Uma das características mais relevantes de um shopping center é a combinação harmônica de lojas aliada às atrações e utilidades disponibilizadas, formando o que se denomina “tenant mix”, i.e., a atividade de organizar e distribuir lojas dentro de determinado empreendimento, com a finalidade de atrair o maior número de consumidores e alcançar a melhor lucratividade, atendendo aos interesses dos lojistas e do próprio shopping [1].
Essa característica reforça a complexidade do contrato de shopping e os diversos fatores que influenciam a decisão de um lojista para se instalar no empreendimento, como, por exemplo, a existência de loja(s)-âncora(s) e a garantia de concorrência não-predatória, de modo a destacar a relação comercial de simbiose entre os lojistas [2].
A questão do tenant mix ganhou nova atenção em razão de julgamento ocorrido em maio de 2024 no Superior Tribunal de Justiça: ainda que o tenant mix tenha como objetivo “atrair o maior número possível de consumidores e incrementar as vendas”, não há como “garantir que o aumento do número de clientes e das vendas (…) resultará no incremento dos lucros dos lojistas, pois várias causas concorrem para esse fim” [3]. Isso permite instalação de lojas concorrentes “frente a frente” em um mesmo shopping, desde que não haja violação dos contratos firmados com os lojistas.
Direito de preferência
O caso tratou da permissão concedida por um shopping localizado no Rio de Janeiro, em 2018, para a instalação de um restaurante de culinária japonesa concorrente, situado em frente ao restaurante de mesma culinária já existente.
Em 2001, o primeiro restaurante celebrou contrato com o shopping, no qual foi incluída cláusula de “direito de preferência” pelo prazo de cinco anos, conferindo ao restaurante o direito de ser consultado previamente antes de o shopping autorizar a instalação de outros estabelecimentos concorrentes.
A relação, segundo consta do acórdão paradigma, estava conturbada. Após duas renovações amigáveis, o aumento das desavenças fez com que a terceira tivesse de ser feita por meio de ação renovatória, o que, supostamente, gerou “atos de retaliação” por parte do shopping – um destes supostos atos sendo a autorização, em 2018, para a instalação do segundo restaurante.
Isso motivou o ajuizamento de ação judicial pelo primeiro restaurante contra o shopping, alegando que (1) a instalação do segundo restaurante violaria o “tenant mix” e (2) em razão dos longos anos de relação, havia sido criada expectativa de manutenção da exclusividade na exploração da culinária japonesa.
Entendimento do TJ-RJ e o recurso ao STJ
Em votação não unânime, o TJ-RJ entendeu que a ausência de estudo prévio sobre a viabilidade de convivência dos dois restaurantes violaria o tenant mix, de modo que o shopping deveria ser responsabilizado por esse inadimplemento.
O STJ, contudo, deu provimento ao recurso especial do shopping para declarar que este não teria agido de forma irregular. A leitura do acórdão permite identificar, ao menos, quatro fundamentos para tanto, que mesclam elementos normativos e elementos contextuais.
Primeiro: o contrato de locação em shopping tem “índole marcadamente empresarial”, presumindo-se a simetria e paridade entre as partes envolvidas. A relevância da constatação se dá tanto em atenção a entendimentos pretéritos daquele tribunal [4] quanto ao artigo 54 da Lei de Locações, que estabelece a prevalência das “condições livremente pactuadas” nas “relações entre lojistas e empreendedores de shopping center”. A mensagem a ser extraída disso é a de que a alocação de riscos previamente acordada deve ser respeitada.
Segundo: contratos de locação em shopping podem conter cláusulas atípicas “de índole econômica”, que, ainda que possam parecer restritivas aos direitos dos locatários em um primeiro momento (como o estabelecimento de aluguel em dobro em épocas festivas), decorrem dos benefícios que a própria estrutura do shopping lhes confere (por exemplo, por meio da atração dos consumidores e potenciais clientes ao empreendimento). Isso não significa, no entanto, ausência de espaço para consideração de abusividade de determinadas cláusulas que coloquem o lojista em manifesta desvantagem.
Aplique-se tais fundamentos ao caso em questão. O contrato celebrado pelo primeiro restaurante continha cláusula de “direito de preferência” pelo prazo de cinco (cinco), que se encerrou em 2006. Para o STJ, a temporariedade de tal cláusula não colocava o lojista em situação de “excessiva desvantagem”, uma vez que (1) “claramente redigida”, (2) “passível de avaliação de risco antes mesmo da instalação do restaurante” e (3) o primeiro restaurante poderia “planejar suas atividades e adotar estratégias” em conformidade com o prazo estabelecido, assim como “o shopping aguardou a finalização do prazo para traçar novos delineamentos”.
Esses fundamentos foram decisivos para o STJ afastar a alegação de que teria sido criada expectativa de manutenção de tal direito de preferência para todo o período de contratação.
Terceiro: o contrato celebrado pelo primeiro restaurante previa expressamente a possibilidade de ampliação e de revisão do tenant mix pelo shopping, além de que não se pode esperar que o shopping mantivesse a “organicidade econômica” inalterada por quase duas décadas, diante do necessário enfrentamento de novas situações de mercado. A esse respeito, o STJ destacou que (1) o empreendedor do shopping pode optar por instalar lojas concorrentes, “caso entenda que a concorrência trará benefícios para a organização das lojas” e “desde que essa opção não implique desrespeito aos contratos firmados com lojistas”, bem como que (2) “em empreendimentos maiores é comum a presença de lojas do mesmo segmento concorrendo entre si, instaladas lado a lado, ou frente a frente (…), trazendo atratividade para o shopping e beneficiando os consumidores e, portanto, os demais lojistas”.
Quarto: o STJ considerou, a partir das provas já constantes dos autos e das decisões das instâncias inferiores, que a lucratividade do primeiro restaurante “já vinha caindo antes mesmo da inauguração do concorrente, não tendo havido investimentos em modernização e implementação de novos produtos com o intuito de captar clientes”, além de que, após a abertura do segundo restaurante, houve “um aumento no fluxo de pessoas e no faturamento” do primeiro restaurante.
Importância do contexto
Tais fundamentos vão em linha com a compreensão de que as relações contratuais somente podem ser compreendidas de modo completo considerando-se o contexto em que inseridas, i.e., integrando-se conteúdo jurídico, conteúdo social e conteúdo econômico: contratos sempre funcionam em contextos específicos, e cada contexto influencia o comportamento das partes, suas expectativas e a interpretação do contrato [5].
Não basta, assim, considerar abstratamente a relação entre lojistas ou o planejamento que o tenant mix pressupõe: é necessário considerar o complexo de relações que une empresários e suas atividades, relações essas que se conectam a interesses que podem ser paralelos, convergentes ou conflitantes, mas que se limitam mutuamente a partir do contexto da relação contratual. A decisão do STJ reforça a importância de interpretar as relações contratuais contextualmente, em detrimento de uma interpretação mecânica e abstrata.
[1] MALLMANN, Frederico Baptista. O contrato de shopping center no Direito brasileiro: características e parâmetros para sua interpretação. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 37 e 56.
[2] REsp 1.259.210/RJ, rel. Min. Massami Uyeda, 26.06.2012; REsp 764.901/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, 10.10.2006.
[3] REsp 2.101.659/RJ, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 21.05.2024.
[4] REsp 1.409.849/PR, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 26.04.2016; REsp 1.644.890/PR, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 18.08.2020; REsp 1.910.582/PR, rel. Min. Nancy Andrighi, 17.08.2021.
[5] CANTALI, Rodrigo Ustárroz. Contrato, contexto e comportamento contratual. Revista de Direito Civil Contemporâneo, n. 10, v. 37, p. 115ss., out-dez/2023.