Foi noticiado mês passado o caso de uma mulher que morreu após sofrer um choque anafilático em um restaurante irlandês — Raglan Road — na Disney Springs, na Flórida (EUA). Mesmo tendo alertado o restaurante da sua condição alérgica, Kanokporn Tangsuan morreu com altos índices de lactose e de castanhas em seu organismo.
O que parecia um caso “normal” de acidente de consumo, haja vista não só o alerta feito pela consumidora, como também pelo fato de o restaurante estar listado no site da própria Disney como tendo alimentos não-alergênicos, tornou-se, porém, um debate sobre a jurisdição competente para apreciar o pleito indenizatório e sobre a necessidade de se revisitar as estruturas contratuais da sociedade digital.
Jeffrey Piccolo, marido de Tangsuan, ajuizou ação nas cortes locais da Flórida, a qual a Disney contesta, tecendo que o foro correto seria o arbitral. Isso porque Piccolo e Tangsuan teriam concordado com a arbitragem de consumo ao assinarem anos antes o Disney Plus — plataforma de streaming da empresa, que, dentre as diversas regras listadas no click agreement, estava essa forma de solução de controvérsias para eventualmente dirimir quaisquer problemas entre as partes.
Para a empresa, a citada cláusula contemplaria toda e qualquer relação que as partes poderiam ter, ou seja, não se limitava à plataforma de streaming. Mesma seria a regra contida nos bilhetes de acesso ao parque de diversões da Epcot, para onde o casal teria ido em 2023. Logo, ao visitarem a Disney Springs, argumentou a empresa, a arbitragem de consumo deveria ser usada em caso de litígio.
Esse argumento não é inovador, tendo já sido usado nos Estados Unidos por Walmart e Airbnb, com base nas “cláusulas de condições de uso” que as pessoas aceitam por meio de um toque quando adquirem produtos ou serviços nos seus websites ou apps. Entretanto, isso gerou uma série de questionamentos quanto à sua extensão, posto que existem mais de 150 milhões de assinantes da Disney Plus no mundo, incluindo brasileiros — isso sem contar o grande número de turistas internacionais que visitam os parques da Walt Disney World anualmente e não fazem ideia do teor dessa cláusula.
No Brasil, argumento seria um abuso
O questionamento que emerge, nesse sentido, é se esse mesmo argumento da Disney seria válido no Brasil. E a resposta é simples: não.
O Código de Defesa do Consumidor é claro ao proibir a cláusula arbitral compulsória por meio do artigo 51, VII, considerando-a abusiva. Por mais que existam exceções aceitas pelo Poder Judiciário brasileiro, como o consentimento expresso e devidamente ponderado pelo consumidor da cláusula arbitral previamente conhecida, a regra é que ela é considerada abusiva e, por isso, nula de pleno direito.
Muito embora existam debates no plano doméstico querendo alterar essa regra [1], sobretudo considerando a digitalização das relações de consumo e da maior quantidade de click agreements, é necessário ter cautela. [2] A vulnerabilidade digital do consumidor [3] faz com que esse sujeito precise ser protegido contra cláusulas como essa, nem sempre visíveis, nem sempre destacadas, mas que tolhem sobremaneira os seus direitos de acesso à Justiça e de reparação integral, especialmente diante de contratos que, além de serem unilateralmente impostos como condição de fruição aos serviços, não preenchem substancialmente o direito básico do consumidor à informação.
Ademais, dificilmente seria admitido no Brasil o argumento de a cláusula arbitral firmada em um contrato de streaming ou de ingresso em parque de diversões também ser usada para casos de acidente de consumo em restaurante que não esteja diretamente ligado àquelas situações.
Isso vai, além de tudo, contra as expectativas legítimas do consumidor. Em um mundo em que “não li mas aceito” é a regra, impor uma cláusula de extensão a todo o conjunto empresarial, para todos os seus serviços — online ou não — não corresponde à confiança depositada de que aquele contrato regerá aquela prestação de serviços de streaming e os relacionados, nada mais. [4]
Defesa do consumidor é prioridade
Cabe lembrar que o acidente de consumo, previsto pelo artigo 12 do CDC, se constitui a partir da violação do dever de segurança à saúde e à integridade psicofísica do consumidor, estando essa regra nas próprias origens desse campo normativo, nascente ainda na virada do século passado, nos próprios Estados Unidos, muito antes da declaração do então presidente estadunidense John Kennedy, em 15 de março de 1962. [5]
Em vista disso, é que devemos estar cada vez mais alerta às eventuais modificações legislativas perante o Congresso que tenham como escopo flexibilizar os direitos dos consumidores em nome de uma maior liberdade de mercado, a qual, frisa-se, deve se guiar pelos princípios da ordem econômica, listados no artigo 170 da Constituição, onde também está a defesa do consumidor (inciso V)!
Isso sem contar, é claro, que quaisquer direitos dos consumidores no Brasil, fundamentais por sua localização topográfica e de conteúdo, estão atrelados a uma cláusula pétrea, que é a defesa do consumidor, inserida no inciso XXXII, do artigo 5º da Carta Magna. [6]
Ou seja, aparentemente, nós, consumidores, estamos mais seguros no Brasil do que nos Estados Unidos. Ao menos em casos contra a Disney.
[1] Trata-se de uma iniciativa da Senacon de 2020, a qual inclusive contratou um estudo (liderado pelo Prof. Napoleão Casado Filho) para debater a viabilidade da inserção da arbitragem de consumo no Brasil, sugerindo uma alteração ao Decreto 8.573/2015, por meio do consumidor.gov.br no Brasil. Vale dizer, os autores destacam no seu estudo das virtudes da arbitragem de consumo na Europa, a qual apresenta um cenário social bastante diverso ao brasileiro. Para a opinião do autor do citado estudo, cf. https://www.conjur.com.br/2021-fev-11/opiniao-virtudes-arbitragem-relacoes-consumo/ (acessado em setembro de 2024). Já sobre a realidade distinta brasileira, cf. https://www.conjur.com.br/2021-jan-20/garantias-consumo-mediacao-arbitragem-relacoes-consumo/ (acessado em setembro de 2024). Ainda, elaborando sobre o esvaziamento da proteção do consumidor por eventual inserção da arbitragem nas relações de consumo de modo amplo, cf. https://www.conjur.com.br/2021-fev-18/opiniao-arbitragem-relacoes-consumo-deveres-protecao/ (acessado em setembro de 2024).
[2] Sobre a problemática envolvendo os click agreements, cf. SANTOLIM, César V. Os princípios de proteção do consumidor e o comércio eletrônico no Direito Brasileiro. Tese (Doutorado em Direito) – PPGD/UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, 2004, em especial, p. 90 et seq.
[3] Sobre o tema, cf. MARQUES, Claudia Lima; MUCELIN, Guilherme. Vulnerabilidade na era digital: um estudo sobre os fatores de vulnerabilidade da pessoa natural nas plataformas, a partir da dogmática do Direito do Consumidor. Civilistica, a. 11, n. 3, 2022. Disponível em: http://civilistica.com/vulnerabilidade-na-era-digital/ (acessado em setembro de 2024); e MARTINS, Fernando Rodrigues; LIMA, Thainá Lopes Gomes. Da vulnerabilidade digital à curiosa ‘vulnerabilidade empresarial’: polarização da vida e responsabilidade civil do impulsionador de conteúdos falsos e odiosos na ‘idade’ da liberdade econômica. Revista de Direito do Consumidor, n.128, mar./abr. 2020, p. 93-126.
[4] Claudia Lima Marques já vem asseverando há duas décadas que, “no mundo virtual, o silêncio não significa aceitação dos consumidores e sim indício de que um ato comercial dos fornecedores pode ser abusivo, a violar a confiança dos consumidores perante os profissionais, os fornecedores do comércio eletrônico”. MARQUES, Claudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor: um estudo dos negócios jurídicos no consumo no comércio eletrônico. São Paulo: RT, 2007, p. 271. Cf. também: LORENZETTI, Ricardo Luís. Comércio eletrônico. Trad. Fabiano Menke. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
[5] Para o discurso completo, acesse: KENNEDY, John F. Special message to congress on protecting consumer interest. Site John F. Kennedy Presidential Library and Museum, Boston, MA, 1962. Disponível em: https://www.jfklibrary.org/asset-viewer/ archives/JFKPOF/037/JFKPOF-037-028 (acessado em setembro de 2024).
[6] Acerca do tema, cf. Squeff, Tatiana Cardoso. Bases Constitucionais da Defesa dos Consumidores no Brasil: um resgate acerca da criação da legislação consumerista em prol da confirmação de sua posição privilegiada no ordenamento jurídico pátrio. Revista de Direito do Consumidor, v. 116, p. 129 et seq., 2018.