Fundamentos e limites das investigações internas em compliance
9 de novembro de 2024, 7h05
Um tema que adquiriu extrema relevância nos últimos anos no meio corporativo foi a questão das investigações internas próprias dos programas de integridade. Não que seja algo totalmente novo no campo privado, mas passa a ter grande relevância com a consolidação do compliance e sua positivação ocorrida inicialmente com a Lei nº 9.613/98, a chamada Lei de Lavagem de Dinheiro, que inaugura na seara legislativa o compliance e criminal compliance no campo financeiro alcançando determinadas atividades, seguida da disciplina mais abrangente introduzida pela Lei nº 12.846/13, denominada Lei Anticorrupção, dentre outros normativos.
Esse quadro normativo e a subsequente evolução do compliance e seu alcance no meio empresarial, no qual atualmente nas grandes e médias corporações os programas de integridade são não apenas uma realidade, mas verdadeira necessidade e imposição do próprio mercado, geram inúmeras questões com grande repercussão e polêmicas no campo jurídico, sendo um desses temas as investigações internas.
Num primeiro momento houve críticas ancoradas no argumento de que o Estado estava transferindo o seu poder/dever de investigar, reconhecendo sua total inépcia para cumprir tal dever e onerando as empresas, sendo questionada tal possibilidade, tida como verdadeira “privatização” da função de investigar, em razão do monopólio do Estado de investigar, julgar e punir, decorrente do monopólio do uso legítimo da força.
Nos dizeres de Sergio Adorno, estudando a temática da legitimidade uso da força pelo Estado, citando Max Weber (Weber, 1970), “(…) o Estado de Direito vem cumprindo papel decisivo na pacificação da sociedade. O Estado moderno constituiu-se como centro que detém o monopólio quer da soberania jurídico-política quer da violência física legítima. (Weber, 1970)”, sendo este o entendimento clássico vigente de uma forma geral, de que caberia somente ao Estado a função de investigar para prevenir e remediar escândalos. Essa lógica vem sendo alterada, porém.
Compliance não significa substituição do Estado
Fato é que hoje as investigações internas são uma realidade, sendo superadas todas as críticas iniciais sobre o tema, surgindo novas questões que merecem análise mais detida dentro desse processo evolutivo do compliance no Brasil. Neste sentido, em recente artigo publicado no Estadão, o advogado Filipe Magliarelli afirma que as investigações públicas são efetivadas dentro de regras pré-estabelecidas, com garantias do exercício dos direitos fundamentais, e em havendo o descumprimento dessas regras pode haver a invalidação da investigação.
Ele complementa questionando acerca da observância desses mesmos direitos fundamentais em sede de investigações internas, considerando serem unilaterais, dentro de uma relação trabalhista, sem fé pública e sem qualquer tipo de regulamentação [1]. Resta o questionamento acerca da validade do quanto colhido nessas investigações caso sejam discutidas em juízo.

É necessário compreender que as investigações internas são uma consequência natural de novos paradigmas na relação do próprio Estado com a sociedade e as corporações privadas. Em sua obra O Futuro da Democracia, Norberto Bobbio (Bobbio, 2006) aponta alguns obstáculos à concretização do projeto democrático, dentre eles a tecnocracia, entendida como a necessidade de competências técnicas para problemas políticos, a burocracia, obstaculizando decisões políticas, e a ingovernabilidade ante a baixa produção governamental e o aumento do número de demandas. Em outras palavras, há a democracia ideal e aquela real, possível, que exige um desenho de ampla participação da sociedade e meio privado em questões que eram reservadas até então somente para o Estado.
Neste sentido a gestão do risco econômico e a autorregulação regulada apontam para uma maior participação e responsabilidade da gestão privada na prevenção, detecção e apuração de casos de corrupção corporativa. Isso não significa substituir o Estado no seu papel fundamental regulatório e fiscalizatório, mas sim uma nova forma de se gerir a regulação e fiscalização e controle na qual o papel das corporações privadas toma outro contorno.
Riscos e consequências transcendem fronteiras
A gestão do risco econômico e de suas consequências encontra em Ulrich Beck, e na sua teoria da sociedade do risco, o seu fundamento, no qual os riscos econômicos estão inseridos, dentro da ideia de que na sociedade pós-revolução industrial — e posteriormente tecnológica — a distribuição de riscos não corresponde às diferenças sociais, econômicas e geográficas da primeira modernidade (Beck, 1999).
O risco de uma atividade não mais se restringe àquele ou àqueles poucos que a executavam. Vale dizer, os riscos de uma atividade econômica no mundo globalizado podem gerar riscos em escala global, assim como um escândalo de corrupção de uma corporação multinacional pode afetar vários países e milhares de pessoas.
Exemplos da concretização desse risco foram a crise dos subprimes [2] nos Estados Unidos da América e o chamado caso Parmalat [3], cujas consequências transcenderam fronteiras e atingiram milhares de pessoas. Deve se contrapor ao risco inerentes a essas atividades, altamente lucrativas, a responsabilidade das corporações privadas em mitigá-lo e evitar a materialização de seus efeitos nefastos através de escândalos corporativos.
Já na autorregulação regulada, os entes privados passam a poder editar regras próprias de seu negócio, dentro da baliza da legislação pertinente, visando suprir lacunas de regramento estatal nos aspectos mais específicos referentes a determinada atividade, considerando-se impossível que o Estado possa regular, em pormenores, todas as áreas de atuação privada, havendo uma complementariedade da atuação pública e privada, mantidos a supervisão e o controle do Estado (Becker, 2018). Decorrem dessa autorregulação regulada os códigos de ética e de conduta, base dos programas de integridade.
Regras básicas das investigações internas
Além desses fundamentos teóricos, a legislação pertinente ao compliance abre a possibilidade de que as empresas realizem as investigações internas. Importante aqui ressaltar que isso não é uma inovação jurídica trazida pelo compliance, mas decorrente da própria noção de que segurança pública, entendida como manutenção da ordem pública e prevenção e repressão de crimes – aqui incluída a investigação — é um dever do Estado, mas responsabilidade de todos, nos termos do artigo 144 da Carta Magna.
Como diz o professor Guilherme Nucci (Nucci, 2022), “a segurança pública conta, não somente com agentes públicos, mas com todos os cidadãos para que se concretize satisfatoriamente”. Existem outros exemplos de mitigação do monopólio do Estado em investigar, dentre eles a Lei n.º 13.342/17, que regulamenta a profissão de detetive particular, permitindo colaboração com investigação criminal em curso e o Provimento n.º 188/18 do Conselho Federal da OAB, que regulamentou a investigação defensiva promovida pelo advogado, inclusive com auxílio de detetives particulares.

No tema específico do compliance, o artigo 7º, incisos VII e VIII da Lei nº 12.846/13 determina ser levado em consideração na aplicação das sanções a cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações e a existência de mecanismos internos que levem à aplicação efetiva dos códigos de ética e de conduta. No mesmo sentido, o artigo 56, inciso I do Decreto nº 11.129/22 — regulamento da Lei Anticorrupção —, que fala em prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e ilícitos praticados contra a administração pública nacional ou estrangeira.
A ausência de programas de integridade ou a existência meramente formal, sem que haja investigação interna que leve a uma efetiva prevenção, detecção, e aplicação de medidas efetivas uma vez detectado o caso de desvio de conduta, trará consequências graves à empresa, de ordem econômica, reputacional e no campo legal a aplicação de sanções severas. Ou seja, se trata de muito mais que um mero permissivo, mas as investigações internas se tornam algo imperativo no campo empresarial.
Havendo fundamentação teórica e previsão legal da existência de investigações internas, é importante estabelecer suas balizas mínimas e seus limites, pois a falta de uma legislação que regule essa atividade não autoriza que seu efetivo exercício permita a prática de todo e qualquer ato próprio de uma investigação levada a cabo por agência do Estado. Assim sendo, devem ser observadas algumas regras básicas nas investigações internas:
A primeira regra essencial a ser observada é que a investigação privada não substitui ou se sobrepõe a investigação formal de natureza criminal ou administrativa de atribuição de agência do Estado. E aqui decorre naturalmente a impossibilidade de haver atos em investigação privada que dependam de reserva de jurisdição, como monitoramento telefônico ou telemático e outras medidas que demandem o afastamento judicial de direitos e garantias fundamentais;
Em segundo lugar, deve haver estrita observância aos direitos e garantias fundamentais, adotando-se a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, pela qual os direitos fundamentais se aplicam nas relações privadas, sendo assegurada sempre a dignidade da pessoa humana [4]. Independentemente de se adotar a concepção da adoção direta e imediata dos direitos fundamentais a relações privadas, ou a concepção de que essa adoção é mediata ou indireta, com aplicação, interpretação e integração de norma privada a luz da Constituição (Sarlet, 2010), há de forma pragmática de se considerar que eventuais provas colhidas e conclusões advindas de uma investigação interna serão submetidas a o crivo do Poder Judiciário, e inevitavelmente a um exame se houve o respeito e observância dos direitos e garantias individuais, como ampla defesa e contraditório, devido processo legal, direito a não produzir prova contra si mesmos, e assim por diante;
Como não existe a previsão de um procedimento específico para a investigação interna, o que é apontado por Barrilari e D’ângelo como o maior problema afeto a este tema (Barrilari e D’ângelo, 2023), é de fundamental importância que haja a previsão de um procedimento interno na empresa, no qual conste de forma clara um rito procedimental para os casos em que será necessário realizar uma investigação interna. De bom alvitre que haja uma análise prévia de admissibilidade da denúncia ou situação comunicada ou que o a área de compliance teve conhecimento, sendo previsto o procedimento dentro de parâmetros dos procedimentos administrativos existentes, com instância apuratória e instância decisória independentes entre si;
Previsão de medidas que garantam a cadeia de custódia de provas colhidas, sejam testemunhais, documentais, digitais ou periciais, preservando-se a validade da prova e legalidade da forma como foi colhida, tratada e armazenada;
Existência de setores e/ou pessoal especializado para realizar tal procedimento, sem o que corre-se o risco de serem praticadas ilegalidades que gerem a invalidação judicial das medidas tomadas e provas colhidas, gerando um problema ainda maior para a empresa;
Observância estrita do escopo do compliance, não sendo admissível um procedimento que não esteja em sintonia com a preservação e fomento da cultura de integridade da empresa e que não seja investigado fato que atente contra o código de ética ou de conduta, além da observância da legislação trabalhista.
As investigações internas no âmbito dos programas de integridade são uma necessidade premente diante do arcabouço legislativo e consequências práticas de ocorrência de um caso de corrupção. Porém, sua execução tem de ser feita dentro de parâmetros de legalidade e numa visão sistêmica de observância dos direitos e garantias fundamentais, pena de se somarem as consequências negativas do descumprimento e violação dos programas de integridade.
Bibliografia
Adorno, S., 2002. O monopólio estatal da violência na sociedade brasileira contemporânea, In: O que ler na ciência social brasileira 1970-2002. Volume IV. Organizado por Sérgio Miceli. São Paulo: NEV/USP, 2002.
Barrilari, Cláudia C.; e D´ângelo, Andréa C., 2023. As Investigações Internas no Âmbito Empresarial e os Programas de Compliance: Alguns Desafios Processuais. São Paulo: Boletim IBCCRIM – ano 31 – N.º 369, agosto de 2023.
Beck, U. 1992. Risk society. Towards a new modernity. Londres: Sage Publications, 1992.
Becker, Camila M., 2018. Compliance, Autorregulação Regulada e o Sistema de Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica no Direito Brasileiro. PUCRS – disponível em https://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/12336/1/000489466-Texto%2bCompleto-0.pdf
Bobbio, N., 2006. O Futuro da Democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2006.
Nucci, G., 2022. Segurança Pública: um dever de todos. Disponível em: https://guilhermenucci.com.br/seguranca-publica-um-dever-de-todos/ , consultado em 15 de outubro de 2024.
SARLET, Ingo W., 2010. A Eficácia dos Direitos Fundamentais – Uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10º ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado , 2010.
[1] https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/questoes-controversas-em-investigacoes-corporativas/?srsltid=AfmBOoqWfQHrxXT-20I77YAmPTRHafWu7mXvd6IAID6q6Ic496VyDO0E
[2] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2024/07/04/o-ano-em-que-o-mundo-quebrou-entenda-a-crise-financeira-de-2008.htm
[3] https://diplomatique.org.br/o-escandalo-da-parmalat/
[4] Vide sobre o tema o Recurso Extraordinário 201819-8/RJ, no qual o STF reconheceu a aplicação desta teoria em relação a exclusão de um músico da Ordem dos Músicos do Brasil sem que lhe fosse permitido devido processo legal. Ficou estabelecido que é necessária a observância dos direitos fundamentais nas relações privadas.
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