Opinião

Precisamos falar sobre a Súmula 11 do Carf

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4 de outubro de 2024, 6h04

O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais é o juízo natural e o ambiente mais propício para discussões complicadíssimas de direito tributário, especialmente pela notória qualidade dos julgadores que lá atuam. O presidente do Carf, Carlos Higino Ribeiro de Alencar, é profundo conhecedor de temas tributários e de administração pública, tendo inclusive atuado como ministro Interino da Controladoria-Geral da União. Preside o órgão com competência, seriedade e equilíbrio.

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Em 2010 o Carf baixou a Súmula 11, que dispõe que no âmbito de suas decisões, não cabe a prescrição intercorrente. Os julgados paradigmas são do início dos anos 2000 [1]. A matéria é absolutamente sensível nesse importante tribunal administrativo. Chega a ser um tabu. Melhor seria não se atrever a discutir o assunto.

Pode-se, no entanto, e isso exige um pouco de ousadia, discordar da constitucionalidade e da legalidade dessa súmula. O debate é um caminho possível para o aperfeiçoamento dos arranjos institucionais. Não há súmula ou entendimento administrativo que seja infensa ao “overruling”. Ao que consta, pode-se argumentar, a Súmula 11 do Carf parece contrariar normas fundamentais, bem como parece hostilizar a tradição de nosso direito.

A prescrição, inclusive a intercorrente, é questão de ordem pública. Trata-se de mecanismo essencial para assegurar a segurança jurídica, impedindo que o direito de ação ou de execução seja exercido indefinidamente no tempo. E por que é de ordem pública, a prescrição não pode ser afastada ou regulada por súmula administrativa, como ocorre no caso da Súmula 11 do Carf. Admiti-lo, seria negarmos um postulado básico de nosso direito. Precisamos falar sobre a Súmula 11 do Carf.

A súmula, ao afastar a prescrição intercorrente, hostiliza certa proteção constitucional ao criar uma espécie de “imprescritibilidade administrativa”, o que é substancialmente incompatível com o princípio da segurança jurídica.

Além disso, por ser de ordem pública, a prescrição deve ser reconhecida de ofício pelo Judiciário e, consequentemente, também pelas instâncias administrativas. Não haveria nem mesmo a necessidade de provocação do interessado. Nesse sentido, a limitação imposta pela Súmula 11 pode suscitar violação de princípio fundamental, restringindo a incidência de garantia plasmada em lei.

Regra própria do Carf

A prescrição é norma geral de direito tributário (artigo 146, III, ‘b’, da Constituição).  Ao que consta, nessa primeira leitura, a Súmula 11 invade matéria reservada à lei, e o faz em desfavor do contribuinte.

O Código Tributário Nacional trata da prescrição (artigos 156, V, e 174). O Carf, ao editar súmula afastando a aplicação da prescrição intercorrente, parece estar se sobrepondo à legislação complementar. Cria regra própria que não encontra respaldo no ordenamento jurídico. Há extrapolação temática, que resulta em inegável violação ao princípio da legalidade. A prescrição, nesse sentido, não poderia ser tratada por súmula administrativa.

Spacca

Outro ponto que chama a atenção é a aparente contrariedade com o regime de execução fiscal (Lei nº 6.830/1980). A prescrição intercorrente é reconhecida na execução fiscal, por força do disposto no § 4º do artigo 40 da Lei nº 6.830/1980, na redação da Lei nº 11.051/2004. A normatização da prescrição intercorrente na execução fiscal decorreu de prévia e longa produção jurisprudencial.

A paralisação do processo, por inércia do exequente, e no prazo fixado em lei, chama a incidência da prescrição intercorrente. Esse dispositivo se aplica diretamente aos processos tributários. Ainda que de aplicação explícita em processos judiciais, há forte indício de que conta com aplicação implícita em processos administrativos. A Súmula 11 acaba premiando a inércia do Fisco. Não promove ou garante a chamada razoável duração do processo, que também conta com base constitucional (artigo 5º, LXXVIII).

Do ponto de vista prático, a Súmula 11 do Carf pode fomentar situação de desequilíbrio, em prejuízo do contribuinte. O cidadão tem tolhida uma proteção que é regra geral no ordenamento jurídico, afrontada pelo excepcionalismo administrativo. Parece inadmissível a multiplicação de regimes diferenciados, especialmente quando afrontam o contribuinte.

Outros ramos do direito

A prescrição intercorrente é circular em outros ramos do direito. Ocorre, por exemplo, no processo penal. Há um clássico de nossa literatura jurídica, de autoria do professor Damásio de Jesus, que tratou da prescrição de um modo inusitado, à época da publicação.

Há também implicações no direito processual civil e em matéria trabalhista. Neste último caso, vide a Súmula 327 do STF que reconhece a prescrição intercorrente no direito do trabalho, nada obstante sua restrição, por parte do TST (Súmula 114). O STJ, em processo relatado pelo então ministro Castro Meira, já havia fixado que o §1º do artigo 1º da Lei nº 9.873/1999 trata da prescrição intercorrente. Ou seja, há prescrição intercorrente em direito administrativo. Por que não pode haver no direito administrativo tributário?

Não bastasse tudo isso, o STJ fixou entendimento autorizando a aplicação da prescrição intercorrente no caso das infrações aduaneiras, que é, inclusive, matéria do Carf. A decisão é recente, de 15 de agosto de 2024, proferida pela 2ª Turma no AgInt no AgInt no REsp nº 1.942.072.

O esforço para a exclusão da prescrição intercorrente do âmbito administrativo-tributário por meio de súmula parece contrariar o sistema, que reconhece e prestigia esse instituto. A prescrição (intercorrente também) é matéria de ordem pública, e que parece intangível de tratamento normativo, por via de súmula administrativa. De fato, precisamos falar sobre a Súmula 11 do Carf.

 


[1] Acórdão nº 103-21113, de 05/12/2002 Acórdão nº 104-19410, de 12/06/2003 Acórdão nº 104-19980, de 13/05/2004 Acórdão nº 105-15025, de 13/04/2005 Acórdão nº 107-07733, de 11/08/2004 Acórdão nº 202-07929, de 22/08/1995 Acórdão nº 203-02815, de 23/10/1996 Acórdão nº 203-04404, de 11/10/1997 Acórdão nº 201-73615, de 24/02/2000 Acórdão nº 201-76985, de 11/06/2003.

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