Apesar de sofrer resistências, PEC da Segurança Pública pode ser efetiva no combate ao crime
10 de novembro de 2024, 8h32
O primeiro escalão do governo federal entrou em campo no último dia 31 de outubro para defender a proposta de emenda à Constituição de autoria do ministro da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski.
Apelidada de PEC da Segurança Pública, a iniciativa é a grande aposta do governo para diminuir os altos índices de criminalidade no país. A proposição foi apresentada em reunião com governadores que contou com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, além, é claro, do ministro da Justiça.
A mobilização é explicada pelo impacto da atuação de criminosos no cotidiano do brasileiro. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024 levantou a informação de que ocorreram nada menos que 46 mil mortes violentas em 2023, o número engloba homicídios, latrocínios e mortes decorrentes de ação policial.
O país atualmente possui uma taxa de 22 mortes a cada 100 mil habitantes, um número muito maior do que o indicado pela Organização das Nações Unidas, que é o de uma taxa abaixo de 5,8 mortes a cada 100 mil habitantes.
Os números da criminalidade no Brasil também impressionam no mundo digital. De 2018 até 2023 houve aumento de 360% do número de estelionatos. Só em 2023 foram registrados 1,9 milhão de queixas de estelionatos, o que representa um golpe a cada 16 segundos no país.
Segundo Lewandowski, é preciso alterar a redação dos artigos 21, 22, 23 e 24 da Constituição — que tratam das competências da União, privativas ou em comum com estados, municípios e Distrito Federal, além do artigo 144 que detalha quais são os órgãos que compõem o sistema de segurança pública do país.
“A motivação para apresentar essa proposta é a constatação de que, 36 anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a criminalidade mudou profundamente, superando a abordagem vigente e transformando-se de um problema local para uma ameaça transnacional”, afirmou o ministro na ocasião.
Fato é que mesmo antes de ser colocada em votação, a PEC da Segurança Pública tem dividido opiniões. A maioria dos advogados criminalistas e constitucionalistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico enxergam pontos positivos na proposta. Entidades que representam policiais, por outro lado, divulgaram uma carta aberta contra a proposta e prometeram judicializar a questão.
O que muda?
Caso seja aprovada pelo Congresso, a PEC da Segurança Pública irá permitir que o governo federal atue em conjunto com estados e municípios. Também irá criar um Conselho Nacional formado pelos três entes federativos que será encarregado de estabelecer normas gerais para as forças de segurança.
A proposição também busca incorporar ao texto constitucional o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), instituído pela Lei 13.675, de 11 de junho de 2018.
O texto que está em análise no Congresso também atualiza as competências da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal. A PF, segundo o governo, sofre de uma série de limitações ao enfrentamento do crime organizado, que tem ficado sob responsabilidade dos órgãos de segurança estaduais.
As novas atribuições da PF permitiriam que ela atuasse tanto na investigação como na repressão dos crimes cometidos por esses grupos que tivessem repercussão interestadual ou internacional. Ela também passaria a ter competência para atuar no combate a crimes que afetem bens da União ou que sejam de seu interesse como matas, florestas e áreas de preservação.
A PFR, por sua vez, também teria seu escopo de atuação ampliado e passaria a realizar policiamento ostensivo sob a batuta do Poder Executivo Federal. Para justificar a mudança, o governo alega que a corporação já tem sido cada vez mais requisitada para prestar auxílio emergencial às demais forças federais e estaduais, além de ter participado recentemente de operações de caráter ostensivo que extrapolam suas atribuições constitucionais atuais.
A PEC da Segurança Pública também prevê a criação de um Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária cujos recursos serão destinados a projetos, atividades e ações previstas nos planos pertinentes à área.
Tensão federativa
O jurista Lenio Streck reconhece a necessidade da proposta, mas é reticente sobre alguns aspectos. “Bom, algo tem de ser feito. Risco: empoderar as polícias federais, a União e enfraquecer o pouco que resta da federação. Dependeremos do governo federal como se fossemos um estado unitário. Penso que a questão da segurança necessita ser atacada por outros meios. Talvez esses ‘outros meios’ venham na sequência. Além de empoderar a União, qual será o outro ganho?”, questionou.
A advogada constitucionalista Vera Chemin, por sua vez, é mais otimista. Ela explica que a ideia de criar um elo entre a União, Distrito Federal e os estados para colocar em prática uma política de segurança pública tem o mérito de remeter ao verdadeiro federalismo que ainda não foi concretizado no Estado brasileiro, onde sempre prevaleceu e continua a prevalecer o que chamamos de federalismo unitário, ou na melhor das hipóteses, um federalismo dual, cuja característica é uma rígida separação de competências entre a União e os demais entes federados.
“Não é uma tarefa fácil, mas é viável, se houver a união e colaboração de todos os Entes Federados, onde cada um passará a exercer as suas respectivas competências, sem interferir na seara do outro. Conforme se pode depreender, somente o tempo dirá se a PEC da Segurança Pública alcançará a sua finalidade de forma racional e econômica entre os entes federados e a União. A ideia é oportuna para se iniciar um federalismo de verdade. Um dos pontos negativos é a continuidade da dependência da União para os Estados realizarem o que precisa ser ainda criado e aperfeiçoado no âmbito de sua estrutura física e financeira”, opina.
O delegado André Santos Pereira, que preside a Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, acredita que a PEC pode agravar conflitos de competências entre os órgãos de segurança pública. “Isso ocorre porque o que está contido no anteprojeto pode agravar esse conflito, criando uma espécie de ‘reserva de mercado’ para a União legislar e determinar políticas obrigatórias relacionadas à segurança pública, que deverão ser cumpridas pelos entes da federação, além de permitir à Polícia Federal executar prioritariamente investigações envolvendo organizações criminosas, milícias privadas e crimes ambientais”
Fluxo de informações organizado
Ao contrário da máquina pública, o crime organizado não precisa se preocupar com conflitos de competência. O estudo “Segurança Pública e Crime Organizado no Brasil” elaborado pela think tank Esfera Brasil e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que que o crime organizado impacta profundamente a sociedade e a economia brasileiras.
Conforme o estudo, os dois principais grupos criminosos são o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho. Elas atuam no tráfico de drogas e armas, no garimpo de ouro, extração ilegal de madeira, contrabando de cigarro e outras atividades. Além disso, lavam dinheiro por meio de postos de combustíveis, criptoativos e outros empreendimentos.
Tanto o estudo como os criminalistas consultados pela ConJur são uníssonos quanto à necessidade de centralizar informações para combater efetivamente as organizações criminosas.
“A unificação e a atualização dos sistemas de informação e inteligência, é um passo fundamental para o enfrentamento da criminalidade. A criminalidade está em constante evolução, e o modelo de enfrentamento precisa acompanhar essa evolução”, defende Rodrigo Faucz.
O criminalista José Augusto Marcondes de Moura Júnior exalta a possibilidade de uniformização que a PEC pode implementar nas forças de segurança pública. “É imprescindível que haja uma padronização das diferentes espécies de certidões criminais, boletins de ocorrência e mandados de prisão para conferir segurança jurídica ao cidadão. A proposta também é cuidadosa no sentido de não retirar a autonomia dos estados com relação às polícias civis e militares, tampouco alteram o poder das prefeituras sobre as guardas municipais”.
O advogado Eugênio Malavasi acredita que a proposta é necessária para que o Estado consiga acompanhar a evolução da metodologia das organizações criminosas e milícias privadas. “Além disso, a PEC cria um novo policiamento ostensivo, permitindo que a PRF passe a atuar também em ferrovias e hidrovias federais. Paradoxalmente, surge uma reflexão sobre a centralização da competência à União, o que pode fragilizar as políticas de segurança adotadas pelos Estados. Eis o ponto a ser refletido”, reflete.
Já Victor Lion Brown, sócio na Lion Mauro Advogados, destaca a constitucionalização do Susp e do Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária. Segundo ele, a iniciativa pode garantir maior estabilidade e previsibilidade orçamentária para as políticas de segurança, desde que acompanhada de uma gestão eficiente e transparente dos recursos.
“Os próximos passos envolvem a tramitação da PEC no Congresso, em que será submetida a debates e possíveis emendas. É fundamental que esse processo seja conduzido com ampla participação dos diversos atores envolvidos na segurança pública, incluindo governadores, secretários de segurança, representantes das forças policiais e da sociedade civil. O diálogo entre os entes federativos é essencial para equilibrar a necessidade de uma coordenação nacional com o respeito às especificidades regionais e à autonomia dos estados”, opina.
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