Diário de Classe

A formação do pensamento social brasileiro e a atualidade dos clássicos

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  • é doutoranda em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos na linha de pesquisa: Hermenêutica Constituição e Concretização de Direitos bolsista Capes/Proex mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria-UFSM com bolsa Capes pesquisadora do grupo de pesquisa e extensão: Phronesis: Jurisdição e Humanidades e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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30 de novembro de 2024, 8h00

As primeiras décadas do século 20 testemunham uma reviravolta na formação do pensamento social brasileiro [1]. As razões para essas “reviravoltas” dialogam de perto com o surgimento de versões não somente relacionadas à especificidade brasileira, mas também de impactos paradigmáticos. Por certo, existem grandes explicadores do nosso contexto e o seu legado alcançou outros espaços da formação intelectual do Brasil, sobretudo, nas Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas.

E, claro, o Direito, bem como toda a institucionalidade que dele decorre não passaram incólumes, permitindo uma peculiar interlocução entre essas leituras, relacionadas ao contexto brasileiro e que denunciam a forma de institucionalidade local, evidenciando problemas políticos e jurídicos [2].

De certa maneira, evidenciar essas leituras nos permite reconhecer as tradicionais chaves explicativas de nosso contexto [3]. Isto é, sobretudo, referentes ao “patriarcalismo, ao patrimonialismo, à mentalidade colonial, aos hábitos privados projetados na esfera pública, à dominação oligárquica, ao racismo, à arrogância, ao horror às normas, ao ‘jeitinho brasileiro’, ao clientelismo, presentes diariamente na vida privada e pública” [4].

O sociólogo Francisco de Oliveira sublinhou a leitura de textos como: Formação do Brasil Contemporâneo (1942), Casa-grande & Senzala (1933) e Raízes do Brasil (1936). A partir deles, fez um interessante ponto de convergência para reconhecimentos, identificações, analogias e metáforas sobre nossos traços mais característicos. O jurista e professor Lenio Streck destaca em sua obra O que é Fazer a Coisa Certa no Direito, além das obras supramencionadas, o texto Os Donos do Poder (1958), fazendo um contraponto interessante em relação à mentalidade personalista. Essa, por sua vez, resulta em um sistema político fragmentado e pouco institucionalizado, o que dificulta a construção de uma democracia sólida [5].

Gilberto Freyre, por exemplo, buscou uma maneira de entender o Brasil a partir de uma visão original, de suas diferenças e contrastes, apoiando-se na sociologia, economia, antropologia e geografia como ciências sociais que se impunham naquela época. Em 1936, Sérgio Buarque de Holanda publicou Raízes do Brasil. Esse, por sua vez, foi um poderoso ensaio sobre os descompassos que iriam formar nossa sociedade. Em 1942, a dupla transformou-se em trio, por força da edição de Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr., livro que estabelece novo ponto de viragem nesse esforço de reinterpretação do país [6]. E em 1958, é publicada a obra Os Donos do Poder, de autoria de Raymundo Faoro.

O país do mandonismo

Importa fazer destaque a essa obra. Isso porque Faoro [7], por sua vez, buscou analisar as bases do poder e da estrutura política do Brasil, conferindo destaque a uma herança patrimonialista, influenciada pelo período colonial. Por certo, Faoro faz uma espécie de antropofagia dos conceitos de patrimonialismo e estamento. Assim, demonstrou que o Estado e a sociedade estavam intrinsecamente ligados, em uma rede de clientelismo e troca de favores. O jurista de formação, procurou explicar que as origens dos diversos problemas da realidade política brasileira não estavam na personalidade do povo, mas, sim, em elementos político-institucionais característicos do nosso sistema político.

Nesse sentido, em Faoro, os desvios que aconteciam na esfera pública deixaram de ser explicados como uma característica da passionalidade para serem analisados como uma questão relacionada à estrutura de poder imposta por nossas elites. A interpretação de Faoro toma como traço dominante da história do Brasil a tutela autoritária de um aparelho político, sempre a serviço de poucas pessoas.

A partir desses elementos apresentados é possível compreender a difícil relação entre Direito e política, por exemplo. Isso porque, ao longo da história brasileira [8], principalmente, na história constitucional brasileira [9], nota-se a história do poder político arbitrário se sobrepondo ao Direito. De acordo com ele, “mandar, e não governar, será o alvo — mando do homem sobre o homem, do poderoso sobre o fraco, mas não o comando institucionalizado, que impõe, entre o súdito e a autoridade, o respeito a direitos superiores ao jogo do poder” [10]. Assim, no lugar do poder político limitado pelo Direito acabou por ser instituído o mandonismo. Esse, por sua vez, enquanto uma forma de dominação pré-moderna está sempre disposta a atravessar as instituições públicas para benefício daqueles que se autoproclamam: donos do poder.

Ciente da historicidade das ideias que atravessam qualquer obra, bem como  da importância dos debates políticos e intelectuais enfrentados pelos autores no seu tempo histórico é que compreendo que muitas das suas ideias ainda nos ajudam a compreender a realidade. Arrisco a afirmar, amparada na perspectiva fenomenológica [11], que as fragilidades institucionais que aparecem no cenário brasileiro como óbices à consolidação do projeto democrático encontram sua instrumentalização, considerando a sua recente saída [12] de um regime autoritário [13] – refletidas nesse imaginário, inserido apenas nas vontades ou opções ideológicas de quem detém o poder [14]. Por certo, essas obras se atravessam e são aspectos importantes para compreender as raízes das assimetrias brasileiras, pois exploram aspectos estruturais e históricos que continuam moldando o país. Apesar de abordarem temas (e matrizes teóricas) distintas, oferecem análises que ajudam a interpretar as raízes históricas de problemas atuais, como a corrupção, o racismo estrutural, a concentração de poder, a exclusão social no Brasil e o protagonismo judicial [15].

 


[1] SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

[2] Nesse sentido, consultar: COPELLI, G. M. Déficits de republicanismo no Brasil: uma crítica à crítica contemporânea. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 43, p. 119–136, 2020. DOI: 10.22456/0104-6594.95150. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/revfacdir/article/view/95150. Acesso em: 27 nov. 2024.

[3] COPELLI, G. M. Déficits de republicanismo no Brasil: uma crítica à crítica contemporânea. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 43, p. 119–136, 2020. DOI: 10.22456/0104-6594.95150. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/revfacdir/article/view/95150. Acesso em: 27 nov. 2024.

[4] OLIVEIRA, Francisco de. Diálogo na grande tradição. In: NOVAES, Adauto (Org.) A crise do Estado-nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 445.

[5] STRECK, Lenio Luiz. O que é fazer a coisa certa no Direito. São Paulo: Dialética, 2023, p. 61.

[6] SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, s.p.

[7] Nesse sentido, consultar: NEVES, Isadora; LIMA, Danilo. Pereira. Atualidade de Raymundo Faoro e dos clássicos do pensamento político. Disponível: https://www.conjur.com.br/2019-fev-02/diario-classe-atualidade-raymundo-faoro-classicos-pensamento-politico/. Acesso em: 27 nov. 2024.

[8] Schwarcz, Lilia  Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2019.

[9] Nesse sentido, consultar: STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

[10] FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed., São Paulo: Globo, 2001. p. 357.

[11] STEIN, Ernildo. Gadamer e a consumação da hermenêutica. In: STEIN, Ernildo; STRECK, Lenio. Hermenêutica e epistemologia: 50 anos de Verdade e Método. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

[12] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/09/golpes-e-instabilidade-marcam-politica-desde-independencia-do brasil.shtml

[13] www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/02/no-brasil-todo-golpista tem-um-jurista-para-chamar-de-seu.shtml

[14] O’Donnell, Guillermo. Reflexões sobre os estados burocrático-autoritários. São Paulo: Vértice, 1987.

[15] Essas aproximações precisam ser tratadas em outra coluna. Infelizmente não há espaço na coluna de hoje para aprofundar essa discussão.

Autores

  • é doutoranda em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos, bolsista Capes/Proex, mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com bolsa Capes, pesquisadora do grupo de pesquisa e extensão Phronesis: Jurisdição e Humanidades e do Dasein - Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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