As decisões do STF e a prática no Tribunal do Júri (parte 2)
9 de novembro de 2024, 8h00
Na semana passada discutimos sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal no Tema 1.068, que fixou a tese permitindo a execução provisória das penas mesmo para as estabelecidas abaixo dos 15 anos. Em continuidade, analisaremos a decisão no Tema 1.087, que constituiu em grave incoerência com o que foi decidido no Tema 1.068, pois, se neste último a soberania dos vereditos foi interpretada com tamanho vigor que permitia até mesmo que o acusado condenado tivesse que cumprir a pena antes de qualquer recurso, no Tema 1.087 o STF flexibilizou a força do princípio da soberania dos vereditos, permitindo que o Ministério Público recorra de decisões absolutórias dos jurados, mesmo quando a absolvição ocorra no quesito absolutório genérico.
Configura-se um exemplo clássico de interpretação à la carte, em que a atuação contramajoritária dos direitos constitucionais é afastada para se aproximar a um modelo punitivista próprio dos nossos tempos. Como disse na semana passada, as duas decisões são criticáveis e evidenciaram uma dissociação entre a prática no Tribunal do Júri e as opiniões explicitadas no decorrer do julgamento.
As teses fixadas no Tema 1.087
A redação publicada pelo STF apresentou dois parágrafos:
(1) “É cabível recurso de apelação, com base no art. 593, III, d, do Código de Processo Penal, nas hipóteses em que a decisão do Tribunal do Júri, amparada em quesito genérico, for considerada pela acusação como manifestamente contrária à prova dos autos.”
(2) “O Tribunal de Apelação não determinará novo júri quando tiver ocorrido apresentação constante em ata de tese conducente à clemência ao acusado, e esta for acolhida pelos jurados, desde que seja compatível com a Constituição, com os precedentes vinculantes do Supremo Tribunal Federal e com as circunstâncias fáticas apresentadas nos autos”.
‘Primeira’ tese fixada
A possibilidade de a acusação recorrer de absolvições em processos do júri, especialmente quando ocorridas no quesito absolutório genérico (artigo 483, § 2º do CPP), é objeto de discussões há algum tempo, apesar que bastasse utilizar a lógica para sua solução: se os jurados possuem a permissão legal de absolver por qualquer motivo que entendam cabível (inclusive acolhendo teses metajurídicas), não se pode, em sede recursal, entender pela ilegitimidade da absolvição [1]!

Aliás, a possibilidade de os jurados decidirem pela absolvição apesar das provas apresentadas pela acusação é amplamente aceita em países com larga tradição no júri. O jury nullification dos EUA, que já discorremos em alguns artigos (leia parte 1, parte 2 e parte 3), permite que o Tribunal do Júri decida, inclusive, contrariamente à própria lei. Ademais, o princípio da proibição do bis in idem, ou no sistema da common law do double jeopardy, veda qualquer tentativa do Estado em buscar novamente a condenação após um veredicto absolutório.
O Estado, “representado” pelo Ministério Público, possui uma estrutura enorme, com profissionais altamente qualificados e a possibilidade de fazer qualquer acusação com seriedade. Acusar – ou oferecer a denúncia – exige responsabilidade. Assim, se a acusação, após a respectiva instrução, não conseguir comprovar além da dúvida razoável a responsabilidade do acusado, o caminho natural é a absolvição. Tal decisão, em qualquer Estado democrático de Direito deve ser imutável. O processo por si só é uma pena e a acusação só pode colocar a liberdade do acusado em risco uma única vez.
De qualquer maneira, na contramão da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (eis que o artigo 8º, h, do pacto de San José da Costa Rica prevê exclusivamente ao acusado o direito de recorrer da sentença, não à acusação) [2] e do entendimento consolidado na doutrina mundial, o STF entendeu que o Ministério Público possui uma dupla chance. Apesar de não conseguir comprovar – na visão dos julgadores do fato – a culpabilidade do acusado, ainda assim poderá, mais uma vez, tentar. Ou, ainda, apesar de a comunidade concluir que o acusado deve ser absolvido, essa decisão poderá ser anulada.
Restou fixado, portanto, que a acusação poderá recorrer pelo fundamento de decisão manifestamente contrária à prova dos autos, mesmo de decisões advindas do quesito absolutório genérico.
‘Segunda’ tese fixada
Sobre a clemência, o STF assentou sua admissibilidade como alegação defensiva e, portanto, não poderá ser objeto de recurso se “compatível com a Constituição, com os precedentes vinculantes do Supremo Tribunal Federal e com as circunstâncias fáticas apresentadas nos autos”.
Assim, se a clemência estiver, de qualquer maneira, amparada em algum documento, depoimento ou mesmo no interrogatório, o tribunal não poderá anular a decisão absolutória. Perceba-se que não se exige a comprovação, mas sim meramente que a tese seja minimamente plausível.
Por outro lado, a estipulação de que a clemência não poderá ser incompatível com os “precedentes vinculantes” do STF, refere-se à preocupação da sua utilização para embasar a tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio, constituindo uma causa de restrição de seu uso.
Se a defesa sustentar, além da clemência, outra tese absolutória, como alguma excludente de ilicitude ou de culpabilidade, a eventual anulação por “decisão contrária à prova dos autos” é problemática. Isso porque o sistema de votação aglutina as teses defensivas, inviabilizando saber qual foi a acatada. Na verdade, o modelo adotado permite, por exemplo, que dois jurados acatem uma tese absolutória e dois jurados aceitem outra tese, o que também gerará o resultado de absolvição. Ao não distinguir qual foi a tese acolhida, via de regra, não é possível a anulação do júri pelo fundamento do artigo 593, III, “d”, do CPP.
A esquizofrenia constitucional continua. Os ataques ao júri também
Na semana passada chamei de esquizofrenia constitucional a utilização da garantia da soberania dos vereditos contra o cidadão, com uma força tal de suplantar até mesmo a presunção de inocência e executar imediatamente a pena do acusado. Agora o princípio da soberania dos vereditos se adapta para não se manter uma absolvição, in casu, por clemência. A esquizofrenia constitucional atinge outro prisma: a coerência existe apenas quando contrária ao acusado (também como as ponderações apontadas por Lenio Streck aqui na ConJur).
Evidentemente que ambas as decisões do STF foram equivocadas. O Tribunal do Júri é uma garantia constitucional expressa no artigo 5º e, portanto, deve ser interpretado e aplicado como um direito individual do cidadão, até mesmo para alicerçar julgamentos justos e legítimos. Os valores constitucionais não podem servir somente como mero instrumento de retórica, afastando o procedimento penal (e o júri) de sua relação com a democracia e o sistema acusatório.
Como operadores de Direito, temos que continuar lutando, otimistas de que, um dia, ainda veremos os direitos e garantias serem respeitados na integralidade. Como disse o professor Geraldo Prado, “O direito já saiu de férias em outras ocasiões e voltou. Ele haverá de retornar mais uma vez”.
[1] A decisão do min. Celso de Mello no HC 117.076 de 1/8/2019 é paradigmática: “A previsão normativa do quesito genérico de absolvição no procedimento penal do júri (CPP, art. 483, III, e respectivo § 2º.), formulada com o objetivo de conferir preeminência à plenitude de defesa, à soberania do pronunciamento do Conselho de Sentença e ao postulado da liberdade de íntima convicção dos jurados, legitima a possibilidade de os jurados – que não estão vinculados a critérios de legalidade estrita – absolverem o réu segundo razões de índole eminentemente subjetiva ou de natureza destacadamente metajurídica, como, p. ex., o juízo de clemência, ou de equidade, ou de caráter humanitário, eis que o sistema de íntima convicção dos jurados não os submete ao acervo probatório produzido ao longo do processo penal de conhecimento, inclusive à prova testemunhal realizada perante o próprio plenário do júri. Doutrina e jurisprudência. – Isso significa, portanto, que a apelação do Ministério Público, fundada em alegado conflito da deliberação absolutória com a prova dos autos (CPP, art. 593, III, “d”), caso admitida fosse, implicaria frontal transgressão aos princípios constitucionais da soberania dos veredictos do Conselho de Sentença, da plenitude de defesa do acusado e do modelo de íntima convicção dos jurados, que não estão obrigados – ao contrário do que se impõe aos magistrados togados (CF, art. 93, IX) – a decidir de forma necessariamente motivada, mesmo porque lhes é assegurado, como expressiva garantia de ordem constitucional, ‘o sigilo das votações’ (CF, art. 5º., XXXVIII, “b”), daí resultando a incognoscibilidade da apelação interposta pelo ‘Parquet’. Magistério doutrinário e jurisprudencial.”
[2] Sobre este ponto e sobre os recursos defensivos contra a decisão condenatória pelo tribunal do júri (que não são objeto deste artigo), sugiro a leitura dos Capítulos “4.1.3. Soberania dos veredictos” e “13.5.4. Decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos”, da obra “Manual do Tribunal do Júri”, publicada pela Revista dos Tribunais – Thomson Reuters Brasil, de Rodrigo Faucz e Daniel Avelar.
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