Opinião

Disclosure jurídico das normas de reporte financeiro-sustentáveis

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  • é advogado contabilista professor da FGV LAW e da BSSP mestre em Ciências Contábeis pela Fecap MBA em Gestão Tributária pela FIPECAFI e especialista em Direito Tributário pelo IBDT.

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11 de novembro de 2024, 15h15

Em continuidade ao movimento pioneiro da Comissão de Valores Mobiliários, foram aprovadas, em 29 de outubro de 2024, as Resoluções CVM 217 e 2018 aprovaram, respectivamente, a CBPS nº 01 e a CBPS nº 02.

Divulgação

Contextualizando que o Brasil despontou no cenário de mercado de capitais mundial e se tornou vanguardista em relação à divulgação de relatórios de sustentabilidade, porque a CVM expediu a Resolução nº 193, de 20 de outubro de 2023, determinando a voluntariedade da divulgação das diretrizes contábeis-sustentáveis dispostas pela International Sustainability Standards Board (ISSB) após 1º de janeiro de 2024 e a obrigatoriedade de divulgação a partir de 1º de janeiro de 2026.

A ISSB é um órgão vinculado ao IFRS (International Financial Reporting Standards), o órgão internacional responsável pela expedição de normas contábeis, o qual foi criado para atender as expectativas do mercado em torno de questões sustentáveis e devido também às solicitações do G20, com o objetivo de criar normas que conferissem uma linguagem comum em torno das divulgações das empresas sobre sustentabilidade para embasar as decisões de investimento.

Foram criadas duas normas contábeis inaugurais: a IFRS S1, que estabelece os efeitos dos riscos e oportunidades referentes à sustentabilidade em curto, médio e longo prazo, bem como a IFRS S2, cuja normativa é direcionada às questões climáticas em conformidade com as recomendações da força-tarefa sobre divulgações financeiras relacionadas ao clima (TCFD Task Force on Climate-Related Financial Disclosures).

O que a CVM propôs encontra-se alinhado com o lançamento do Plano de Ação de Finanças Sustentáveis, ao biênio 2023-2024, no qual há a intenção de gerenciar o mercado de ações brasileiro em direção à pauta da sustentabilidade e atribuir responsabilidade em relação às mudanças climáticas, com fundamentação na Portaria CVM/PTE nº 10, de 23 de janeiro de 2023, cuja diretriz é aprovar a Política de Finanças Sustentáveis da CVM para fomentar as finanças sustentáveis no âmbito de mercado de capitais fortalecer a transparência de informações ASG ambiental, social e governança, direcionar ações que coíba o greewashing e incentivar e promover a educação financeira e inovação de ferramentas para entendimento e disseminação das finanças sustentáveis.

Ademais, ressalta-se que a Resolução CFC nº 1.670, de 9 de junho de 2022, criou o Comitê Brasileiro de Pronunciamentos de Sustentabilidade (CBPS) com a finalidade de estudar, preparar e emitir “documentos técnicos sobre padrões de divulgação sobre sustentabilidade e a divulgação de informações dessa natureza”, além de “permitir a emissão de normas pelas entidades reguladoras brasileiras, levando sempre em conta a adoção dos padrões internacionais editados pelo International Sustainability Standard Board (ISSB)”. Assim, o CBPS auxiliará a CVM a compreender e implementar as regras contábeis internacionais sustentáveis que forem sendo emitidas pelo ISSB no decorrer dos anos.

Spacca

As Resoluções CVM 217 e 2018 incorporaram ao ordenamento jurídico, com a sua tradução ao português, as IFRS S1 e S2, seguindo a Resolução CVM nº 193/2023, correspondendo, respectivamente, ao pronunciamento técnico da CBPS nº 01 e ao pronunciamento CBPS nº 02.

Verifica-se que o arcabouço legal que fundamenta a elaboração e divulgação de informações financeiras-sustentáveis está relacionado a atos normativos emitidos por órgãos reguladores. No entanto, uma dúvida inicial persistiria se a CBPS nº 01 e nº 02 teria respaldo na Lei nº 6.404/1976 (a Lei das S.A.), principalmente pela normatização das demonstrações financeiras existente na Seção II do Capítulo XY da mencionada lei, ou seja, sem o caráter sustentável das informações divulgadas.

Demonstrações financeiras da Lei das S.A.

Uma primeira discussão que poderia haver se encontra no rol de demonstrações financeiras do artigo 176 da Lei das S.A. [1], se haveria a necessidade de lei ordinária dispor especificamente sobre uma “demonstração financeira-sustentável”, tal como ocorreu com a incorporação da demonstração de fluxo de caixa (DFC) e a demonstração de valor adicionado (DVA), incluídas pela Lei nº 11.638/2007, a qual trouxe vigência às IFRS.

A resolução a esta dúvida localiza-se no § 4º do artigo 176 [2] da Lei das S.A., que trata a respeito de que as demonstrações financeiras serão complementadas por “demonstrações contábeis necessários para esclarecimento da situação patrimonial e dos resultados do exercício”.

Aqui, por uma interpretação do artigo 11, inciso III, alínea ‘c’, da Lei Complementar nº 95/1998 [3], dispondo sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, revela que o legislador ordinário quis expressar que outras demonstrações podem complementar com clareza a situação do patrimônio e as mutações ocorridas no exercício além daquelas disposta nos incisos do artigo 176.

E a complementação não indica um grau de acessoriedade à CBPS nº 01 e 02; pelo contrário, complementar é acrescer ou adicionar um elemento a algo que falta. Portanto, elas estão alçadas a um grau de destaque e individualidade, ainda que elas não estejam no rol do artigo 176 da Lei das S.A..

E o qualificador “necessário” existente no § 4º do artigo 176 se encontra ambientado na discussão atual que se encontra na égide da sustentabilidade, quando os critérios ESG influenciam a tomada de decisão dos investidores, cujos debates estão em mídias sociais, congressos e órgãos legislativos. A necessidade da CBPS nº 01 e nº 02 é o resultado da conjuntura socioambiental que o mundo corporativo está inserido em meados da década atual do século 21.

Além disso, o caput do artigo 177 da Lei das S.A. [4] traz o comando de que a escrituração será mantida em obediência aos preceitos da legislação comercial, da lei e “aos princípios da contabilidade geralmente aceitos”.

Por se mostrar um conceito jurídico indeterminado, o direito está normatizando que, em suma, as escriturações sigam fielmente o que a contabilidade predispõe, tendo esta, por sua vez, um olhar de como a economia está sendo gerida e adotada. Nesta conjuntura de vínculos, ao fim, quer se dizer que o artigo 177, quando retrata princípios contabilmente geralmente aceitos, legitima que as demonstrações financeiras possuam o condão financeiro-sustentável.

Normas expedidas pela CVM

Num segundo motivo, o próprio § 3º do artigo 176 [5] determina que as companhias abertas observarão ainda as normas expedidas pela CVM. Assim, as Resoluções nº 278 e 279 estão amparadas na Lei das S.A., que direciona à comissão a regulamentação das normas contábeis, contendo aquelas de caráter sustentável.

Nesse contexto, a inclusão do § 5º ao artigo 177 da Lei das S.A. [6] pela Lei nº 11.941/2009 fazendo remissão ao § 3º [7] no sentido de que as demonstrações financeiras deverão ser elaboradas em consonância com os padrões de contabilidade adotados nos principais mercados de valores mobiliários.

O fato de o IFRS ter criado um órgão internacional que respaldará todo e qualquer tipo de norma contábil-sustentável, que é o ISSB, já é o maior indicativo de que, certamente, se trata de uma questão de tempo de os grandes mercados começarem a adotar os enunciados IFRS S1 e S2. Países como México, Suíça, Coréia do Sul, Japão, China, Canadá, Singapura, Austrália, Grã-Bretanha e o bloco europeu estão em direção ao uso da ISSB [8].

Num outro prisma que vai além da prescrição sobre as demonstrações financeiras, há um dever de diligência inerente às funções do administrador que deve atuar em cuidado e diligência, assim como todo homem ativo e probo, no emprego da administração dos negócios, conforme dita o artigo 153 da Lei das S.A. [9].

Novamente, por mais que trate de conceitos jurídicos indeterminados quanto à qualificação de ativo e probo, é na probidade que a sustentabilidade guarda o âmago da divulgação sustentável. Isso porque a divulgação sustentável tem sua raiz na responsabilidade social corporativa, a qual é a atuação empresarial/negocial que objetiva o lucro em si e o cumprimento da norma jurídica, porém tenta alcançar o mundo ético (indo além do Direito em si), no qual a concepção moral governa as companhias por ser ela um conjunto de indivíduos e estando inserido em uma comunidade moral.

Essa comunidade moral, justamente com a criação da ISSB, indica uma revolução contábil ao querer que as informações sustentáveis sejam divulgadas aos acionistas, investidores, credores e demais stakeholders.

Pelo próprio dever de divulgar, incutido caput do artigo 157 da Lei nº 6.404/1976 [10], que a Resolução CVM nº 193/2023 compreende que a adoção voluntária da CBPS nº 01 e nº 02 pelas companhias de capital aberto devam divulgar como fato relevante a sua opção, nos termos do § 4º do artigo 157 [11], quando qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembleia geral ou dos órgãos de administração da companhia aberta, possa influir de modo ponderável na tomada de decisão, segundo o caput do artigo 2º da Resolução CVM nº 44/2021 [12].

O Brasil inaugura com vanguarda a aplicação e incorporação das normas internacionais financeiro-sustentáveis emitidas pelo ISSB e regulamentada nesses trópicos pelo CBPS, em total compatibilidade com a Lei das S.A., conforme visto. Com ansiedade, aguarda-se o que virá nas próximas demonstrações financeiras, quando a jornada sustentável das companhias abertas brasileiras de atender as necessidades atuais sem comprometer as gerações futuras ainda estará apenas começando para a descoberta de riscos e oportunidades no horizonte a curto, médio e longo prazo.

 


[1] Art. 176. Ao fim de cada exercício social, a diretoria fará elaborar, com base na escrituração mercantil da companhia, as seguintes demonstrações financeiras, que deverão exprimir com clareza a situação do patrimônio da companhia e as mutações ocorridas no exercício:

I – balanço patrimonial;

II – demonstração dos lucros ou prejuízos acumulados;

III – demonstração do resultado do exercício; e

IV – demonstração das origens e aplicações de recursos.

IV – demonstração dos fluxos de caixa; e (Redação dada pela Lei nº 11.638,de 2007)

V – se companhia aberta, demonstração do valor adicionado. (Incluído pela Lei nº 11.638,de 2007)

[2] Art. 176

(…)

§ 4º As demonstrações serão complementadas por notas explicativas e outros quadros analíticos ou demonstrações contábeis necessários para esclarecimento da situação patrimonial e dos resultados do exercício.

[3] Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:

III – para a obtenção de ordem lógica:

(…)

c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida; (…)

[4] Art. 177. A escrituração da companhia será mantida em registros permanentes, com obediência aos preceitos da legislação comercial e desta Lei e aos princípios de contabilidade geralmente aceitos, devendo observar métodos ou critérios contábeis uniformes no tempo e registrar as mutações patrimoniais segundo o regime de competência.

[5] Art. 176

(…)

§ 3º As demonstrações financeiras registrarão a destinação dos lucros segundo a proposta dos órgãos da administração, no pressuposto de sua aprovação pela assembléia-geral.

[6] Art. 177

(…) § 5o  As normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários a que se refere o § 3o deste artigo deverão ser elaboradas em consonância com os padrões internacionais de contabilidade adotados nos principais mercados de valores mobiliários.

[7] Art. 177

§ 3o As demonstrações financeiras das companhias abertas observarão, ainda, as normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários e serão obrigatoriamente submetidas a auditoria por auditores independentes nela registrados.                    (Redação dada pela Lei nº 11.941, de 2009)

[8] Acesso em: https://www.ifrs.org/ifrs-sustainability-disclosure-standards-around-the-world/jurisdiction-consultations-on-sustainability-related-disclosures/

[9] Art. 153. O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.

[10] Art. 157. O administrador de companhia aberta deve declarar, ao firmar o termo de posse, o número de ações, bônus de subscrição, opções de compra de ações e debêntures conversíveis em ações, de emissão da companhia e de sociedades controladas ou do mesmo grupo, de que seja titular.

[11] Art. 157. (…)

§ 4º Os administradores da companhia aberta são obrigados a comunicar imediatamente à bolsa de valores e a divulgar pela imprensa qualquer deliberação da assembléia-geral ou dos órgãos de administração da companhia, ou fato relevante ocorrido nos seus negócios, que possa influir, de modo ponderável, na decisão dos investidores do mercado de vender ou comprar valores mobiliários emitidos pela companhia.

[12] Art. 2º Considera-se relevante, para os efeitos desta Resolução, qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembleia geral ou dos órgãos de administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político-administrativo, técnico, negocial ou econômico-financeiro ocorrido ou relacionado aos seus negócios que possa influir de modo ponderável: (…)

Autores

  • é advogado, contabilista, professor da FGV LAW e da BSSP, mestre em Ciências Contábeis pela Fecap, MBA em Gestão Tributária pela FIPECAFI e especialista em Direito Tributário pelo IBDT.

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