Legalidade do depoimento do menor de idade em processo disciplinar
30 de novembro de 2024, 6h00
O Ministério da Educação (MEC) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgaram os resultados da primeira etapa do Censo Escolar da Educação Básica de 2023, apontando que aproximadamente 47,3 milhões de alunos estão matriculados em 178,5 mil escolas de diferentes níveis e modalidades de ensino no Brasil [1].
Neste vasto universo de interações, o ambiente escolar torna-se palco de inúmeros episódios que demandam análise sob a perspectiva do direito disciplinar, especialmente em razão da convivência diária entre alunos e professores, muitas vezes marcada por desafios, acertos, erros e, ocasionalmente, equívocos.
Em um contexto tão dinâmico, não é difícil que denúncias surjam, variando desde aquelas legítimas, que buscam apurar violações reais e comprometem o ambiente escolar, até outras que, instrumentalizadas como retaliações contra professores, são motivadas por interesses alheios à ética e ao interesse público, frequentemente destinadas a contestar posturas rigorosas ou disciplinares dos docentes. Quem nunca presenciou, nos tempos de colégio, alunos articulando formas de afastar determinado professor considerado “chato” ou visto pela turma como excessivamente exigente?
Diante desse contexto, surge uma questão fundamental: é admissível que menores de idade sejam ouvidos como testemunhas em processos administrativos disciplinares? A resposta a essa indagação é determinante para garantir a legitimidade do processo e resguardar o direitos das partes envolvidas.
Trabalho do agente público no depoimento
Neste artigo, o foco recai sobre a análise da situação do agente público regido pela Lei nº 8.112/90 [2], que, em sua defesa, necessita colher o depoimento de testemunha menor de idade para demonstrar que os fatos alegados não ocorreram ou, caso tenham ocorrido, não se deram da forma apresentada.
Sobre esse tema, a Lei nº 8.112/90, ao tratar das oitivas de menores de idade, não estabelece regras específicas quanto à capacidade de testemunhar, o que, ao nosso sentir, acaba por permitir a escuta dessas pessoas no âmbito disciplinar.
Na ausência de regramento explícito na legislação que regula o serviço público, é adequado recorrer, de forma subsidiária [3], a outras fontes legais, como o Código Civil, o Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal.
Conforme destacado por Antonio Carlos Alencar Carvalho, tais fontes constituem “(…) exemplos de meios de integração do direito administrativo disciplinar processual e material” [4], sendo compatíveis com a natureza sancionatória desse ramo jurídico.
Normas de Código Civil, CPC e CPP
Assim, na ausência de vedação legal à escuta de menores em processos disciplinares, a aplicação subsidiária de normas como o Código Civil, CPC e CPP assegura uma interpretação harmônica e coerente com o objetivo de buscar a verdade real.
Sobre essa questão, o artigo 228, § 1º, do Código Civil determina que “(…) para a prova de fatos que só elas conheçam, pode o juiz admitir o depoimento das pessoas a que se refere este artigo”.
De forma complementar, o artigo 447, §1º, inciso III, §§4° e 5° do Código de Processo Civil, permite, inclusive aos incapazes, o direito de depor como testemunha, ainda que sem compromisso formal, conforme os seguintes termos:
Art. 447. Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas ou suspeitas.
§ 1º São incapazes:
(…)
III – o que tiver menos de 16 (dezesseis) anos;
(…)
§ 4º Sendo necessário, pode o juiz admitir o depoimento das testemunhas menores, impedidas ou suspeitas.
§ 5º Os depoimentos referidos no § 4º serão prestados independentemente de compromisso, e o juiz lhes atribuirá o valor que possam merecer.
Também o Código de Processo Penal, em seus artigos 202 e 208, não veda a oitiva do menor de idade, sendo apenas dispensado a prestar compromisso, de modo a garantir, de uma ponta a outra, a busca pela verdade real.
Art. 202. Toda pessoa poderá ser testemunha.
(…)
Art. 208. Não se deferirá o compromisso a que alude o artigo 203 aos doentes e deficientes mentais e aos menores de 14 (quatorze) anos, nem às pessoas a que se refere o artigo 206.
A interpretação conjunta desses dispositivos legais confirma que incapazes, especialmente sobre fatos que somente eles conhecem, podem ocupar legitimamente a posição de testemunha no processo, contribuindo com depoimentos essenciais para o esclarecimento das alegações apresentadas na denúncia.
Histórico da colheita de prova
A possibilidade desse tipo de colheita de prova foi reforçada, em abril de 2017, com a publicação da Lei Federal nº 13.413/17, que instituiu o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.
Essa legislação trouxe importantes inovações, especialmente no que se refere ao depoimento de crianças, com idade de até 12 anos incompletos, e de adolescentes, com idade entre 12 e 18 anos incompletos, reconhecendo a necessidade de proteção integral em razão de seu estágio peculiar de desenvolvimento físico, psíquico e moral.
Para esses grupos, a legislação, nos artigos 7º e 8º, estabelece as modalidades de relato para casos de violência sofrida ou presenciada, prevendo a escuta especializada [5] e depoimento especial [6] como formas específicas de coleta de depoimentos de menores de idade.
Vale destacar: se a legislação autoriza essas formas de escuta em casos notoriamente mais graves e complexos, qual seria a justificativa para que, em questões de menor complexidade, uma criança ou adolescente, com os devidos cuidados exigidos pela legislação, não pudesse relatar fatos relevantes em uma denúncia que originou a instauração de processo disciplinar?
Esse tipo de veto não faz sentido algum.
Firmes nestes ideais, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgando o Habeas Corpus nº 152.750/DF, sob relatoria do ministro do STJ Marco Aurélio Bellizze exarou importante precedente sobre a questão, ao sinalizar que inexiste “(…) qualquer vedação no sentido de que menor seja ouvido como testemunha em Juízo, isso porque o art. 202 do Código de Processo Penal prescreve que ‘toda pessoa poderá ser testemunha’, dispensado o compromisso de dizer a verdade nas hipóteses presentes no art. 208 do mesmo diploma legal” (STJ – 5ª Turma – HC nº 152.750/DF, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, p. no DJ do dia 18/12/2012).
Discutindo ainda mais a questão, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, julgando o Agravo de Instrumento nº 4023814-37.2017.8.24.0000, de relatoria do desembargador Pedro Manoel Abreu, discutindo a licitude do depoimento de crianças, cravou acerca da “(…) possibilidade de utilização dos depoimentos das crianças, as quais foram as únicas que presenciaram os atos ilícitos da agravante”, sob pena de evidenciar, no âmbito disciplinar, o cerceamento de defesa.
Trabalho em processos disciplinares
É imprescindível que, nos processos disciplinares, a comissão processante, ao se deparar com denúncias envolvendo fatos narrados por menores de idade ou atestados por terceiros que não presenciaram os eventos alegados, proceda à escuta direta dessas testemunhas.
Essa prática não apenas assegura a busca pela verdade real, mas também preserva o direito de defesa do acusado, permitindo que ele contradite as alegações apresentadas. Ignorar tal medida equivale a validação do uso exclusivo de testemunhos indiretos, muitas vezes baseados em atas produzidas por terceiros e que sequer estavam presentes nos fatos investigados, uma prática que, embora rechaçada pelo Superior Tribunal de Justiça [7], ainda é utilizada em diversos cantos deste país.
Ao validar acusações sem a devida escuta direta dos envolvidos, especialmente daqueles que efetivamente presenciaram os fatos, abre-se espaço para que injustiças e arbitrariedades floresçam no âmbito do processo disciplinar, comprometendo a integridade das apurações e podendo resultar na aplicação de penalidades administrativas cabais contra pessoas inocentes.
Desvio de finalidade
É importante lembrar que, no ambiente da administração pública, muitos atos podem ser eivados pelos vícios do desvio de finalidade, o que evidencia a fragilidade de processos conduzidos sem o devido rigor. Situações como essas permitem que três ou quatro relatos imprecisos, muitas vezes elaborados de forma deliberada e motivados por interesses escusos, sejam suficientes para construir uma narrativa falsa contra um servidor, podendo culminar em sua demissão sem que haja uma análise criteriosa dos fatos.
Essa prática, além de comprometer a integridade das apurações, torna-se um instrumento perigoso de perseguição ou retaliação, enfraquecendo o sistema disciplinar e comprometendo a confiança nos mecanismos administrativos, que devem primar pela justiça e pela verdade.
A escuta direta de menores é não apenas uma garantia legal, mas uma exigência ética para assegurar um processo disciplinar justo, que proteja os direitos dos acusados e promova a busca pela verdade real.
Somente assim será possível combater injustiças, preservar os direitos dos servidores e consolidar um serviço público que verdadeiramente atenda aos interesses da coletividade, com eficiência, credibilidade e respeito aos princípios fundamentais consagrados pela Constituição.
[1] Conforme destacado na Portaria nº 2.165, de 27 de dezembro de 2023, os dados apresentados abrangem alunos matriculados em todas as etapas e modalidades de ensino, incluindo creche, pré-escola, ensino fundamental, ensino médio, educação de jovens e adultos, educação profissional e integral, distribuídos pelas redes estaduais e municipais, tanto em zonas urbanas quanto rurais. Para acessar o conteúdo completo do censo, clique neste link: <https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-2.165-de-27-de-dezembro-de-2023-534991274>.
[2] Atente-se: o raciocínio aqui desenvolvido aplica-se igualmente às legislações específicas que regem agentes públicos em outras esferas administrativas. Recomenda-se, no entanto, que sejam avaliadas a legislação e as normas internas aplicáveis ao regime funcional em questão, a fim de identificar eventuais disposições específicas sobre a matéria. Caso não exista vedação expressa em lei, portaria ou qualquer outro instrumento normativo, a escuta de menores de idade pode ser considerada permitida, seguindo a lógica apresentada. Contudo, na hipótese de haver um normativo que imponha tal vedação, a discussão desloca-se para a análise da legalidade do veto em si, questionando sua compatibilidade com os princípios que regem o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório.
[3] Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.
[4] CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Manual de Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância. 6ª ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2019. p. 263.
[5] Art. 7° Escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade.
[6] Art. 8º Depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária.
[7] “(…) 3. O depoimento testemunhal indireto, por si só, não possui a capacidade necessária para sustentar uma acusação consistente, sendo imprescindível a presença de outros elementos probatórios substanciais. 4. A rejeição da denúncia é medida adequada diante da insuficiência de elementos probatórios que vinculem o acusado aos fatos alegados, em conformidade com o princípio constitucional da presunção de inocência. (STJ – 5ªT – AREsp nº 2290314/SE, sob relatoria do Ministro do STJ, Min. RIBEIRO DANTAS, julgado no dia 23/05/2023 e publicado no DJe do dia 26/05/2023)
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