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ITCMD, distribuição desproporcional de dividendos e insegurança jurídica

1 de outubro de 2024, 13h22

Por Kaléu Delphino, Jefferson Valentin

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A tão aguardada reforma tributária finalmente deu seus primeiros passos rumo à concretização em 2023, com a promulgação da Emenda Constitucional 132. Atualmente, o Parlamento discute projetos de leis regulamentadoras dos novos dispositivos constitucionais, com alta expectativa de breve aprovação.

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Estudo aponta os dez estados que serão mais impactos pelas mudanças de regras do ITCMD e ITCD

O enfoque inicial da reforma se deu na tributação do consumo, símbolo maior da disfuncionalidade do sistema tributário atual. Porém, considerando que os aperfeiçoamentos que esse sistema demanda exigem muito mais que alterações da tributação consumerista, a reforma também se debruçou sobre aspectos importantes das tributações sobre o patrimônio, em especial o ITCMD.

Peça importante da reforma tributária do ITCMD é o PLP 108/2024, projeto de lei complementar que define as normais gerais do imposto de transmissão causa mortis e doação, mais de 30 anos após a previsão desse imposto na Constituição. No projeto, em seu artigo 160, § 5º, I, temos que determinadas situações relacionadas à distribuição desproporcional de dividendos são fatos geradores desse imposto:

“Art. 160. O ITCMD incide sobre a transmissão de quaisquer bens ou direitos:
(…)
§5º. Consideram-se, ainda, como doações, para fins da incidência do ITCMD, em transmissões entre pessoas vinculadas:
I – os atos societários que resultem em benefícios desproporcionais para sócio ou acionista praticados por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação, incluindo distribuição desproporcional de dividendos, cisão desproporcional e aumento ou redução de capital a preços diferenciados”

O referido dispositivo trouxe inúmeras manifestações de preocupação de estudiosos do Direito Tributário. Em comum, há o temor de que a falta de critérios objetivos sobre como pode ser comprovada a justificativa negocial cause insegurança jurídica, subvertendo o espírito simplificador da reforma tributária.

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Esse pequeno ensaio não pretende discorrer sobre a figura jurídica da distribuição desproporcional de dividendos. Nossa intenção é meramente analisar se há fundamentos na alegação de que o dispositivo legal pode servir, de fato, como fonte de insegurança jurídica.

Separação do joio do trigo

Partimos do pressuposto de que jamais poderia ser considerada doação a distribuição de dividendos feita com base negocial, seja ela desproporcional ou não, uma vez que nesse caso está implícita a expectativa de retorno financeiro aos próprios quotistas nos termos em que foi negociada a distribuição.

Não há liberalidade: o quotista que eventualmente receber dividendos proporcionalmente menores que a sua participação se sujeitou a essa situação por estar de acordo com os termos regentes da sociedade empresária que ele projeta ser lucrativa, e não porque deseja doar sua “parcela justa” aos demais sócios. Sem doação, portanto, não há que se falar em existência de fato gerador do ITCMD.

Premissa básica, também, é a de que a movimentação financeira na forma de distribuição de dividendos por si só não tem o condão de descaracterizar absolutamente toda e qualquer transação como doação. Por exemplo, um pai que detém 99% do capital social de uma sociedade e que, com a intenção de transferir patrimônio ao seu filho (sócio minoritário), distribui todos os lucros em forma de dividendos ao filho além da proporção que ele faz jus, está fazendo em verdade uma doação.

Em suma, nem toda distribuição desproporcional de dividendos esconde uma doação tributável de ITCMD, mas algumas sim. Nessa situação, a lei deve garantir ao estado a efetividade na separação do joio do trigo, permitindo que sejam identificáveis os casos de doação, sem constranger a livre iniciativa com cobranças de impostos indevidas. A César o que é de César.

Em certa medida, tal normatização já existe. O Código Tributário Nacional dá ao fisco amplos poderes para garantir a efetividade da legislação tributária, incluindo o de desconsiderar atos jurídicos praticados com finalidade de dissimular ocorrência de fato gerador do tributo ou demais elementos (CTN, artigo 116, p.u.). Ou seja, no sistema atual, as administrações tributárias já contam com base legal para tributar casos de distribuição de dividendos que possam ser consideradas como doações.

Sob esse prisma, o artigo 160 do PLP 108 esclarece o que deve ser considerado fato gerador do ITCMD quando ocorrer a distribuição desproporcional de dividendos. E o faz em caráter de norma geral de Direito Tributário, para que todos os entes tributantes uniformizem suas respectivas atuações.

Tal diretriz é fonte de maior segurança jurídica, e não o contrário. Se antes poderia haver apenas oposição doutrinária a atuação do fisco estadual sobre as mais diferentes hipóteses de distribuição de dividendos, o artigo em discussão, se aprovado, força legalmente os estados a se limitarem a considerar apenas as distribuições desproporcionais sem base negocial passível de comprovação.

Também fica reforçado ao quotista a importância da devida diligência documental em qualquer empreendimento de que faça parte, algo já previsto em diversas normas de direito empresarial, e que o PLP 108 define mais precisamente sua repercussão em matéria de ITCMD.

Não se pode desconsiderar também a existência de planejamentos tributáveis de legalidade duvidosa em que a distribuição desproporcional de dividendos é anunciada como ferramenta legítima para elisão do ITCMD.

O projeto de lei, no dispositivo aqui discutido, explicita àqueles que considerem fazer parte de tais planejamentos os exatos termos em que a distribuição de dividendos deixa de ser considerada não passível de tributação pelo fisco estadual.

Finalmente, quanto ao argumento de que o projeto de lei não traz critérios mais bem definidos sobre como a comprovação da justificativa negocial deve ser feita, ressalta-se a função de norma geral dessa lei complementar, em que pormenores são deixados para serem definidos pelos demais entes federados no âmbito de sua competência concorrente em matéria tributária.

Mas, ainda mais relevante, eventual dúvida sobre tais critérios em nada retira a virtude do incremento da segurança jurídica trazida pelo PLP 108. Afinal, atualmente, já nos encontramos em situação em que não há certeza sobre o que serve de comprovação de base negocial. O PLP 108 não aumenta em nada essa incerteza.