Prisão e outras medidas cautelares de candidatos às vésperas das eleições: limitações constitucionais
1 de outubro de 2024, 7h05
A Constituição de 1988 assegurou aos cidadãos um amplo direito de participação na vida política, tanto de forma ativa quanto passiva. Ela estabeleceu as diretrizes fundamentais do processo político-eleitoral, garantindo a liberdade de sufrágio por meio de um voto direto, secreto e periódico, conforme previsto nos artigos 1º, parágrafo único, e 14, caput, da Constituição.
Esses dispositivos incorporam os princípios democrático, representativo, republicano e da soberania popular, além de consagrarem o direito ao voto, considerado a expressão máxima da cidadania, que deve ser direto, secreto e ter valor igual para todos os cidadãos.
É importante destacar que a garantia da liberdade abrange não apenas o exercício do voto pelo eleitor, mas também o pleno usufruto da capacidade eleitoral passiva, permitindo que os cidadãos aptos a concorrer a cargos eletivos o façam sem sofrer prejuízos ou interferências indevidas.
Nas palavras do ministro Gilmar Mendes [1], ao comentar o artigo 14 da Constituição, destaca que, “embora não esteja explícito nessa norma constitucional, é evidente que esse voto possui outra característica: ele deve ser livre. Somente a ideia de liberdade justifica a ênfase dada ao caráter secreto do voto“.
Isso implica que o poder público deve, sempre que possível, abster-se de realizar atos que possam influenciar a formação da vontade do eleitor. Dessa forma, o cidadão tem a oportunidade de, de maneira livre e consciente, avaliar as opções que lhe são apresentadas e formar sua convicção de acordo com sua liberdade individual e política.
Portanto, ao considerar o arcabouço que assegura ampla liberdade ao exercício do sufrágio, tanto ativo quanto passivo, depreende-se da Constituição a centralidade do princípio democrático, que se apresenta como fundamento essencial para a legitimidade do próprio ordenamento jurídico.
Centralidade do princípio democrático
Embora reforçada na Constituição de 1988, essa centralidade já estava consagrada desde a edição da Lei nº 4.737/1965, que instituiu o Código Eleitoral Brasileiro, que disciplinou um conjunto de garantias eleitorais com o objetivo de assegurar a normalidade e legitimidade das eleições, protegendo a liberdade tanto dos eleitores quanto dos candidatos, especialmente durante o período eleitoral.
Desde sua redação original, o Código Eleitoral estabeleceu garantias pessoais à liberdade de sufrágio nos artigos 234 a 239, que impõem limites à atuação estatal com o objetivo de evitar interferências na legitimidade dos processos eleitorais.
Esse é precisamente o fundamento contido no artigo 236, § 1º, do Código Eleitoral, que, ao impor uma clara restrição às prerrogativas da persecução penal, proíbe a prisão cautelar nas vésperas do pleito eleitoral, oferecendo uma proteção especial aos candidatos.
A redação original do dispositivo, vigente até os dias atuais, assim dispõe:
Art. 236. Nenhuma autoridade poderá, desde 5 (cinco) dias antes e até 48 (quarenta e oito) horas depois do encerramento da eleição, prender ou deter qualquer eleitor, salvo em flagrante delito ou em virtude de sentença criminal condenatória por crime inafiançável, ou, ainda, por desrespeito a salvo-conduto.
§ 1º Os membros das mesas receptoras e os fiscais de partido, durante o exercício de suas funções, não poderão ser detidos ou presos, salvo o caso de flagrante delito; da mesma garantia gozarão os candidatos desde 15 (quinze) dias antes da eleição.
[…]
A chamada “imunidade eleitoral”, prevista no artigo 236 do Código Eleitoral, tem como objetivo garantir o equilíbrio na disputa eleitoral e permitir o pleno exercício das atividades de campanha pelos candidatos.
Cuida-se de importante instrumento a fomentar a não intervenção estatal, com reflexos diretos sobre o processo penal, na formação da vontade popular, haja vista que, por óbvio, a prisão de determinado candidato às vésperas do pleito tem o condão de prejudicar sua imagem perante o eleitorado, aumentando a sua rejeição, bem como de desestimular o voto de seus possíveis eleitores por motivos de utilidade. Sobre o tema, Marcos Ramayana [2] destaca:
0 dispositivo acima trata de uma garantia eleitoral e protege o eleitor, os fiscais de partidos e os membros das mesas receptoras, além dos candidatos devidamente registrados pela Justiça Eleitoral. O descumprimento dessa regra é crime específico tipificado no art. 298 do Código Eleitoral. Trata-se de hipótese que incide durante o calendário eleitoral e reserva sanção penal mais elevada, pois, além de a pessoa (cidadão) ser atingida em sua liberdade ambulatorial, a maior lesão é sobre o processo eleitoral da votação (fase eleitoral) e, consequentemente, atinge o regime democrático vigente.
Proibição de prisão cautelar
Como visto, o artigo 236, § 1º, do Código Eleitoral, reforçado pelos princípios democrático, republicano e da soberania popular insculpidos no artigo 14, caput, da CF/88 fundamentam a existência da proibição para prisão cautelar de candidatos às vésperas do pleito eleitoral.
Merece destaque, neste sentido, o teor da decisão do ministro Marco Aurélio Bellizze, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, ao julgar o HC 775.435/SP, destacou que o mandado de prisão civil contra o paciente teria sido emitido devido a uma dívida alimentar, o que, em situações normais, não seria questionada a sua execução.
No entanto, tendo o seu cumprimento ocorrido no período eleitoral previsto no artigo 236 do Código Eleitoral, a prisão foi considerada ilegal por conta da “imunidade eleitoral”. Ou seja, a prisão foi considerada ilegal não pela questão da dívida em sí, mas porque sua execução, à época do cumprimento do mandado, violaria a proibição de prisões nesse período eleitoral específico.
Também nesta linha, o Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE), diante da possibilidade de prisão de um candidato no período eleitoral descrito no artigo 236 do Código Eleitoral, em julgado paradigmático, concedeu salvo-conduto para inviabilizar a reclusão do candidato, conforme ementa a seguir transcrita:
HABEAS CORPUS. ELEIÇÕES 2004. ALEGAÇÃO DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. OFENSA DO ART. 236 DO CÓDIGO ELEITORAL. ORDEM CONCEDIDA. – Candidato não pode ser detido ou preso, salvo o caso de flagrante delito, desde 15 (quinze) dias antes da eleição até 48 (quarenta e oito) horas após encerrado o pleito. Inteligência do art. 236, § 1º, do Código Eleitoral. – Concessão da ordem, para efetivar a liminar concedida, determinando a expedição de salvo-conduto em favor do paciente, garantindo-lhe o pleno exercício de seus direitos políticos enquanto candidato. – Detectando-se a inelegibilidade do candidato, em face de sentença penal condenatória transitada em julgado, determina-se a extração de cópias e remessa ao r. do MPE, para adoção das providências cabíveis, nos termos do art. 262, inciso I, do Código Eleitoral. (TRE-CE – 15: 11023 CE, Relator: JOSÉ EDUARDO MACHADO DE ALMEIDA, Data de Julgamento: 30/09/2004, Data de Publicação: DJ – Diário de Justiça, Volume 193, Data 13/10/2004, Página 153/154)
Tal entendimento valoriza a dimensão objetiva e institucional do processo eleitoral, que já foi objeto de lapidar definição por parte do ministro Ricardo Lewandowski, atual ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil:
“O processo eleitoral (…) numa democracia, deriva sua legitimidade de um conjunto de procedimentos, aperfeiçoados de tempos em tempos, que se destinam a evitar, o tanto quanto possível, a ocorrência de deformações e desequilíbrios, conferindo a mais ampla credibilidade ao seu resultado final”. (fls. 192-193, ADI 3.741, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, j. em 6.8.2006, DJ 23.2.2007).
Processo eleitoral íntegro
Em sede doutrinária, o ministro Luiz Fux e Carlos Frazão destacam a importância da igualdade de oportunidades como exigência de uma postura neutra por parte do Estado “em face dos players da competição eleitoral i.e., partidos, candidatos e coligações, de forma a coibir a formulação de desenhos e arranjos que favoreçam determinados atores em detrimento de outros” [3].
Portanto, o artigo 236, caput e §1º, do Código Eleitoral reforça a proteção de um processo eleitoral íntegro, visando a assegurar a liberdade de voto, a igualdade de participação, a paridade de condições nas eleições e, em última instância, o funcionamento adequado do regime democrático.
Para isso, impõe uma razoável limitação à atuação dos órgãos de persecução penal do Estado. O bem jurídico protegido é, principalmente, o processo de votação (fase eleitoral), cuja violação comprometeria o próprio regime democrático em vigor. Mais do que um “direito” (subjetivo), trata-se de uma imunidade (objetiva) [4].
Considerando que tais valores possuem status constitucional (artigos 1º, 5º e 14 da CF/88), fica claro que as normas mencionadas do Código Eleitoral integram o bloco de constitucionalidade. Embora sejam de natureza infraconstitucional, elas claramente se destinam a desenvolver, em toda sua plenitude, a eficácia dos princípios e preceitos inscritos na Constituição, conforme estabelecido na ADI 2.971 AgR, relator ministro Celso de Mello, julgada em 6 de novembro de 2014.
Neste sentido, embora em sua literalidade o artigo 236, § 1º, do Código Eleitoral proíba apenas a prisão de candidatos no período de 15 dias que antecedem a data de realização das eleições, ressalvadas as hipóteses de prisão em flagrante ou decorrente de sentença condenatória irrecorrível, é bem verdade que, na vigência da Constituição, várias outras medidas constritivas da liberdade foram desenvolvidas pelo legislador ordinário, a exemplo daquelas descritas no artigo 319 do Código de Processo Penal.
O ministro Gilmar Mendes, ao julgar a ADPF 1017, no Supremo Tribunal Federal, bem exemplificou que a proibição de frequentar determinados lugares, como comícios ou reuniões públicas (artigo 319, II, do CPP), ou até mesmo a simples imposição de uma tornozeleira eletrônica (artigo 319, IX, do CPP) podem impor desequilíbrios ao processo eleitoral e constrangimentos aos candidatos, afetando diretamente a livre concorrência.
Sistema democrático deve proteger soberania popular
Por fim, destaca-se que a relação das medidas cautelares penais com o funcionamento do sistema político-eleitoral não constitui uma questão absolutamente nova no âmbito da jurisprudência Pátria. Na ADI 5.526 [5], o Supremo Tribunal Federal decidiu que quando as medidas cautelares penais tivessem impacto direto sobre a higidez do mandato eleitoral, seria dever do Tribunal submeter a questão à Casa Legislativa, de modo a equiparar essa situação processual à prisão prevista pelo artigo 53, §2º, da Constituição.
Conforme bem destacou o ministro Gilmar Mendes na oportunidade do julgamento da ADPF 1.017:
“O paralelo é útil porque o procedimento especial exigido para aplicação de medidas cautelares que atingem o exercício do mandato, traçado na referida ADI, ilustra o quanto o fortalecimento de uma prerrogativa depende de sua conformação procedimental. Bem como o quanto a atualização constitucional de uma imunidade (na ADI 5526, parlamentar) pode se reclamar necessária diante da evolução legislativa sobre o tema da prisão e das medidas cautelares diversas.”
De fato, a existência de um sistema democrático deve assegurar e proteger o direito ao voto e a soberania popular na escolha legítima de seus representantes. A esses representantes deve ser garantida igualdade de condições na competição eleitoral, em um ambiente livre, neutro e justo em termos de disputa. Nesse sentido, José Jairo Gomes[6] destaca que:
a observância do procedimento legal que regula as eleições é essencial para a legitimidade dos governantes. Tal procedimento deve desenvolver-se de forma normal, i.e. , em harmonia com o regime jurídico do processo eleitoral. Ademais, deve ensejar que todos os participantes tenham ampla liberdade de expressão e gozem das mesmas oportunidades de se apresentar ao eleitorado e divulgar suas ideias e projetos. Legítimas e normais, portanto, são as eleições em que houve a observância do arcabouço jurídico-normativo inerente ao processo eleitoral.
Restrições não são autorizações para prática de crimes
No que se refere especificamente à garantia da liberdade de eleitores e candidatos (artigos 5º e 14 da Constituição), as quais se encontram umbilicalmente vinculadas, Néviton Guedes[7] ressalta que “eleições livres excluem todos os tipos de constrangimentos e pressões que possam, de fora, impor-se ilegitimamente tanto aos eleitores como também aos candidatos”.
Ressalte-se, que as restrições temporais e circunstanciais previstas no artigo 236, §1º, do Código Eleitoral não configuram uma imunidade absoluta ou uma autorização para a prática de crimes. Nesse sentido, o referido dispositivo ainda permite a prisão de candidatos, dentro dos limites da imunidade prevista no artigo 236, nas hipóteses de flagrante delito ou para o cumprimento de sentença condenatória transitada em julgado, bem como nos casos de descumprimento de salvo-conduto expedido por autoridade judicial.
Ademais, as restrições previstas no artigo 236, §1º, do Código Eleitoral, também não impedem a prisão ou a imposição de medidas cautelares diversas em virtude da prática de crimes e/ou ilícitos eleitorais, devidamente apurados e estabelecidos pela Justiça Eleitoral, já que em tais casos é a própria higidez do pleito eleitoral que está em causa [8].
Portanto, a imunidade eleitoral, temporária e circunstancial, funciona como uma proteção essencial, garantindo que os candidatos possam participar plenamente do processo eleitoral sem sofrerem prejuízos indevidos causados por medidas judiciais em momentos críticos da disputa. Isso ressalta a importância de tratar os candidatos de forma equânime, garantindo que qualquer intervenção judicial seja proporcional e devidamente justificada. A imunidade não equivale à impunidade, mas sim à necessidade de um tratamento especial durante um período sensível, a fim de resguardar a confiança dos eleitores no sistema democrático [9].
[1] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 684.
[2] RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 10. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 700.
[3] FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Novos paradigmas do direito eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 119.
[4] RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 10. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 700; GOMES, José Jairo. Crimes e Processo Penal Eleitorais. São Paulo: Atlas, 2015, pp. 50-51.
[5] Red. p/ Acórdão Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 11.10.2017.
[6] GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 141.
[7] GUEDES, Néviton. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 729
[8] ADPF 1017 MC-Ref, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 03-07-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 14-08-2023 PUBLIC 15-08-2023
[9] PEDRA, Adriano Sant’Ana. Prisão e outras medidas cautelares pessoais em desfavor de candidatos às vésperas das eleições: uma análise constitucional sobre suas possibilidades. 2024. Disponível em: https://next-proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/351055926/v1/page/RB-1.18. Acesso em: 26.09.2024.
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