a ambição dos corruptos e eles vêm crescendo em números, estimulados pelo ineficiente sistema de Justiça brasileiro. O aspecto relatado pela Veja não é rotina, nem a ameaça paira de forma constante nos recursos, recusando-se a maioria absoluta dos advogados a adotar tal prática e servidores a valerem-se dela. Mas o alerta foi dado.


[1] Veja. “PF investiga rede de venda de sentenças que envolve até funcionários do STJ. Disponível em: file:///C:/Users/Usuário/Documents/STJ%20VEJA/PF%20investiga %20rede%20de%20venda%20de%20sentenças%20que%20envolv…%20%20VEJA.pdf. Acesso em: 8/10/2024.

Autores

  • é presidente da ALJP (Academia de Letras Jurídicas do Paraná); professor de Direito Ambiental e Sustentabilidade; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador federal aposentado, ex-presidente do TRF-4. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e do Ibrajus ( Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário).

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