Reestruturar a responsabilidade civil no projeto de reforma do Código Civil
10 de novembro de 2024, 6h00
*conferência inaugural do “1º Colóquio Luso-Brasileiro de Direito Civil | A Reforma do Código Civil brasileiro a suas Implicações no Direito das Obrigações”. Clique aqui para mais informações
Projeto de reforma do Código Civil
O projeto de reforma do Código Civil brasileiro, apresentado em 2023, cobre, precisamente, todo o Código Civil. Na mensagem oficial conservada na Net, dos 2.600 artigos do diploma, foi mexida mais de metade.
Limitando a análise às áreas da parte geral, das obrigações, da responsabilidade civil e do enriquecimento, dos contratos e dos reais, temos:
(1) parte geral: 232 artigos, com 59 alterações (25%);
(2) obrigações: 187 artigos, com 45 alterações (24%);
(3) responsabilidade civil e enriquecimento: 53 artigos com 54 alterações (mais de 100%);
(4) contratos: 544 artigos, com 114 alterações (21%);
(5) reais: 313 artigos, com 119 alterações (38%).
Descontando as empresas, a família, as sucessões e o digital, temos 391 alterações: uma cifra que ultrapassa as reformas alemã, de 2001/2002 e a francesa, de 2016.
A reforma é imensa. Cabe, agora, às instâncias constitucionais decidir da sua aprovação.
Tipo de alterações
Numa análise preliminar dos novos textos encontramos quatro tipos de alterações:
(1) retoques linguísticos;
(2) acertos pontuais;
(3) novidades de regulação;
(4) reestruturação completa.
Os retoques linguísticos foram muito numerosos. Em si, eles pareceriam inócuos, pelo prisma da Ciência do Direito. Mas podem ter implicações na interpretação dos preceitos visados, com repercussões em cadeia. Já houve casos em que a mera alteração de uma vírgula pode alterar o sentido de uma norma.
Os acertos pontuais podem ter o sentido de alterar querelas de jurisprudência ou de doutrina. Devem ser evitados: a lei comanda, mas não teoriza. Aproveitar reformas para fazer doutrina é inadequado. Apenas em questões sérias, nas quais se imponha fixar soluções legais, se devem encarar acertos pontuais. Impõe‑se, ainda, uma atenção reforçada: dada a natureza sistemática do Direito, um acerto pontual pode ter efeitos em bola de neve, operando o efeito borboleta.
As novidades na regulação podem visar problemas novos ou podem pretender alterar o regime vigente. Em regra e no Direito civil, tais novidades são antecedidas por estudos monográficos sérios, onde se pondere a origem, a evolução histórica, o Direito comparado e as incidências sociais e econômicas.
De novo e tratando‑se de um Código Civil, todas as cautelas são poucas. Como exemplo, a reforma alemã de 2001/2002 foi preparada ao longo de décadas, tendo sido intensificada durante os 20 anos que antecederam as modificações. A reforma francesa foi ponderada durante mais de um século.
Mas reestruturações completas, no Direito civil, só é pensável numa de duas circunstancias: (1) ou Direito vigente, por qualquer acidente de percurso, está de tal modo inadequado que tinha de ser refeito; foi, um tanto, o ocorrido com a responsabilidade civil portuguesa, na passagem do Código de 1867 para o de 1966; (2) ou ocorreu uma efetiva convulsão sócio‑econômica que exigiu novas soluções; também um tanto, isso sucedeu com a tutela do consumidor.
Responsabilidade civil
A subcomissão de responsabilidade civil e enriquecimento sem causa, de que foi subrelator o ilustre professor Nelson Rosenvald. Na justificação de motivos, a subcomissão explica que:
(…) a responsabilidade civil requer uma intervenção mais ampla, como condição necessária para que o Código Civil mantenha relevância jurídica no nosso ordenamento.
Posto isto, apresenta três justificativos:
(1) as normas sobre responsabilidade civil dirigem‑se, principalmente, aos magistrados; pode, assim, assumir uma linguagem mais técnica;
(2) diversas leis avulsas devem ser levadas para o Código Civil, dada a natureza deste diploma;
(3) há um desfasamento entre o texto atual e a jurisprudência; ora, num País de Civil Law, há que providenciar “normas in abstrato”.
Sempre segundo o relatório justificativo, a reforma da responsabilidade civil obedecerá a quatro eixos:
(1) organização dos nexos de imputação: ilícito, risco de atividade e responsabilidade pelo facto de terceiro ou da coisa;
(2) contenção normativa de proliferação de várias etiquetas de lesões a interesses merecedores de tutela;
(3) primazia da função reparatória da responsabilidade civil e do princípio da reparação integral, mas atendendo à gestão de riscos e à instauração de um equilíbrio injustamente rompido;
(4) atualização da parte especial da responsabilidade civil, com elementos atinentes, por exemplo, à responsabilidade civil do Estado; por outro lado, suprimem‑se aspetos considerados anacrônicos.
O projeto preconiza, nos pontos mais marcantes:
(1) uma “parte geral” de responsabilidade civil (disposições gerais, com novos preceitos: artigos 926.ºA a 926.ºF;
(2) desenvolvimento da obrigação de indemnizar, com regras:
(a) o nexo causal, assente na previsibilidade do dano, incluído na responsabilidade contratual (927.ºA, § único);
(b) sobre a ilicitude, apresentada em termos puramente objetivos (927.ºB, caput)
(c) sobre a culpa, reconduzida à violação do “padrão exigível”, intencionalmente ou por negligência, imprudência ou imperícia (927.º, § único);
(d) obrigação de reparar, independentemente de culpa, com uma cláusula geral (927.ºC, caput), admitindo classificações de risco (927.º, § 2.º);
(e) referência ao caso fortuito ou de força maior, como fator de interrupção do nexo causal (927.º, § 4.º).
Seguem‑se, ainda, dezenas de alterações quanto à indemnização, ao seu cômputo e a múltiplas situações de responsabilidade “especial”, além de aspetos conexos. A análise histórica e comparatística deste manancial — estão em jogo mais de 100 modificações, das quais, algumas, são profundas —, obrigaria a um tratado de responsabilidade civil: tarefa incomportável e que, de resto, ninguém esperaria. Vamos, pois, cingir a nossa intervenção ao tema dos pressupostos da responsabilidade civil.
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