Direito de contragolpe: o que são condutas atentatórias à democracia
27 de novembro de 2024, 12h14
Os crimes contra o Estado democrático de Direito foram incluídos no Título XII do Código Penal pela Lei nº 14.197/2021 (sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro) e estão previstos entre os artigos 359-I e 359-R do Código. Com as tensões que envolveram as últimas eleições presidenciais e a transição governamental, esses delitos estiveram no centro dos debates jurídico e político do país. Em especial, os crimes de “abolição violenta do Estado Democrático de Direito” (artigo 359-L) e “golpe de Estado” (artigo 359-M), ambos previstos no Capítulo II – Dos Crimes Contra as Instituições Democráticas.
Contexto de debate
Na última semana, ficamos estarrecidos ao descobrir que estivemos mais próximos de um golpe de Estado do que supúnhamos. Com a “operação contragolpe”, deflagrada pela Polícia Federal na última terça-feira (19 de novembro), foi exposto um plano alarmante e minuciosamente orquestrado por membros das Forças Especiais do Exército e associados do ex-presidente Jair Bolsonaro, com o objetivo de subverter a posse de Luiz Inácio Lula da Silva e de seu vice, Geraldo Alckmin, prevista para janeiro de 2023. O esquema, que incluía a captura e até mesmo o assassinato do ministro do STF, Alexandre de Moraes, e dos políticos eleitos, recebeu por parte de seus artífices a designação de “Punhal Verde e Amarelo”.
As investigações revelaram que, entre novembro e dezembro de 2022, figuras influentes ligadas ao governo de Bolsonaro se reuniram secretamente para traçar ações golpistas, criando um gabinete paralelo destinado a governar o país em caso de uma ruptura democrática. Com o crescimento das evidências, o ministro Alexandre de Moraes autorizou a prisão preventiva de cinco pessoas (sendo quatro militares de elite e um policial federal) investigadas por tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, além de participação em organização criminosa, colocando em evidência o envolvimento de setores das Forças Armadas na trama golpista.
O planejamento, minuciosamente elaborado, delineava ações específicas para a eliminação de Lula, Alckmin e Moraes. O plano de assassinato teria sido articulado após uma reunião realizada no Palácio do Planalto em 6 de dezembro de 2022, nos últimos dias do mandato de Jair Bolsonaro (PL). A organização do ato teria se estendido por nove dias, incluindo a aquisição de celulares descartáveis e o monitoramento da localização de Alexandre de Moraes, conforme apontado em relatório da Polícia Federal.
Tudo foi elaborado com uma quantidade impressionante de detalhes que incluíam o uso de explosivos, envenenamentos e armamentos pesados. A operação estava agendada para ser executada em 15 de dezembro de 2022, como parte de uma estratégia mais ampla para desestabilizar a nova administração. Segundo os investigadores, a prisão do ministro do STF foi planejada para ocorrer também no dia 15. No entanto, a execução do plano foi interrompida na noite daquele mesmo dia, com militares do 1º Batalhão de Ações de Comandos do Exército, sediado em Goiânia (GO), posicionados para um ataque em Brasília, de acordo com a PF.
Dentre as informações reveladas, observa-se que o grupo não apenas escolheu estratégias de assassinato, mas também utilizou técnicas de ocultação e anonimização para dificultar o rastreamento por parte das autoridades, o que demonstra a consciência da seriedade e da ilicitude das ações que estavam sendo praticadas. As reuniões ocorridas na residência do general Braga Netto — ex-ministro da Defesa do governo Bolsonaro e candidato a vice-presidente em sua chapa — foram cruciais para definir aspectos operacionais do plano golpista, envolvendo uma rede de militares que discutiam táticas e estratégias de execução.
A liderança dos planos golpistas estava atribuída a generais como Braga Netto e Augusto Heleno, que tentaram estruturar um “Gabinete de Crise” para administrar o país após o golpe. Tal gabinete tinha como objetivo fornecer uma aparência de legalidade e respaldo às ações que, em essência, eram claramente ilegais e antidemocráticas.
Os métodos de comunicação utilizados pelo grupo incluíam um aplicativo de mensagens criptografadas e um uso astucioso de códigos para preservar o anonimato. As conversas revelaram uma estrutura organizada e uma alta disciplina requerida para evitar a detecção, evidenciando o comprometimento dos envolvidos em levar o plano a cabo.
Na última quinta-feira (21 de novembro), com o indiciamento do ex-presidente Bolsonaro, do general Braga Netto, do general Heleno (que liderou o Gabinete de Segurança Institucional) e outras 34 pessoas no âmbito do inquérito do golpe, a Polícia Federal alegou ter juntado todos os pontos do esquema que levaria à abolição do Estado Democrático de Direito no país. O plano estava tão bem orquestrado que o grupo se dividia em seis núcleos: a) Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral; b) Núcleo Responsável por Incitar Militares a Aderirem ao Golpe de Estado; c) Núcleo Jurídico; d) Núcleo Operacional de Apoio às Ações Golpistas; e) Núcleo de Inteligência Paralela; f) Núcleo de Oficiais de Alta Patente e Apoio (nomeado anteriormente como Núcleo para Cumprimento de Medidas Coercitivas).
Fases do fato punível
O senador Flávio Bolsonaro (PL), filho mais velho do ex-presidente Jair Bolsonaro, criticou a operação da Polícia Federal e argumentou que as ações atribuídas aos suspeitos não deveriam ser classificadas como crimes. O parlamentar postou no X (antigo Twitter): “Por mais que seja repugnante pensar em matar alguém, isso não é crime. E para haver uma tentativa é preciso que sua execução seja interrompida por alguma situação alheia à vontade dos agentes. O que não parece ter ocorrido”. Com isso, ele remete à conhecida distinção entre preparação, tentativa e consumação de um crime; bem como à sucinta (e pouco clara) previsão do Código Penal:
“Art. 14 – Diz-se o crime:
I – consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal;
II – tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.”
A afirmação de Flávio Bolsonaro gerou uma grande celeuma na mídia e provocou o posicionamento de inúmeros juristas sobre a punibilidade dos fatos levantados na “operação contragolpe”, já narrados acima. De fato, não se trata de questão simples, posto que tangencia um ponto ainda de muita obscuridade na dogmática penal, que é o limite entre ato preparatório (impunível) e tentativa (punível). Ponto ainda mais sensível quando estamos falando de tipos penais que tutelam bens jurídicos supraindividuais, como nos crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Para esclarecer a celeuma, é necessário debruçar-se sobre as fases e a punibilidade no chamado Iter Criminis [1]. O processo criminoso se inicia com a cogitação, fase em que o agente mentaliza o crime, definindo objetivos, meios e modo de execução. É uma espécie de plano mental, em que se decide qual conduta adotar. Tanto no crime doloso quanto no culposo, a cogitação é o ponto de partida.
Após a fase mental, o autor do delito passa para exteriorização do pensamento, iniciando os atos preparatórios, que visam criar as condições para a execução do crime. Em seguida, vem a fase executória, na qual o agente coloca em prática o plano criminoso, realizando os atos que visam diretamente à consumação do delito. Por fim, ocorre a consumação. A consumação de um crime ocorre quando todos os elementos que compõem o tipo penal se realizam no mundo exterior. Caso sejamos orientados por um funcionalismo penal aos moldes de Claus Roxin (que entende que a função do direito penal é a proteção de bens jurídicos [2]), essa realização no mundo exterior deve ser analisada à luz do bem jurídico tutelado pela norma penal. Em crimes de dano, a consumação se dá com a efetiva lesão ao bem jurídico protegido pela lei. Por exemplo, no homicídio, a consumação ocorre com a morte da vítima. Já nos crimes de perigo, basta que o bem jurídico seja colocado em risco, sem que seja necessária uma lesão concreta. Um exemplo é o crime de perigo de contágio venéreo [3].
Na cogitação, que ocorre exclusivamente na esfera psicológica do agente, não há punibilidade, pois o Direito Penal não pode intervir no âmbito do pensamento, em respeito à liberdade de consciência e ao princípio da legalidade. Assim, imaginar, desejar ou planejar um crime não constitui, por si só, um fato punível. Já os atos preparatórios envolvem ações concretas destinadas a criar condições para a execução do crime, como adquirir instrumentos, reunir informações ou coordenar meios para a prática do delito. Em regra, esses atos não são puníveis de forma isolada, pois, apesar de demonstrarem uma intenção criminosa, ainda não configuram um ataque direto ao bem jurídico. Há, contudo, exceções. Isso porque se a preparação por si só configurar crime autônomo, o indivíduo será punido pelo crime então praticado. São ações preliminares que não costumam ser punidas por si só, exceto quando constituem crimes autônomos, como o porte ilegal de uma arma de fogo (Lei 10.826/03, artigo 14) ou a falsificação de documentos.
A punibilidade da conduta criminosa surge com o início dos atos executórios, que são ações diretamente vinculadas à realização do tipo penal. Esses atos demonstram a intenção inequívoca de atingir o resultado lesivo, marcando uma transição da mera preparação para a execução do crime. Caso o resultado não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente, caracteriza-se o crime tentado, punido nos termos do artigo 14, inciso II, do Código Penal. É importante ressaltar que a tentativa pressupõe o dolo do agente em consumar o crime, ou seja, a intenção de produzir o resultado típico. Para a tentativa, é necessário o início da execução.
A tentativa de crime exige a presença de três elementos essenciais: a) o início da execução do crime por meio de atos concretos que demonstrem a intenção do agente em realizar o delito; b) a adequação desses atos para produzir o resultado típico, ou seja, a existência de um nexo causal entre a conduta do agente e o resultado pretendido; e c) a não consumação do crime por fatores externos à vontade do agente. Dessa forma, a tentativa se caracteriza pela frustração do resultado criminoso, apesar da intenção do agente em realizá-lo [4]. Por isso, a tentativa é considerada um crime incompleto, pois a intenção do indivíduo está presente (elemento subjetivo), mas a ação não se completa (elemento objetivo).
A justificativa para a punição da tentativa é objeto de uma gama de teorias. A teoria objetiva enfatiza o perigo criado ao bem jurídico. A punição da tentativa se justifica pelo perigo que ela representa ao bem jurídico, de modo que se ao bem jurídico não ocorreu nenhum risco, a tentativa não é punível. Já a teoria subjetiva valoriza a vontade criminosa do agente. A tentativa é punida porque revela a vontade criminosa do agente, independentemente do resultado. A teoria objetivo-subjetiva, por sua vez, busca conciliar ambos os elementos, fundamentando a punibilidade da tentativa ora na “realização da vontade antijurídica produtora de perigo para o bem jurídico” (teoria do autor), ora na realização da vontade jurídica “produtora de abalo da confiança comunitária no Direito” (teoria da impressão) [5].
O Código Penal brasileiro, ao adotar uma posição mais próxima da teoria objetiva, exige que a conduta do agente crie um risco concreto ao bem jurídico para que a tentativa seja punível. Para Zaffaroni e Pierangeli:
“A circunstância de se considerar a tentativa como crime incompleto, não impede que nela exista uma ofensa ao bem jurídico. Neste sentido, a teoria mais aceitável no direito nacional é a objetiva, mas o fundamento não é puramente objetivo: a conduta antijurídica dolosa possui dois aspectos (objetivo e subjetivo), e, embora o aspecto subjetivo se apresente completo na tentativa, o aspecto objetivo, incompleto, importa numa ofensa menor ao bem jurídico, e, ao bem jurídico, a tentativa é um perigo, ou seja, um grau menor de ofensa. Nos crimes de perigo, a tentativa não é um ‘perigo de perigo’, mas um perigo mais distante, e, portanto, de conteúdo menor do injusto.” [6]
Continua na parte 2
[1] Expressão em latim que significa “caminho do crime”.
[2] ROXIN, Claus. A Proteção dos bens jurídicos como função do Direito Penal. Livraria do Advogado Editora. Porto Alegre, 2009.
ROXIN, Claus. Novos estudos de direito penal. São Paulo: Marcial Pons, 2014.
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022.
[3] É importante destacar que nem todos os crimes exigem um resultado naturalístico específico para a consumação. Há crimes que se consumam com a simples realização da conduta proibida, independentemente de qualquer resultado. A análise da consumação de um crime depende, portanto, da interpretação do tipo penal e da natureza do bem jurídico tutelado
[4] BEM, Leonardo Schmitt de; MARTINELLI, João Paulo Orsini. Direito Penal Parte Geral: Lições fundamentais. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2024.
[5] SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 389.
[6] ZAFFARONI, Eugenio; PIERANGELI, José. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 603.
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