Paradoxo da Corte

Precisa delimitação da desistência do recurso na jurisprudência do STJ

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  • é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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4 de outubro de 2024, 8h00

A atividade dos órgãos do Poder Judiciário é eminentemente caracterizada pela inatuação, afigurando-se, pois, pelo princípio da demanda (artigos 141 e 492 do Código de Processo Civil), sempre imprescindível a provocação do Estado, a fim de que este, substituindo a atuação dos interessados, possa, de modo imparcial, declarar o direito, satisfazer o direito declarado ou, ainda, assegurar o direito cuja declaração é invocada.

Com a ação da parte, fundada no exercício do direito à jurisdição, ativando os órgãos estatais, detentores da função judicante, na busca de tutela, irrompe também o monopólio de disposição, reconhecido ao demandante.

Com efeito, tal concepção, vigente na generalidade dos ordenamentos processuais democráticos, exprime a supremacia do litigante para instaurar o processo, determinar-lhe o objeto e, ainda, dispensar a proteção jurisdicional pleiteada.

Em idêntico sentido, José Roberto dos Santos Bedaque assevera que: “o monopólio da parte sobre a iniciativa do processo existe independentemente da natureza do direito litigioso. Ainda que indisponível o direito subjetivo material, persiste o princípio da inércia da jurisdição”.

Em outras palavras, mesmo em relação a essa categoria de direitos, o interessado tem o monopólio da demanda.  E se o Estado tem interesse direto ou indireto na relação, ainda assim não se confere poder de iniciativa ao juiz” (Poderes instrutórios do juiz, 5ª ed., São Paulo, Ed. RT, 2011, p. 99).

Prerrogativas

Isso tudo significa que o litigante tem full control sobre o seu direito material e as suas respectivas garantias processuais e, outrossim, bem revela o poder da parte de livre escolha para o exercício ou não-exercício destas prerrogativas.

Dispõe, a propósito, o artigo 998 do Código de Processo Civil, que: “O recorrente poderá, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso”.

No entanto, deve-se ter presente a ressalva contida no respectivo parágrafo único, ao determinar que: “A desistência do recurso não impede a análise de questão cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida e daquela objeto de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos”.

Assim, em caráter excepcional, dada a relevância que pode representar o objeto de determinado recurso, a disponibilidade do direito do litigante resulta suplantada, especialmente nas duas hipóteses emolduradas no supra transcrito parágrafo único, isto é:

a) quando já assentada, pelo Supremo Tribunal Federal, a repercussão geral da questão fulcral suscitada no recurso; e
b) na hipótese de a questão constituir objeto de recurso extraordinário ou especial repetitivo, cujo interesse — não é preciso dizer — se sobrepõe àquele dos litigantes.

Importa ainda esclarecer que, excetuando-se estas duas situações bem delineadas pelo transcrito texto legal, dúvida não há de que sempre prevalecerá a vontade do recorrente, independentemente de eventual discordância da parte recorrida, mesmo que o thema decidendum, no bojo de determinado recurso, versar sobre matéria de ordem pública.

Precedente

Anote-se que toda esta temática foi recentemente (10/9/2024) enfrentada num importante precedente da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do recente julgamento do Recurso Especial nº 1.985.436/SP, norteado pelo consistente voto do ministro Marco Aurélio Bellizze, ao assentar que a desistência do recurso impede a análise do mérito recursal, a menos que o tribunal esteja diante de uma daquelas duas exceções.

Com esse entendimento, restou improvido o recurso especial interposto pelo Ministério Público de São Paulo, no âmbito do processo de recuperação judicial do Grupo Abril.

O recurso especial originou-se de agravo de instrumento interposto por Mckinsey & Company, Inc. do Brasil Consultoria Ltda., na condição de credora quirografária nos autos da recuperação judicial do Grupo Abril, contra a decisão que homologou o respectivo plano de soerguimento, ao argumento de que o deságio aplicado à classe quirografária seria abusivo e que haveria tratamento desigual entre os credores da referida classe. O referido recurso, portanto, dizia respeito exclusivamente às condições de pagamento aplicáveis à “classe III” (créditos quirografários).

No entanto, como se infere da fundamentação do acórdão, após a interposição do agravo de instrumento, a agravante cedeu seu crédito à sociedade Montblanc Securitizadora de Créditos S/A, que, na sequência, pleiteou a desistência do recurso, posteriormente, homologada pelo Tribunal de Justiça bandeirante.

O Ministério Público de São Paulo, que não interpôs recurso contra esse ato decisório, aproveitou-se do agravo de instrumento manejado pela credora, para argumentar que não poderia ser homologado o pedido de desistência formulado pela cessionária, visto que obstou o exame de questões de ordem pública concernentes às condições estabelecidas no plano de recuperação judicial do Grupo Abril.

Contudo, à luz do referido dispositivo legal, a desistência do recurso constitui ato unilateral, não dependendo do consentimento da outra parte e nem sequer de homologação judicial para a produção de seus efeitos, concretizando-se pela simples manifestação de vontade do recorrente.

Considerando a situação que foi objeto de julgamento, antes da inclusão na pauta para julgamento, a credora cedeu seus créditos à Montblanc Securitizadora de Créditos, que peticionou nos autos requerendo a desistência do recurso.

Tal pleito frustrou os planos do Ministério Público de São Paulo, que somente depois de julgado o agravo pelo Tribunal de Justiça de São Paulo é que interpôs o referido recurso especial, defendendo a tese de que havia óbice à apontada homologação, uma vez que pretendia discutir questões relacionadas à Classe I de credores, detentores de crédito trabalhista.

Note-se que, no caso em tela, o pedido de desistência foi formulado pela cessionária da agravante em momento anterior ao início do julgamento, quando nem sequer havia sido incluído o processo em pauta.

Segundo o Ministério Público paulista, o plano inclui uma cláusula de quitação indiscriminada dos débitos trabalhistas, que violaria o artigo 54 da Lei 11.101/2005 e permite a renúncia a direitos indisponíveis.

No aludido voto condutor, o ministro Marco Aurélio Bellizze negou provimento ao recurso, mantendo a decisão de homologar a desistência. Assentou que desistir de um recurso, a teor de texto legal expresso, constitui ato unilateral e não depende do consentimento da outra parte ou de homologação judicial, textual:

“A desistência do recurso impede a análise do mérito recursal, salvo quando houver repercussão geral reconhecida e nos casos de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos…

Não havendo recurso interposto pelo Ministério Público paulista e nem por algum credor trabalhista contra o aludido decisum, revela-se precluso o direito de impugnar o plano de soerguimento do Grupo Abril, ainda que se trate de matéria de ordem pública.”

Assim, inspirado numa moderna visão dos escopos da ciência processual, concluiu o importante precedente no sentido de que o processo deve ser uma marcha para frente, não comportando o retorno às etapas já vencidas, em que não houve qualquer impugnação pelos protagonistas do processo, em razão do fenômeno da preclusão.

Nos termos da pacífica jurisprudência desta Corte Superior — finalizou a respectiva ratio decidendi —, “sujeitam-se à preclusão consumativa as questões decididas no processo, inclusive as de ordem pública, que não tenham sido objeto de impugnação recursal no momento próprio” (4ª Turma, AgInt no AREsp nº 2.019.623/SP, rel. min. Raul Araújo, DJe de 4/10/2022).

Autores

  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Aasp, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, conselheiro do MDA e vice-presidente do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Fiesp.

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