Opinião

Linhas de transmissão: possibilidade de cumulação entre juros compensatórios e lucros cessantes

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10 de novembro de 2024, 15h40

A servidão administrativa representa uma espécie de intervenção pública nos limites da propriedade privada, definindo a coisa particular como de interesse público.

Diferentemente da desapropriação, na servidão não há a retirada da propriedade do seu titular, restringindo-se a destinação do bem a uso público durante período, determinado ou não.

A semelhança entre os dois institutos fica por conta do dever de indenizar o proprietário. Na desapropriação, pela perda da propriedade. Na servidão, pela perda da posse direta, devendo o poder público ou a concessionária realizar o pagamento do valor definido via perícia avaliatória, já no momento da imissão provisória da posse (v., por exemplo, a Súmula nº 30 do Tribunal de Justiça de São Paulo).

Pois bem, os ora articulistas já tiveram duas oportunidades de narrar sobre a temática “linhas de transmissão e seus efeitos na Alta Mogiana” em precedentes artigos veiculados no prestigioso sítio eletrônico do ConJur [1] e, agora, contam com o reforço intelectual do ilustre professor Adriano Caldeira (Mackenzie/São Paulo), no que concerne a uma reflexão ponderada sobre uma quaestio iuris relevante nessas hipóteses, qual seja: possibilidade de cumulação entre juros compensatórios e lucros cessantes.

Cumulação entre juros compensatórios e lucros cessantes em caso de plantio de cana

Isto é, há considerações relevantes quanto à forma de definição do valor que corresponda ao princípio da “justa indenização”, devendo ser consideradas as peculiaridades do caso concreto, como, por exemplo, a possibilidade ou não da cumulação entre juros compensatórios e lucros cessantes.

Pois bem, no caso específico da servidão de passagem, instituída em propriedades rurais, comumente, aplicada nos casos de passagem de linhas de transmissão de energia elétrica, mostra-se indispensável ser levada em consideração do tipo de cultivo praticado na propriedade, bem como as especificidades na área, para, só então, definir os limites e a forma de indenização.

Isso porque, no caso da cultura agrícola de cana-de-açúcar, por exemplo, mostra-se inafastável a cumulação entre juros compensatórios e lucros cessantes por dois motivos: seus ciclos anuais de produtividade e a proibição da continuidade de seu cultivo nas faixas de servidão, ou seja, sob as linhas de transmissão de energia elétrica. Logo, caberá apenas a avaliação junto ao caso concreto sobre a proporcionalidade de incidência dos lucros cessantes, considerando o tempo de vida útil da lavoura específica, a qual, no caso de cana-de-açúcar sabidamente possui longos ciclos, conforme minudenciado mais adiante.

Nesse sentido, à luz do mencionado princípio da justa indenização, afigura-se minimamente razoável que o proprietário rural seja devidamente compensado pela perda provisória da posse direta até o efetivo recebimento do quantum indenizatório, via “juros compensatórios”, assim como receba o valor correspondente à cultura agrícola suprimida com a instituição da servidão administrativa, via “lucro cessante”, principalmente, porque deixará de receber quantia expressiva proveniente das colheitas futuras, as quais servem, inclusive, pagar os elevados custos e investimentos realizados quando do plantio e da manutenção do canavial.

No caso de cultivos diversos ao da cana-de-açúcar, os lucros cessantes também deverão ser calculados, uma vez que durante todo o período de implantação as torres e linhas de transmissão, os quais são incertos e indeterminados, nenhuma atividade agrícola poderá ser realizada na área de servidão, fato este que também comprova a perda da renda.

A jurisprudência, no entanto, tem oscilado, de modo a afirmar em parte dos casos, não ser possível tal cumulação, sob pena de suposta ocorrência do bis in idem, ou seja, o recebimento em duplicidade pelo proprietário sobre o mesmo fato gerador.

No entanto, o que se nota, é uma reprodução de tese construída sobre determinada situação concreta, porém aplicada a casos fáticos com caraterísticas absolutamente distintas, havendo uma inevitável necessidade de utilizarmos da conhecida técnica interpretativa denominada distinguishing.

Ora, quanto ao fato gerador dos juros compensatórios, sabe-se que na servidão administrativa terá incidência a partir do momento em que poder público assume a posse do bem, calculado via perícia, com base na erradicação da cultura existente. Portanto, os juros compensatórios estão atrelados à perda da posse do bem pelo proprietário.

Por outro lado, o fato gerador dos lucros cessantes tem outra origem, incidindo sobre as perdas futuras decorrentes da indisponibilidade da área para a continuidade do cultivo.

O que diz a jurisprudência

No cultivo da cana de açúcar, por exemplo, a propriedade poderá permitir de nove até 12 cortes anuais, sendo este um relevante fator a ser considerado na definição dos lucros cessantes a ser pago ao proprietário. Em exato senso, restou decidido no julgamento da apelação nº 1005305.14.2018.8.26.0358, pela 7ª Câmara de Direito Público do TJ-SP, de relatoria do desembargador Coimbra Schimidt.

Spacca

Igualmente, o colendo Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.145.488, sob a relatoria do ministro Mauro Campbell Marques, registrando que enquanto os juros compensatórios remuneram o capital que o expropriado deixou de receber desde a perda da posse, os lucros cessantes refere-se ao que deixará de aferir com a utilização do bem expropriado e que são devidos ao expropriados já a partir da tomada da posse pelo poder público, deixando expressamente claro que juros compensatórios e lucro cessante não se confundem, menos ainda produzem o indesejado bis in idem.

Ademais, mais recentemente, o e. Tribunal de Justiça de Minas Gerais realizou o enfrentamento da matéria debatida, cujo caso concreto trata-se de Servidão Administrativa instituída sobre áreas rurais formada por pastagens.

Pois bem, no acórdão prolatado no dia 26/3/2024, a corte mineira, em sede de julgamento de Apelação, nos autos do processo 0003264-55.2010.8.13.0610, a 6ª Câmara Cível, sob a relatoria do desembargador doutor Júlio Cezar Guttierrez, apresentou o entendimento de que:

“…. Quanto ao cálculo do lucro cessante, ainda nos termos do laudo pericial, ocorreu considerando duas áreas: a de servidão propriamente dita, medindo 8.300,77m², onde foi impedido o acesso do gado da propriedade por dois anos, tempo da obra, e por mais dois anos, tempo para plena recuperação da pastagem, e uma segunda área, que ficou “encravada” após o início das obras, em virtude do seccionamento do terreno. Foi explicitada a fórmula de cálculo, e se chegou ao valor de R$ 5.679,74 pela indenização a título de lucros cessantes.

(…)

Quanto à possibilidade de cumulação dos lucros cessantes com os juros compensatórios, registre-se que não se desconhece o entendimento firmado pelo STJ e trazido pelo apelante, no sentido de que não se admite a cumulação de lucros cessantes e juros compensatórios, uma vez que indenizariam o expropriado pelo mesmo fato gerador.

Todavia, coaduno do entendimento de que os lucros cessantes não se confundem com os juros compensatórios, porquanto os lucros cessantes cingem-se à indenização do proprietário pelo ganho que este deixou de auferir com a imissão provisória na posse, enquanto os juros compensatórios incidem sobre a diferença apurada entre a importância correspondente aos 80% (oitenta por cento) do valor ofertado em Juízo pelo desapropriante e a quantia homologada pelo d. Juízo, haja vista a indisponibilidade do valor até o trânsito em julgado da sentença.

Assim, não se tratando, no caso, de mesmo fundamento para o pagamento dos lucros cessantes e dos juros compensatórios, entendo ser possível a cumulação. …”

Em relação à cultura agrícola de cana-de-açúcar, em decorrência de seus ciclos anuais e impedimento de continuidade da atividade, não há dúvidas, portanto, da possibilidade de cumulação.

É chegada a hora da jurisprudência nacional alinhar seu posicionamento quanto a este relevante tema, considerando o flagrante risco de produção de insegurança jurídica aos proprietários rurais, os quais além de perderem a posse direta de suas propriedades, não estão recebendo a devida indenização referente a supressão de sua lavoura, ou seja, estão perdendo todo o investimento agrícola realizado, sem considerar que não mais poderão produzir esse tipo de cultura nas áreas serviendas, o que se mostra devastador para esse setor agrícola que há muito, tem se colocado como a pedra de sustentação da economia nacional.

 


[1] v. https://www.conjur.com.br/2024-jan-28/linhas-de-transmissao-e-seus-efeitos-nefastos-na-alta-mogiana/  e https://www.conjur.com.br/2024-mar-14/linhas-de-transmissao-e-seus-efeitos-nefastos-na-alta-mogiana-parte-2-a-instabilidade-das-decisoes-interlocutorias/ . Acesso em 30/10/2024.

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