Recuperação judicial, multa administrativa e particularidade das penas aplicadas pela CVM
29 de novembro de 2024, 16h18
Persiste ainda controvérsia, em matéria de recuperação judicial, envolvendo a suspensão das execuções fiscais que exigem valores a título de multa por infração administrativa.
Talvez a polêmica resista porque não há um julgamento sob o rito dos recursos repetitivos, pois é claro que o Superior Tribunal de Justiça sempre manteve o entendimento consagrado de inaplicabilidade da suspensão às execuções fiscais de qualquer natureza, compreendendo que o legislador não fez ressalvas a respeito da natureza tributária ou não do crédito exequendo, seja na disposição da norma antiga (revogado § 7º do artigo 6º da Lei 11.101/05), seja na nova dicção legislativa (§ 7-B do artigo 6º da Lei 11.101/05, redação dada pela Lei nº 14.112/2020), cujos fundamentos são complementados pela disposição inserta no § 4º do artigo 4º da Lei de Execuções Fiscais (LEF) — Lei nº 6.830/1980 — que estendeu aos créditos não tributários as preferências atribuídas ao crédito tributário.
A título de exemplo, podemos citar os acórdãos proferidos no AgRg no CC nº 112.646/DF [1], relator ministro Herman Benjamin, e REsp nº 1.931.633/GO [2], relatora ministra Nancy Andrighi, um de cada período legislativo, demonstrando a coesão jurisprudencial da Corte Superior.
Particularidade das multas aplicadas pela CVM
Entretanto, situação especialíssima ocorre com as penalidades de multa impostas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que possui normativa própria em sentido oposto aos precitados julgados do STJ.
A CVM é uma autarquia federal criada pela Lei nº 6.385/76 para fiscalizar o mercado de valores mobiliários. Dentre as suas competências está o dever de aplicar penalidades, inclusive de multas, quando constate infrações apuradas mediante processo administrativo, conforme define o artigo 9º, VI, c/c artigo 11, II, da Lei nº 6.385/76.
A particularidade do caso reside no § 15º do artigo 11 da Lei 6.385/76. Cita-se:
“Art. 11. A Comissão de Valores Mobiliários poderá impor aos infratores das normas desta Lei, da Lei no 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (Lei de Sociedades por Ações), de suas resoluções e de outras normas legais cujo cumprimento lhe caiba fiscalizar as seguintes penalidades, isoladas ou cumulativamente:
(…)
II – multa;
(…)
§15. Em caso de falência, liquidação extrajudicial ou qualquer outra forma de concurso de credores do apenado, os créditos da Comissão de Valores Mobiliários oriundos da aplicação da penalidade de multa de que trata o inciso II do caput deste artigo serão subordinados.”
De acordo com a redação legislativa, as penalidades de multa aplicadas pela autarquia se subordinarão a qualquer forma de concurso de credores, entre eles falência e recuperação judicial.
Cuida-se de norma especial que não ofende o entendimento jurisprudencial do STJ, porque não contrasta com as normas que são invocadas nos julgados utilizados para indeferir a suspensão dos processos executivos.
Não existe nenhuma incompatibilidade no reconhecimento da norma que sujeita as multas aplicadas pela CVM ao processo de soerguimento.
No caso, a norma inscrita no artigo 11, § 15º, da Lei nº 6.385/76 é especial relação à prescrição do § 7º-B do artigo 6º da Lei 11.101/05 e ao § 4º do artigo 4º da LEF, porque regula especificamente as infrações de multa aplicadas pela CVM, determinando a sujeição a qualquer processo que estabeleça concurso de credores.
Outrossim, a norma também é posterior ao § 4º do artigo 4º da LEF, considerando ser esta, inclusive, anterior à própria Constituição Federal, cujo conteúdo normativo regula de maneira geral a cobrança dos créditos tributários e não tributários.
Como se vê, pelas regras de hermenêutica jurídica, o caso deve ser interpretado à luz do artigo 2º, §§ 1º e 2º, da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiras (Lindb) — Decreto-Lei nº 4.657/42 —, cuja norma tem aplicação 1) quando for posterior à vigente e o seu comando não for incompatível com a matéria regulada na lei anterior e 2) na hipótese de a lei nova estabelecer disposições especiais à par das já existentes (princípio da especialidade), pois tanto o Código Tributário Nacional quanto a Lei 11.101/05 constituem-se em conjunto normativo de caráter geral, porque o artigo 11, § 15º, da Lei nº 6.385/76 traz hipótese excepcional de sujeição de multas por sanção administrativa a processos de recuperação e falência.
Diante disso, temos que a aplicação do artigo 11, § 15º, da Lei nº 6.385/76 tem por fundamento o princípio da especialidade, previsto no artigo 2º, § 2º, da Lindb, além de não haver incompatibilidade ou norma que regulamente em sentido contrário — § 1º do artigo 2º da Lindb.
Conclusão
A submissão da multa, a meu entender, segue a mesma lógica da responsabilidade civil, em posição consagrada pelo STJ quando do julgamento do Tema Repetitivo 1.051 [3], que definiu a data do fato gerador – momento do cometimento do ilícito – como marco para atrair o crédito ao processo de recuperação judicial.
Conclui-se que, verificada a anterioridade do fato gerador da multa aplicada pela CVM à data do pedido de recuperação judicial, deve o credor submeter-se à ordem concursal e aos efeitos da aprovação do plano de soerguimento, conforme previsão do artigo 49, caput, e 59, caput, da Lei 11.101/05.
[1] AgRg no CC n. 112.646/DF, relator Ministro Herman Benjamin, 1ª Seção, julgado em 11/5/2011, DJe de 17/5/2011.
[2] REsp n. 1.931.633/GO, relatora Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 3/8/2021, DJe de 9/8/2021.
[3] Tese firmada no julgamento do Tema Repetitivo 1.051 do STJ: “Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador”.
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