Opinião

Fiador sub-rogado e os posicionamentos do STJ sobre a submissão aos efeitos da recuperação

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12 de novembro de 2024, 13h24

A questão da submissão dos créditos do fiador sub-rogado aos efeitos da recuperação judicial tem gerado discussões no âmbito jurídico, especialmente diante dos diferentes posicionamentos do Superior Tribunal de Justiça nos últimos anos. Este artigo busca analisar a definição de créditos concursais e os entendimentos do STJ sobre o tema, enfatizando a segurança jurídica envolvida nas decisões.

De acordo com o artigo 49, caput, da Lei 11.101/05 (LREF), não se submetem aos efeitos do processo de recuperação judicial aqueles credores cujas obrigações foram constituídas após a data do pedido. Sobre o assunto, segundo Marlon Tomazette:

“A princípio, sujeitam-se à recuperação judicial todos os créditos existentes à data do pedido, ainda que não vencidos (Lei n. 11.101/2005 – art. 49). A aferição da existência ou não do crédito na data do pedido levará em conta o fato gerador do crédito, isto é, a data da fonte da obrigação. Assim, serão levadas em conta as datas de emissão de títulos de crédito, de conclusão dos contratos e da prestação de serviços pelos empregados. Os créditos posteriores ao pedido também têm sua importância, mas os titulares desses créditos não são sujeitos à recuperação judicial.” (Curso de direito empresarial: falência e recuperação de empresas – volume 3. 7ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, pág. 100)

Contrato de fiança tem natureza acessória, e crédito é extraconcursal, diz 3ª Turma do STJ

Isso posto, o assunto da inclusão do crédito do fiador na recuperação judicial foi abordado pela 3ª Turma do STJ, no julgamento do REsp nº 1.860.368/SP, em 5 de maio de 2020, de relatoria da ministra Nancy Andrighi. Na ocasião, concluiu-se pela não submissão do crédito aos efeitos da recuperação judicial de crédito decorrente de contrato de fiança firmado anteriormente ao pedido de recuperação judicial, mas que a inadimplência do devedor-afiançado e o consequente pagamento pelo credor-fiduciante somente ocorreu após o pedido de recuperação judicial. Nesse sentido, destacou que:

“O crédito passível de ser perseguido pelo fiador em face do afiançado – hipótese em exame -, somente se constitui a partir do adimplemento da obrigação principal pelo garante. Antes disso, não existe dever jurídico de caráter patrimonial em favor deste.”

Como se colhe do inteiro teor do julgamento, à época, os membros da 3ª Turma do STJ compreenderam que o contrato de fiança tem natureza acessória, em que o sujeito passivo à relação jurídica (fiador) assume a “responsabilidade” pelo adimplemento de uma prestação a que se obrigou o devedor original.

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Porém, essa “responsabilidade” é um estado inicial de pendência, em que não há constrição patrimonial, nem existe certeza de que haverá no futuro, significando que a pretensão do credor em relação ao fiador apenas passa a existir se e quando ficar configurada a inadimplência do devedor-afiançado.

Com isso, a ministra relatora pontuou que “o negócio jurídico (fiança) existe desde a celebração do contrato respectivo. […] Já o crédito, por seu turno, passível de ser perseguido pelo fiador em face do afiançado – hipótese em exame –, somente se constitui […] a partir do adimplemento da obrigação principal pelo garante”, razão pela qual entendeu que o crédito referente ao adimplemento da obrigação pelo garante somente surgiu após o pedido de recuperação judicial, o que denotaria sua extraconcursalidade.

Mudança de entendimento

No entanto, em 13 de agosto de 2024, no julgamento do Recurso Especial nº 2.123.959/GO, de relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a 3ª Turma do STJ apresentou um entendimento distinto. O ministro relator enfatizou que os efeitos do contrato de fiança se realizam quando o fiador assume a condição de credor, de forma que o crédito do fiador se configura como concomitante às obrigações do contrato principal, ainda que sua exigibilidade dependa do inadimplemento do devedor.

Segundo o voto vencedor, do ministro relator, nos termos da pacífica jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a data de existência do crédito para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial é a data de seu fato gerador, isto é, a data em que foi realizada a atividade negocial e não a data em que os valores se tornaram exigíveis. Para o relator, o pagamento feito pelo fiador e a subsequente exigência do valor por ele adimplido estão relacionadas com a execução do contrato de fiança e não com sua existência, o que é irrelevante para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial.

Ademais, essa divergência jurisprudencial fora justificada em razão da análise do tema sob a perspectiva de conceitos como da sub-rogação legal, que, conforme o artigo 346, III, do Código Civil, permite que um terceiro interessado pague a dívida, transferindo a este todos os direitos do credor originário. Dessa forma, se o credor originário tinha um crédito submetido aos efeitos da recuperação judicial, isso se transfere ao sub-rogado, preservando as características do direito de crédito.

Nesse sentido, cita-se a doutrina ressaltava no voto vencedor, de Marcelo Sacramone e Fernanda Neves Piva:

“(…) Em razão da sub-rogação, é irrelevante que o pagamento pelo terceiro tenha ocorrido após o pedido de recuperação judicial, já que, independentemente do momento do adimplemento, ele apenas substitui o credor originário num crédito que era caracterizado por estar sujeito à recuperação judicial.” (O Pagamento dos Débitos da Recuperanda: A Sub-Rogação e o Direito de Regresso na Recuperação Judicial in: Processo Societário III. Coord. Flávio Luiz Yarshell e Guilherme Setoguti J. Pereira. São Paulo: Quartier Latin, 2018, págs. 495 e 496).

Em acréscimo, é interessante mencionar que, embora a análise do tema da submissão do crédito do fiador sub-rogado aos efeitos da recuperação judicial sob o prisma da sub-rogação legal tenha se dado em agosto de 2024, em 20/11/2023, a 4ª Turma do STJ, no julgamento do AgInt nos EDcl no REsp 2.010.612/RJ, ponderou que, na hipótese de sub-rogação legal de seguradora sub-rogada, cujo contrato antecedeu o deferimento da recuperação judicial, o crédito deve ser tido como concursal.

Spacca

Segundo trecho do inteiro teor, embora a sub-rogação somente aconteça com pagamento pela seguradora, momento a partir do qual é exercitável sua pretensão, não é admissível “a interpretação de que o crédito originário seria concursal e o sub-rogado extraconcursal, em razão da impossibilidade de transmitir à seguradora mais direitos do que aqueles que o segurado detinha quando da ocorrência do fato gerador de inadimplemento do contrato de empreendimento imobiliário”.

Nessa mesma linha, conforme destacado no AgInt no REsp nº 1.865.798/SP, relator ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, DJe de 15/12/2020, a sub-rogação legal, nos termos do artigo 786 do CC, implica a transferência à seguradora de todos os direitos do credor originário, “nos limites desses direitos, ou seja, não se transfere à seguradora mais direitos do que aqueles que o segurado detinha no momento do pagamento da indenização”.

Retornando ao caso do Recurso Especial nº 2.123.959/GO, expõe-se também que sua votação não foi unânime, visto que a ministra Nancy Andrighi apresentou o voto vencido, argumentando que a mudança de entendimento contraria o que foi estabelecido em julgados anteriores, incluindo o REsp nº 1.860.368/SP. Segundo a ministra, “essa modificação de entendimento, sobretudo sob as lentes dos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia, deve ser levada a efeito com especial cautela”, mormente porque o posicionamento da 3ª Turma, até mesmo em julgados recentes, já havia se firmado na linha do entendimento anterior, do REsp nº 1.860.368/SP, como se expõe:

“[…] 9. Ademais, o crédito decorrente da garantia prestada somente tem lugar caso os embargos à execução não sejam providos. Segundo precedentes da Terceira Turma, “o crédito passível de ser perseguido pelo fiador em face do afiançado – hipótese em exame -, somente se constitui a partir do adimplemento da obrigação principal pelo garante. Antes disso, não existe dever jurídico de caráter patrimonial em favor deste” (REsp 1.860.368/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 5/5/2020, DJe 11/5/2020; AgInt nos EDcl no AgInt no AREsp n. 1.287.497/RJ, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, julgado em 1/3/2021, DJe de 3/3/2021).

Agravo interno não provido. (AgInt no REsp nº 2.078.245/RJ, relator ministro Humberto Martins, 3ª Turma, julgado em 8/4/2024, DJe de 12/4/2024.) (grifei)

 Em suma, a análise dos posicionamentos do STJ sobre a submissão dos créditos do fiador sub-rogado aos efeitos da recuperação judicial evidencia uma dinâmica de interpretações divergentes. Enquanto o entendimento de 2020 enfatiza que o crédito só se constitui após o adimplemento da obrigação principal, a decisão mais recente sugere uma abordagem mais ampla, considerando o contexto da sub-rogação. Esse debate reflete a necessidade de um equilíbrio entre a segurança jurídica e a adaptação às novas realidades econômicas, o que deve ser cuidadosamente avaliado para garantir a previsibilidade nas relações jurídicas.

Autores

  • é advogada, sócia do Gonçalves Santos Sociedade de Advogados, especialista em Direito Empresarial, mestra em Direito Constitucional, com ênfase na linha de pesquisa de Direito Privado, pela Unifor.

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