Alvo da vez das agências de segurança: lavagem, iter criminis e jogos de azar
5 de outubro de 2024, 15h22
Este não é um texto de ode às apostas esportivas ou a qualquer tipo de apostas existentes, legalizadas ou não. Mas também não é um texto de ode ao combate às apostas e à lavagem de dinheiro a todo custo, embora essa seja a lógica que parece imperar no cotidiano policialesco brasileiro. Isso porque, pelo que se nota, há um novo troféu a ser exibido nas mídias. Há um novo alvo.
As agências de segurança pública encontraram um novo foco, algo para se apontar os holofotes na eterna caça às bruxas da segurança pública. E a bruxa da vez é composta pelo combo que vende jornais: apostas esportivas e lavagem de dinheiro.
O problema é que nem tudo que parece é. Os mesmos que apontam os holofotes esquecem de contar esse leve detalhe. Nem que tudo o que parece ter sido lavado, de fato o foi. E é disso que se trata este texto. A ideia aqui, portanto, é falar sobre o que não é lavagem de dinheiro. Em outros termos, o texto intenciona diferenciar a lavagem de dinheiro do mero exaurimento de uma infração penal antecedente cujo resultado foi, ao agente, a obtenção de bens e patrimônio de forma ilícita.
Antes de tudo, é preciso falar rapidamente sobre o chamado iter criminis. Para a dogmática penal, o iter criminis é, em tradução livre, o caminho do delito. [1] E mesmo que isso pareça redundante, é necessário entendê-lo. Primeiro, há, nesse caminho, o espectro da cogitação. Nesse campo, o agente não é punido, a menos que seja um integrante de Minority Report.
A cogitação é o campo inacessível. É inatingível ao Estado ou a qualquer agência de poder invadir a mente humana. O agente pode cogitar as maiores atrocidades aos seus pares e, se não as colocar em prática, não será punido. Pode-se pensar mil formas de lesionar alguém, de furtar, desviar verbas e outros ilícitos. Nada disso importa.
A simples cogitação não é punível.[2] Moral e legalmente não se pode pensar em punição ao simples pensar. Somente quando se coloca em prática algo nefasto, que causa ofensa a um bem jurídico alheio — individual ou coletivo —, é que o Estado pode intervir.[3]
É aí que surge o direito penal e se entra no segundo passo do iter criminis. Para fazer algo, é preciso preparar-se para tanto. Se o sujeito pensa em sonegar alguns tributos, ele não pode ser punido por isso. Se a preparação para isso começa com o desenho de um plano em uma folha de papel, isso também não pode ser punido.
Outro exemplo, para ficar mais claro: se o sujeito, pensando em se vingar de alguém que lhe causou injusto mal, adquire uma arma de fogo, faz cursos de tiro e, apesar de toda a cogitação e preparação, não coloca seu intento homicida em prática, não haverá punição. Duas etapas vencidas do iter criminis e nada de intervenção estatal.
Até este momento, o Estado permanece inerte, ali observando, aguardando o momento certo para chamar o seu cão de guarda, o direito penal. Eis um ponto importante, portanto. A cogitação e a mera preparação não são puníveis. Há exceções quanto à última, no entanto. Uma delas é a clássica dos livros, aquela prevista no artigo 291 do Código Penal. [4]
Para a norma penal, há atos preparatórios para a falsificação de moeda, como o fornecimento do aparelho necessário para tal ato. Nesse caso, considera-se uma preparação à falsificação da moeda, sendo, portanto, punível. Outro delito considerado ato preparatório, é o previsto no artigo 288 do Código Penal. Aliás, essa é uma espécie de ato preparatório bastante questionável. De todo modo, não é o foco aqui. A luz deve estar voltada aos passos do iter criminis e a quanto isso interessa ao assunto principal.
Intervenção do Estado para apuração
Seguindo adiante, pode-se falar da execução, momento que inicia a atenção do Estado. Iniciada a execução, mesmo que o agente desista no meio do caminho, seja porque foi impedido por alguém, seja porque o meio escolhido à prática do delito não lhe emprestou hábil assessoria, haverá intervenção estatal. Eis o terceiro passo do iter criminis.
Se aquilo que foi cogitado e preparado passou à fase da execução, o Estado intervirá e o caso será apurado. Por exemplo, se um indivíduo dá início ao ato de matar alguém, mas, por circunstâncias alheias a sua vontade, é interrompido, se estará diante de uma tentativa de homicídio. [5] É o exemplo básico, dos livros à sala de aula.
Em outro exemplo, se o cidadão decide furtar os objetos dentro de um veículo, e, ao quebrar o vidro, desiste do furto, e mesmo assim é flagrado, responderá apenas pelo dano ao patrimônio alheio (ainda que no furto o bem jurídico seja o mesmo). [6] Há inúmeras e diversas hipóteses e exemplos de início da execução. O que é preciso compreender, de fato, é que quando esta etapa é iniciada, se passou à primeira fase considerada punível no iter criminis.
A última etapa e mais importante é a da consumação. [7] Aqui não há escapatória. Não há como se furtar às presas estatais. Se consumado o ato de matar, o autor do fato responderá criminalmente e correrá o risco de ser condenado à pena que pode chegar à casa dos 30 anos.
Se furtar um objeto alheio, a pena partirá de um ano e poderá chegar a quatro anos. Caso tenha sonegado tributos e tenha sido denunciado por conta de alguma das condutas previstas no artigo 1º da Lei nº 8.137/90, a pena parte de dois e termina em cinco anos.
Consumado o crime e não havendo nenhuma causa excludente de tipicidade, ilicitude ou que afaste a culpabilidade, haverá responsabilização criminal. [8] Para-se aqui. O iter criminis é composto, pois, pela cogitação, preparação, execução e consumação.[9] Nada mais. Em tese, é claro. A questão é que, para o espectro policialesco que vigia este país há décadas e agora achou um novo alvo, haveria, pelo que se nota, uma etapa a mais no iter criminis e passível de punição: o exaurimento. [10]
Para exemplificar: um exemplo de exaurimento, no caso do crime de homicídio, seria quando, depois de matar a vítima, o autor do crime ainda agride o corpo vitimado. Claro, não se pode confundir com a ocultação de cadáver, que é delito autônomo e não mero exaurimento. [11]
Algo mais palpável de se entender é o exaurimento nos crimes patrimoniais ou contra bens jurídicos coletivos, como nos delitos contra a ordem tributária. No primeiro caso, se o indivíduo furta um veículo, o iter criminis está concluído na consumação do furto.
Qualquer coisa realizada a partir disso será mero exaurimento. Se ele vende a terceiros ou faz a separação de peças, trata-se apenas de exaurimento da conduta, totalmente impunível. Se, em uma hipótese de sonegação fiscal, os valores sonegados são empregados para gastos pessoais do sonegador, isso não é punível.
Etapas para configurar lavagem de dinheiro
Ainda que os exemplos de exaurimento sejam moralmente repudiáveis, eles não podem ser puníveis. E aqui surge o ponto central deste texto. O exaurimento, por si só, não é punível. Porém, nota-se que há uma confusão conceitual e o simples exaurimento vem sendo considerado lavagem de dinheiro.
É isso o que ocorre atualmente no Estado brasileiro: a mera fruição de bens e valores obtidos de forma ilícita, por meio de infrações penais, vem sendo considerada lavagem de dinheiro. Trata-se de uma errada extensão punitiva ao exaurimento, que, volta-se a dizer, não pode ser punível.
E aqui entra um ponto crucial: o delito de lavagem de dinheiro, previsto no artigo 1º da Lei nº 9.613/98 trata-se de um tipo penal complexo. [12] Isso significa que, para a sua configuração, é necessário que o agente desenvolva diversas etapas. [13] São três.
A primeira delas é a ocultação. Nessa etapa, o agente visa ocultar os bens e valores obtidos por meio da prática de alguma infração penal antecedente. Pode ter sido por um furto ou, pelo exemplo mais conhecido, com o tráfico de drogas.
Realizada a ocultação, o indivíduo se preocupará com dissimulação dos valores. Essa é a segunda etapa. Aqui, a intenção é fazer com que o rastro do dinheiro seja encoberto e o Estado não o consiga rastrear.
Exemplo clássico é o caso da criação de empresas de fachada. Lojas, restaurantes, bares e comércios em geral. Oculta-se o patrimônio ilícito e, em seguida, dissimula-o, fazendo inserções em empresas fictícias, e que, mesmo em funcionamento e atendimento ao público, valores ocultos são injetados.
Concluídas as duas etapas, é preciso, agora, reintegrar o valor obtido inicialmente de forma ilícita ao patrimônio do agente. Eis a terceira etapa. Aqui, chama-se de reintegração. Essa etapa pode ocorrer, por exemplo, com a divisão de lucros da empresa, momento em que o agente, depois de ocultar e dissimular, reintegra os valores antes sujos, ao seu patrimônio, agora limpos.
É imprescindível, portanto, que as fases de ocultação, dissimulação e reintegração estejam configuradas. Sem elas, entende-se que não há tipicidade do crime contido no artigo 1º da Lei nº 9.613/98.
Exploração de jogos de azar não significa lavagem de dinheiro
Colocadas tais explicações, ainda resta algo não esclarecido aqui. Trata-se da relação de tudo o que foi escrito até então com as apostas esportivas e financeiras, isso porque, como dito nas linhas iniciais, tem-se visto, diuturnamente, na mídia e nas redes sociais, que tem se tornado lugar comum se falar em lavagem de dinheiro em virtude de valores obtidos com a exploração de jogos de azar ou de apostas esportivas.
Ocorre, no entanto, que mesmo que o agente realize a exploração de jogos de azar ou de loterias e a partir disso obtenha considerável patrimônio, adquira bens, usufrua dos valores, faça viagens e invista em superfluidades, sem nenhuma preocupação em ocultar ou dissimular a origem de tudo isso, certamente não se estará diante de lavagem de dinheiro. Trata-se de mero exaurimento das infrações penais antecedentes, totalmente impunível e que não pode, de forma alguma, ser considerado como uma etapa punível do iter criminis.
Mesmo que a ordem do dia seja investigar e punir influenciadores, empresários, artistas e pessoas em geral, que estejam envolvidos com a exploração de jogos de azar e de apostas esportivas e que, com isso, tenham obtido patrimônio, tal situação, por si só, não pode ser sinal de que houve lavagem de dinheiro. Se houve exploração de jogos de azar, que a responsabilização seja com base na infração penal correspondente da Lei das Contravenções Penais. Se houve divulgação de loterias ilegais, que a responsabilização ocorra da mesma forma.
Mas se, apesar da criminalização de tais condutas, houve obtenção de patrimônio considerável e se adquiriu veículos, imóveis e itens de luxo, sem nenhuma intenção de ocultação, nada disso indica ter havido lavagem de dinheiro. Trata-se de mera fruição de bens e valores obtidos de forma ilícita. E é isso que se precisa compreender aqui. Meramente fruir de bens e valores obtidos de forma ilícita, mediante apostas esportivas e jogos de azar, não configura lavagem de dinheiro se o agente não teve sequer a intenção de ocultar tais bens e valores.
Ostentação não pode ser direcionada ao crime
Mesmo que a ordem do dia seja tratar a todos que ostentam o exaurimento obtido com condutas atreladas a jogos de azar e apostas esportivas como indivíduos perigosos, transformar dinheiro sujo em limpo vai muito além da mera ostentação em redes sociais. Ainda que seja moralmente criticável a ostentação de bens obtidos de forma ilícita, isso não é motivo suficiente e relevante para que se impute o crime de lavagem de capitais.
É preciso que se comprove que o indivíduo deu um aspecto de legalidade ao patrimônio ilicitamente obtido, uma vez que, embora a ostentação talvez seja o oitavo pecado capital e o alvo atual, é imprescindível que, para além de uma investigação desapaixonada, comprove-se, em âmbito judicial e com o contraditório assegurado, que o indivíduo praticou as três etapas do crime de lavagem de dinheiro.
É certo que os problemas aqui apresentados desafiam uma gama de outras tantas questões dogmáticas e práticas. Ainda há a necessidade de comprovação do dolo específico no caso de lavagem de capitais. [14] Também há a questão inerente à distinção de bens jurídicos tutelados na infração penal antecedente e no delito de lavagem.
De todo modo, tais questões ficam para um segundo momento. O ponto aqui, de novo, é chamar a atenção à distinção existente entre lavagem de dinheiro e mera fruição de bens e valores ilicitamente obtidos.
Pelas recentes notícias dos canais policiais, parece que o recado foi dado. Ninguém está acima da lei. O numerário em contas ou a quantidade de bens não é salvo-conduto a nada. Por mais certo que esse pensamento seja, também deve ser correto o pensamento de que toda e qualquer persecução penal também deve respeitar limites legais e direitos fundamentais.
E, em se tratando de lavagem de dinheiro, iter criminis e jogos de azar, não parece haver limites legais às persecuções que vêm ganhando forma neste país, o que, de certo modo, torna-se preocupante a quem se atenta às limitações legais e conceitos dogmáticos.
[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 522-523.
[2] DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 7. ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2020, p. 498.
[3] D’AVILA, Fábio Roberto. Ofensividade em direito penal: escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 57-79.
[4] PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal: jurisprudência; conexões lógicas com os vários ramos do direito. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 891-892.
[5] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 525-529.
[6] MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Lições fundamentais de direito penal: parte geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 604.
[7] DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 7. ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2020, p. 500-501.
[8] MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Lições fundamentais de direito penal: parte geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 443-445.
[9] MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Lições fundamentais de direito penal: parte geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 591.
[10] MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Lições fundamentais de direito penal: parte geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 606.
[11] PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal: jurisprudência; conexões lógicas com os vários ramos do direito. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 740-742.
[12] SANCTIS, Fausto Martin de. Delinquência econômica e financeira: colarinho branco, lavagem de dinheiro, mercado de capitais. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 177.
[13] CALLEGARI, André Luís; LINHARES, André Luís. Lavagem de dinheiro (com a jurisprudência do STF e do STJ). 2. ed. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2023, p. 43-45.
[14] CALLEGARI, André Luís; LINHARES, André Luís. Lavagem de dinheiro (com a jurisprudência do STF e do STJ). 2. ed. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2023, p. 157.
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