Opinião

Enriquecimento sem causa em cobrança de não-associados em loteamento de acesso controlado

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30 de novembro de 2024, 7h09

Se alguém for cobrado por uma obrigação com a qual não se comprometeu, dificilmente não se testemunhará revolta com tal cobrança. Mesmo para o senso comum, a ideia sobre o Direito está vinculada ao consentimento ou à imposição legal. E de fato é o que se interpreta do inciso II do artigo 5º da Constituição: a obrigação de se realizar uma conduta deve ter origem na lei.

O nosso ordenamento apresenta, a partir desse dispositivo, o esquema principal de interpretação daquele tipo de comunicação que chamamos Direito. Só sabemos o que deve ser feito obrigatoriamente quando consultamos a lei — embora esse método venha sendo corroído pelo ativismo judicial, expressão da pós-modernidade.

Por exemplo, ninguém pode ser considerado membro de uma associação e consequentemente cobrado pelas obrigações decorrentes dessa relação a não ser que tenha consentido em ser associado, pois assim dispõe a lei. É o que diz o artigo 5º, XX, da Constituição.

Não obstante, vem sendo sustentada no meio jurídico interpretação do Direito pela qual se reconhece a possibilidade de obrigar independentemente de haver imposição legal ou de haver assentimento com a obrigação. É o caso de cobrança de não-associado para custeio de despesas de manutenção de loteamento.

A análise do tema passa obrigatoriamente pela decisão do Supremo Tribunal Federal no RE 695.911 (Tema 492) que, analisando o artigo 36-A da Lei 6.766/1979 (sobre parcelamento do solo), reconheceu sua compatibilidade com a Constituição desde que a “taxa” de manutenção e conservação de loteamento imobiliário urbano seja posterior ao advento da Lei 13.465/2017 (que incluiu o artigo 36-A na lei 6.766) ou posterior a lei municipal que trate da questão.

Além desse requisito, o Supremo exigiu que a cotização se refira a loteamentos de acesso controlado e que sua cobrança dependa de ingresso do proprietário na associação de proprietários e moradores ou, não sendo associado, que haja previsão no registro de imóveis sobre a obrigação de pagar a cota-associativa.

A decisão do Supremo dialoga com outra, do Superior Tribunal de Justiça, que deu origem ao Tema 882, a qual definiu que as taxas de manutenção criadas por associações de moradores não obrigam os não associados ou que a elas não anuíram.

Cobrança feita a pessoas não-associadas e enriquecimento sem causa

A questão fundamental gira em torno do nascimento da obrigação jurídica. Hoje, parte-se da premissa de que a pessoa tem uma obrigação jurídica porque ela decorre da lei ou porque ela decorre do acordo de vontades, como ocorre com os negócios jurídicos. Então, nessa perspectiva, ambas as decisões estão em harmonia com tal premissa, pois só há obrigação de pagar se a pessoa é associada ou se a obrigação é propter rem, isto é, se decorre da propriedade do imóvel, caso em que deve constar de sua matrícula para ser exigível.

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Vista aérea de casas às margens de avenida

Contudo, apesar de não haver dificuldade para se encontrar o âmbito de incidência das referidas decisões, a questão da obrigatoriedade do pagamento de cotas para o custeio de atividades realizadas por associações de proprietários e moradores permanece vacilante.

E a vacilação tem por causa a cobrança dessas cotas em relação a pessoas não-associadas, quando inexistente inscrição dessa obrigação no registro de imóveis, tendo como fundamento a vedação do enriquecimento sem causa. Tal posição busca contornar, em benefício das associações, o entendimento do STF e o do STJ, que são suficientes para dizer o direito aplicável para esse caso. Aliás, sobre a tese do enriquecimento sem causa, o STJ a afastou expressamente em nome da efetiva liberdade de associação, no referido tema 882, conforme voto-vencedor do eminente Ministro Marco Buzzi, que citou a decisão do STF no RE 432.106/RJ, na qual prevaleceu o direito previsto no artigo 5º, XX, da CF.

Como não há lei que obrigue o não-associado a contribuir com as atividades exercidas por associações, e como paira um suposto sentimento de injustiça sobre quem recebe um serviço e não paga a contraprestação, as empresas de loteamento e as associações têm se valido dessa tese a partir de um paralelo feito entre os loteamentos com acesso controlado e os condomínios edilícios.

No caso dos condomínios edilícios, a obrigação de cotizar as despesas decorre de sua instituição por ato entre vivos ou por testamento, desde que inscrito no registro de imóveis, nos termos do artigo 1.332 do código civil (CC). Sua configuração é a seguinte: o domínio de um imóvel pertence a mais de uma pessoa, sendo dividido em domínio comum (áreas de uso de todos) e exclusivo (área de uso privativo de parte do imóvel). Assim, quem adquire um apartamento num edifício está adquirindo não só o domínio exclusivo como também o comum, já que o acesso e a manutenção da unidade de uso privativo depende da existência e manutenção das partes de uso de todos, formando um todo indivisível de fato. O dever de manutenção é repartido entre todos, pois todos são donos do imóvel.

Numa tentativa de solucionar a anomia vigente nos chamados condomínios de casas, a lei 13.465/2017 incluiu o artigo 1.358-A no CC. Tal dispositivo possibilitou a constituição de condomínio de lotes, conferindo, por assim dizer, uma perspectiva horizontal para o condomínio edilício. Assim, num mesmo terreno, é possível destinar parte de seu domínio ao uso exclusivo e parte ao comum.

No entanto, essa hipótese não é capaz de resolver a cotização dos chamados condomínios de fato, que, na verdade, não são co-domínios sobre um imóvel (isto é, não geram domínio comum sobre um mesmo bem), mas sim domínios particulares situados num loteamento. Aqui, não se pode perder de vista o significado de loteamento. Segundo o artigo 2º, §1º, da lei 6.766, considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes.

Assim, um condomínio de fato jamais poderá ser considerado um condomínio de lotes, a não ser que haja uma revolução jurídica. Conceitualmente, não é possível reunir a figura do condomínio de fato sob a ideia do condomínio de lotes e do edilício. Juridicamente, também não, já que o regime jurídico, para o caso, parte da noção conceitual de domínio de algo por mais de uma pessoa, ou, seguindo o significado do prefixo co-, parte da ideia de domínio (propriedade) de um bem com outra pessoa. Se um regime jurídico depende do conceito do objeto sobre o qual recairá suas normas, então não se pode pretender aplicar as regras relativas ao condomínio edilício a realidade que não se subsume ao conceito de propriedade simultânea de um mesmo bem.

Por isso, não resta outro recurso senão a defesa da tese da vedação de enriquecimento sem causa para que a obrigação de custeio seja exigida do não-associado, a despeito da razão de decidir do tema 882 do STJ. Na verdade, a questão do enriquecimento sem causa merece ser analisada a partir de um giro copernicano, devendo incidir sobre a conduta das associações. Vejamos.

O ponto que raramente se toca ao se imputar enriquecimento sem causa é aquilo que constitui o objeto desse enriquecimento. Para que haja injustificada transferência de riqueza para outrem é preciso que o domínio de um patrimônio passe de uma pessoa para outra ou, no caso de serviço, que seja prestada uma atividade sem a respectiva contraprestação. Mas, como isso ocorre em um loteamento de acesso controlado? O que a associação faz que traz uma vantagem ou aumento de patrimônio, aferível para cada imóvel situado no loteamento?

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A manutenção de clube e áreas de lazer não devem se prestar a esse fim, pois são construídas em áreas de propriedade da associação cujo acesso não é público. Só o associado tem direito de fruir dessas áreas. Logo, nesse caso, não se realiza a transferência de vantagem ou riqueza para quem não frui desses bens. Por sua vez, a segurança privada feita no loteamento também não pode servir a essa finalidade, pois o serviço é prestado especificamente para a associação, não havendo relação direta com quem não é associado. No máximo, pode-se prever a estipulação em favor de terceiro (aos moradores e proprietários do loteamento fechado); porém aí, pela natureza contratual, a vantagem em favor do terceiro não depende de contraprestação. Os serviços de manutenção e melhoramento das áreas públicas também não podem fundamentar o enriquecimento sem causa, porquanto o beneficiário é o poder público e toda a coletividade.

Nesses casos, tenta-se justificar a tese de enriquecimento pelo argumento da valorização do imóvel. No entanto, a valorização enquanto não convertida em dinheiro não passa de mera especulação, não satisfaz portanto a necessidade de efetiva transferência de riqueza. Ademais, ainda que fosse possível fundamentar o enriquecimento sem causa na mera valorização, esta, sendo finita, apenas justificaria a cobrança enquanto ela correspondesse ao acréscimo de valor, tal como ocorre com a contribuição de melhoria.

De qualquer forma, resta ainda os serviços de tratamento e abastecimento de água, o de coleta e tratamento de esgoto e o de coleta de resíduos sólidos residenciais. Tais serviços são prestados com benefício individual de cada proprietário, seja ou não associado. Em princípio podem justificar o enriquecimento sem causa. Mas não em todo caso.

Não se pode perder de vista que o acesso controlado é instrumento jurídico que busca regularizar o fechamento de vias públicas em benefício de particulares. Como o fechamento ocorre em localidade loteada ou a ser loteada, o poder público municipal geralmente condiciona o controle de acesso à realização de serviços públicos de sua titularidade pela associação [1], notadamente os de saneamento básico, previstos no artigo 3º, I, e artigo 8º, I, ambos da Lei 11.445/2007.

Então se estabelece uma troca entre o município e o empreendedor. Para expansão urbana, o poder municipal encontrou uma forma de ampliar a cidade (e a arrecadação) sem ampliar o gasto com os serviços públicos. Em compensação ao ônus de arcar com os serviços públicos, os particulares, por meio de associação, ganham o direito de fechar o perímetro do loteamento e de controlar o acesso ao local.

Esse esquema de loteamento parece ser a solução para regularizar os condomínios de fato. Tanto o município como os particulares obtêm vantagens. E, aparentemente, não há violação à ordem jurídica, a qual, inclusive, a partir da lei 13.465, previu a modalidade de loteamento com acesso controlado, ao incluir o §8º no artigo 2º da lei 6.766 [2], deixando ao município a regulamentação.

No entanto, basta ler o artigo 175 da CF para notar que esse controle de acesso não implica automaticamente a realização de serviços públicos. Estes só devem ser prestados por particular com base no artigo 175 da CF e no artigo 10 da Lei 11.445/2009. Para tanto, é preciso que o município, titular desses serviços, conceda-os por licitação.

Por isso, não havendo concessão, não se pode imputar enriquecimento sem causa de quem se beneficia do serviço. Em tais casos, os recursos recebidos pelas associações, decorrentes desses serviços, resultam de conduta cujo objeto não é lícito, o que torna a relação jurídica nula, conforme artigo 166, II, do CC. Se a contraprestação recebida decorre do exercício de atividade que a associação não pode desempenhar, caso não lhe tenha sido regularmente concedida mediante licitação, então faria mais sentido dizer que o enriquecimento sem causa é no mínimo dessas associações.

O que chama a atenção nesse contexto é o fato de serviços públicos estarem sendo prestados à revelia do que dispõe o artigo 175 da CF, sem qualquer tipo de controle público, mormente controle sobre o valor cobrado pela atividade e sobre a qualidade do serviço prestado. Para a concessão de serviço público, há uma série de regras a serem seguidas, principalmente quanto à qualidade e à tarifa cobrada, nos termos da Lei 8.987/1995, além da incidência dos princípios da administração pública, conforme artigo 37 da CF. E, com a prestação desses serviços de forma ilegal, até mesmo resta prejudicada a aplicação do código de defesa do consumidor e da Lei 13.460/2017, que regula a proteção dos usuários de serviços públicos, sobretudo em relação aos próprios associados.

Cobrança de não associados

Para concluir, a tese de que mesmo pessoas não associadas devem participar do custeio de atividade de conservação e manutenção de loteamentos não se sustenta, com muito mais razão, no caso de prestação de serviços públicos sem licitação.

Vale lembrar que o artigo 36-A da Lei 6.766 vincula as atividades desenvolvidas por associações de proprietários e moradores à atividade de administração de imóveis. A atividade administrativa só pode ocorrer sobre os bens que são objeto de autorização de seus proprietários. Os bens geridos pela associação são aqueles de seu patrimônio, não podendo ser objeto de sua gestão aqueles pertencentes a terceiros, muito menos ao poder público, sem que haja causa jurídica para tanto.

Logo, a cobrança de cotas é possível se o devedor é associado; não sendo associado, a cobrança só é possível se houver inscrição no registro de imóveis da obrigação de cotizar, e somente em relação às atividades de conservação e manutenção relativas aos bens da associação ou, em relação a serviços públicos que tenham sido regularmente concedidos, mediante licitação.

Caso não haja concessão, então não é possível a cobrança, pois resulta de prestação de serviço público usurpada, o que significa que o produto econômico desse ato ilícito não pode ser objeto de exigência de pagamento. Se o serviço é público, então é obrigatória sua prestação, o que demonstra que tal atividade seria prestada necessariamente para o não-associado, proprietário de imóvel em loteamento.

O pagamento de tal serviço é que não deve ser feito a quem não tem legitimidade de prestá-lo, sob pena de enriquecimento sem causa. Pois, se o serviço público não pode ser prestado, por não ter sido concedido mediante licitação, então a associação não pode reclamar pelo que fizer a esse título.

 


[1] Como é o caso da lei complementar 313/2012 do município de Itupeva/SP, art. 220, IV:

Os novos loteamentos poderão adotar o acesso controlado, desde que:

[…]
IV – os serviços públicos e a manutenção das áreas comuns ou com permissão de uso localizadas dentro do perímetro com acesso controlado sejam desempenhados por conta da Associação dos Proprietários.

[2] § 8º Constitui loteamento de acesso controlado a modalidade de loteamento, definida nos termos do § 1º deste artigo, cujo controle de acesso será regulamentado por ato do poder público Municipal, sendo vedado o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados.

 

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