A desigualdade estrutural do sistema de Justiça brasileiro
2 de outubro de 2024, 7h09
Uma verdadeira democracia possui suas bases fundamentais fortemente fincadas no Estado de direito e acaba se tornando uma ilusão se a Justiça não se revela acessível para todos. Como o reconhecimento formal de direitos pelo ordenamento jurídico não implica automaticamente em sua efetivação prática, aqueles que se veem impedidos de acessar o sistema de Justiça acabam sendo colocados sob o risco de terem seus direitos ignorados ou violados. Justamente por isso, o acesso à Justiça constitui um dos direitos cívicos mais básicos de um Estado democrático que pretenda garantir, e não apenas proclamar, os direitos de todos.
No Brasil, para garantir a efetividade do direito de acesso à Justiça, a Constituição de 1988 previu expressamente a estruturação da Defensoria Pública como instituição permanente e a incumbiu, fundamentalmente, de prestar “a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados” (artigo 134, caput, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 80 de 2014).
No entanto, por ser a instituição mais jovem do sistema de Justiça brasileiro, a análise comparativa revela que a Defensoria Pública ainda não conseguiu atingir o grau de estruturação alcançado pelas demais carreiras públicas [1]. Segundo dados coletados pela “Pesquisa Nacional da Defensoria Pública 2024”, o quadro de membros do Ministério Público se revela 77,9% maior que o quadro de membros da Defensoria Pública [2].
Embora exista uma tendência de naturalização do cenário de desigualdade estrutural existente no país, fazendo parecer “normal” ou mesmo “aceitável” as desproporções institucionais entre MP e DP, a análise comparativa da estrutura do sistema de justiça em países vizinhos da América Latina revela que isonomia entre os órgãos de acusação e defesa poderia e deveria ser uma realidade também no Brasil.
Comparação na América Latina
No Paraguai, por exemplo, o quadro de membros do Ministerio de la Defensa Pública é 7,4% maior que o quadro de membros do Ministerio Público [3]. De maneira semelhante, no Uruguai, o quadro de membros da Fiscalía General de la Nación é apenas 12,7% maior que o quadro de membros da Defensoría Nacional [4].
A análise comparada revela, portanto, que o quadro de iniquidade entre a Defensoria Pública e o Ministério Público não é um fenômeno normal que simplesmente cai da árvore de acontecimentos. A atual diferença estrutural entre a Defensa Pública e o Ministério Público constitui resultado das políticas públicas e decisões políticas praticadas ao longo das últimas décadas pelos governos brasileiros, seja na esfera federal, estadual ou distrital [5].
Mas será que o sistema de Justiça brasileiro caminha no sentido de promover uma maior isonomia entre os órgãos de acusação e defesa? Ou será que a iniquidade estrutural entre a Defensoria Pública e o Ministério Público vem sendo acentuada?
Para responder à pergunta, foram analisadas as leis orçamentárias anuais aprovadas no âmbito dos 26 estados-membros, Distrito Federal e União, relativas aos anos 2023 e 2024, incluindo eventuais emendas ao orçamento aprovado [6]. O gráfico a seguir revela a taxa de crescimento orçamentário (TCO) [7] apresentada pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público no âmbito de cada unidade federativa, sendo realizada a ordenação em conformidade a taxa comparativa de crescimento (TCC) [8] entre as instituições:
Como é possível perceber pela análise do gráfico, em 16 unidades federativas (57%) a taxa de crescimento orçamentário da Defensoria Pública superou a taxa de crescimento orçamentário apresentada pelo Ministério Público, com destaque positivo para o Distrito Federal, que apresentou a melhor taxa comparativa de crescimento (TCC +19), tendo a Defensoria Pública apresentado crescimento orçamentário de 25% e o Ministério Público apresentado crescimento orçamentário de apenas 6%.
Por outro lado, em três unidades federativas (11%) a taxa de crescimento orçamentário da Defensoria Pública e do Ministério Público apresentaram equivalência, progredindo na mesma proporção e, consequentemente, conservando as iniquidades estruturais atualmente existentes.
Por fim, em nove unidades federativas (32%), a taxa de crescimento orçamentário do Ministério Público superou a taxa de crescimento orçamentário apresentada pela Defensoria Pública, com destaque negativo para o Rio de Janeiro, que apresentou a pior taxa comparativa de crescimento (TCC -16), tendo o Ministério Público apresentado crescimento orçamentário de 25% e a Defensoria Pública apresentado crescimento orçamentário de apenas 8%.
Em maior ou menor medida, nas nove unidades federativas que apresentaram taxa comparativa de crescimento negativo, o quadro de iniquidade estrutural entre Defensoria Pública e Ministério Público vem sendo acentuado, havendo retrocesso no pretendido processo de equalização estrutural do sistema de justiça brasileiro.
Defensoria é privilégio para poucos
Dentro do atual cenário de desigualdade orçamentária, nas unidades federativas em que a Defensoria Pública ainda não se encontra regularmente instalada em todas as comarcas ou subseções judiciárias, a insuficiência de recursos impedirá que o programa constitucional efetivamente se concretize, continuando a assistência jurídica a ser um privilégio de poucos; já nas unidades federativas em que a Defensoria Pública conseguiu se estabelecer em todas as comarcas, a insuficiência orçamentária ocasionará a desidratação institucional, forçando retrocessos que, no plano constitucional, violam a vedação de efeito cliquet (princípio da vedação do retrocesso).
Resta saber se a caminhada evolutiva do acesso à Justiça no país continuará percorrendo trilhas orçamentárias tortuosas, que conservam desigualdades e impulsionam injustiças, ou se os passos a serem adotados no futuro passarão a avançar na direção dos mais pobres e vulneráveis, que compõem a maioria absoluta da população brasileira.
[1] Não obstante a iniquidade entre a Defensoria Pública e as demais carreiras do sistema de justiça possa ser identificada sob diversas vertentes subjetivas de análise, no presente artigo optou-se por realizar a análise comparativa com o Ministério Público, não apenas por ser igualmente uma instituição essencial à justiça, mas também pelas seguintes razões: (1) Existência de origem comum entre as instituições. No plano interno, isso se revela no modelo que foi nacionalizado com a Constituição de 1988, gestado no Rio de Janeiro, cujo histórico indica uma cisão entre órgãos de um mesmo organismo inicial (defensores públicos e promotores públicos). A ideia de um Ministério Público de acusação e de defesa, embora possa soar estranho para aqueles acostumados com o desenho nacional, é adotado por alguns ordenamentos, como na Argentina, onde coexistem, a partir da previsão constitucional do Parquet, o Ministerio Público de la Defensa e o Ministerio Público Fiscal, o que está ligado à ideia mais tradicional de magistraturas, em um sentido mais clássico de divisão de poderes a atribuições. É daí que o modelo Ferrajoliano entende que deve conviver “um magistrado destinado a funcionar como Ministério Público de Defesa, antagonista e paralelo ao Ministério Público de Acusação” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 4ª ed. São Paulo: RT, 2014. p. 467). (2) Desenho espelhado das estruturas. O desenho das estruturas institucionais do MP e DP apresenta elevado grau de espelhamento, com divisões de atribuições, categorias, órgãos internos, prerrogativas e vedações assemelhados. (3) Extenso plexo de atribuições. O âmbito de atribuições do MP e da DP se revela extenso e complexo, com a necessidade de que as instituições exerçam vários papéis processuais, seja agindo em nome próprio (em legitimação extraordinária), seja como órgão interveniente e, no caso da Defensoria Pública, também atuando como representante das pessoas necessitadas (ligada à ideia de legitimação ordinária).
[2] ESTEVES et al. Pesquisa Nacional da Defensoria Pública 2024, Brasília: DPU, p. 55. Disponível em: https://pesquisanacionaldefensoria.com.br/downloads/. Acesso em: 28 set. 2024.
[3] ESTEVES, Diogo. Assistência Jurídica na América do Sul. 2023. 829 f. Tese (Doutorado em Sociologia e Direito) – Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2023, p. 194.
[4] Ibid., p. 195.
[5] REAGAN, Francis. Why do legal aid services vary between societis? Re-examining the impacts of Welfare States and legal families. In: REGAN, Francis; PATERSON, Alan; GORIELY, Tamara. The transformation of legal aid: comparative and historical studies. New York: Oxford University Press, 1999, pp. 180-181.
[6] LOAs/AC nº 4.281/2023 e nº 4.075/2022; LOAs/AL nº 9.147/2024 e nº 8.791/2022; LOAs/AP nº 3.003/2024 e nº 2.814/2023; LOAs/AM nº 6.672/2023 e nº 6.155/2022; LOAs/BA nº 14.652/2024 e nº 14.531/2022; LOAs/CE nº 18.664/2023 e nº 18.275/2022; LOAs/DF nº 7.377/2023 e 7.212/2022; LOAs/ES nº 12.024/2023 e nº 11.769/2023; LOAs/GO nº 22.536/2024 e nº 21.760/2022; LOAs/MA nº 12.168/2023 e nº 11.871/2022; LOAs/MT nº 12.421/2024 e nº 12.012/2023; LOAs/MS nº 6.159/2023 e nº 5.988/2022; LOAs/MG nº 24.678/2024 e nº 24.272/2023; LOA/PA nº 10.382/2024 e nº 9.851/2023; LOA/PB nº 13.041/2024 e nº 12.561/2023; LOA/PR nº 21.862/2024 e nº 21.347/2022; LOA/PE nº 18.428/2023 e nº 18.123/2023; LOA/PI nº 8.248/2023 e nº 7.949/2023; LOA/RJ nº 10.277/2024 e nº 9.970/2023; LOA/RN nº 11.672/2024 e nº 11.381/2023; LOA/RS nº 16.047/2023 e nº 15.900/2022; LOA/RO nº 5.733/2024 e nº 5.527/2023; LOA/RR nº 1.915/2024 e nº 1.795/2023; LOA/SC nº 18.836/2024 e nº 18.585/2022; LOA/SP nº 17.863/2023 e nº 17.614/2022; LOA/SE nº 9.372/2024 e nº 9.155/2023; LOA/TO nº 4.374/2024 e nº 4.078/2022; LOA nº 14.822/2024 e nº 14.535/2023.
[7] A taxa de crescimento orçamentário (TCO) foi calculada considerando o orçamento aprovado para o ano 2023 e observando o percentual de crescimento alcançado para o orçamento aprovado 2024. TCO = [ (orç. aprov. 2024 / orç. aprov. 2023) -1 ] x 100
[8] A taxa comparativa de crescimento (TCC) foi calculada observando a diferença entre a taxa de crescimento orçamentário da Defensoria Pública (TCO/DP) e a taxa de crescimento orçamentário do Ministério Público (TCO/MP). TCC = TCO/DP – TCO/MP
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