Infra e Controle

Os contratos públicos com startups postos à prova

Autores

  • é doutorando e mestre em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo) advogado e sócio do Giamundo Neto Advogados professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa) em Brasília e secretário-adjunto da Comissão Nacional de Direito da Infraestrutura da OAB.

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  • é doutoranda e mestre em Políticas Públicas pela UFABC (Universidade Federal do ABC) especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Magistratura bacharel em Direito pela PUC-SP e advogada do Giamundo Neto Advogados.

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6 de novembro de 2024, 8h00

Recentemente, o Tribunal de Contas da União divulgou a realização de sua primeira licitação a partir da modalidade prevista na Lei Complementar nº 182/2021, que criou o Marco Legal das Startups, e a figura do Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI). De acordo com a notícia veiculada no sítio eletrônico da Corte de Contas, o procedimento resultou em três contratos, numa seleção que envolveu a participação de 22 empresas, e oportunizará a criação de soluções de tecnologia especificamente voltadas à fiscalização de obras de pavimentação [1].

O CPSI foi criado com a finalidade de flexibilizar as contratações públicas, eliminando barreiras à entrada de pequenas empresas no setor público, a partir da seleção de pessoas jurídicas que atuem no setor tecnológico ou que possuam a inovação como ramo de atividade [2]. A ideia é tanto se estabelecer um ambiente de experimentação na esfera pública, trazendo a inovação para esse setor, como fomentar esse mercado ainda em expansão, a partir do uso das licitações como um mecanismo de indução ou regulação [3].

Portanto, além do tratamento do CPSI como um modelo específico de instrumento contratual, o Marco Legal das Startups também estabelece uma modalidade de licitação diversa daquelas previstas na legislação geral, tendo a simplificação do procedimento como uma característica importante, mas sem deixar de assegurar a observância de princípios norteadores das contratações públicas, notadamente aqueles que preservam a isonomia e ampliação da competitividade.

Nesse sentido, o artigo 13, §1º da norma [4], estabelece que a licitação pode ser realizada a partir da simples delimitação do escopo da contratação, com a indicação do problema a ser resolvido e dos resultados esperados pela administração pública, incluídos os desafios tecnológicos a serem superados. Há, em muitos termos, similaridade com o procedimento do diálogo competitivo, que também possui a inovação como uma das suas principais características, como se extrai, sobretudo, das disposições do artigo 32, da Nova Lei de Licitações [5].

O edital da licitação, que deve ser publicado em portais e diário oficial do ente licitante, fica responsável por estabelecer as regras específicas do procedimento, de modo que a norma apenas delineia as diretrizes gerais sobre a formação da comissão de avaliação, os critérios de avaliação das propostas, a inversão das fases de análise de proposta e habilitação e o funcionamento da fase de negociação de preços, deixando, assim, muitos temas submetidos à discricionariedade do gestor e conferindo-lhe a liberdade para que possa amoldar o procedimento às propriedades do objeto contratado.

Spacca

Essa simplificação do rito procedimental, além de reduzir custos e prazos, permite experimentações no próprio fluxograma de cada contratação, possibilitando testes e adaptações derivadas do ganho de experiência.

Desafios ao CPSI

Mesmo a regulação do CPSI enquanto instrumento contratual foi bastante pontual, igualmente visando permitir as adaptações necessárias ao aprimoramento da própria modalidade de contratação. De acordo com a norma, além de algumas poucas cláusulas obrigatórias, foram fixados um limite máximo de valor para os contratos e regras atinentes à forma de remuneração do contratado, sem um aprofundamento extensivo sobre a execução, que deve ser pensada para a casuística do próprio objeto licitado [6].

 

Porém, passados alguns anos da edição do marco, e apesar da funcionalidade do modelo e os indícios de sua capacidade de gerar resultados com impactos positivos, principalmente a partir da ideia de que a administração pública passa a ter a chance de testar soluções tecnológicas em caráter experimental e sem a necessidade de um compromisso longínquo ou com procedimentos complexos, ainda são poucas as experiências que possam gerar segurança à própria experimentação.

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De fato, apesar de alguns instrumentos do mesmo Marco Legal já apresentarem um uso mais frequente, como é o caso do sandbox regulatório [7], que contava com algumas experiências passadas, a adesão ao CPSI ainda encontra alguns desafios, especialmente no que se refere ao entendimento e adaptação dos gestores públicos à essa nova modalidade e os empecilhos de lidar não somente com inovação, mas como a própria novidade do instrumento. Não há dúvidas de que a intimidade com procedimentos mais tradicionais de licitações gera alguma resistência à aplicação de um regime mais flexível, que demanda maior autonomia e capacidade de decisão.

Nesse contexto, o fato de o TCU ser um dos primeiros entes a divulgar amplamente o uso desse ferramental é emblemático, mas também bastante sintomático dos fenômenos do Direito Administrativo do Medo e do apagão das canetas, de forma que o próprio órgão se coloca como um indutor da experiência, esclarecendo que a contratação, além dos objetivos inerentes ao seu escopo, visa “ser um modelo para induzir transformações na Administração Pública em geral, dando segurança jurídica para que outros órgãos possam ter iniciativas semelhantes em Compras Públicas de Inovação” [8].

Desse modo, ainda que fora de sua função precípua em termos de controle, a experiência do TCU pode, de fato, balizar outras contratações nessa mesma toada, mitigando os riscos da gestão na inovação e na forma com que a administração pública lida com a tecnologia seja enquanto objeto de suas contratações, seja como uma diretriz. É fundamental, contudo, que ao se realizar o controle dessas contratações também se enxergue tais experiências da forma como o são — experimentos —, sem impor aos gestores ônus diversos dos quais o próprio TCU assumirá ao inovar, tampouco presunções quanto aos erros legítimos que podem advir daquilo que é novo.

 


[1] Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-assina-contrato-com-startups-para-fiscalizacao-em-obras-de-pavimentacao.htm. Acesso em 28/10/2024.

[2] A Lei Complementar nº 182/2021 estabelece os requisitos para que uma empresa possa ser considerada uma startup, os quais se referem a tempo de existência, faturamento, regime de tributação etc.

[3] Conforme as reflexões trazidas por Luciano Ferraz, na Coluna Interesse Público desta plataforma. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-set-21/interesse-publico-procedimento-contratacao-startups-administracao/. Acesso em 28/10/2024.

[4] Cf.: “Art. 13. (…) § 1º A delimitação do escopo da licitação poderá restringir-se à indicação do problema a ser resolvido e dos resultados esperados pela administração pública, incluídos os desafios tecnológicos a serem superados, dispensada a descrição de eventual solução técnica previamente mapeada e suas especificações técnicas, e caberá aos licitantes propor diferentes meios para a resolução do problema”.

[5] Cf.: “Art. 32. A modalidade diálogo competitivo é restrita a contratações em que a Administração: I – vise a contratar objeto que envolva as seguintes condições: a) inovação tecnológica ou técnica; b) impossibilidade de o órgão ou entidade ter sua necessidade satisfeita sem a adaptação de soluções disponíveis no mercado; e c) impossibilidade de as especificações técnicas serem definidas com precisão suficiente pela Administração; II – verifique a necessidade de definir e identificar os meios e as alternativas que possam satisfazer suas necessidades, com destaque para os seguintes aspectos: a) a solução técnica mais adequada; b) os requisitos técnicos aptos a concretizar a solução já definida; c) a estrutura jurídica ou financeira do contrato”.

[6] Vide, sobre o tema, o artigo 14, da Lei Complementar nº 182/2021.

[7] Regido pelo artigo 11 do Marco Legal das Startups.

[8] Conforme notícia acima divulgada.

Autores

  • é doutorando e mestre em Direito do Estado pela USP e sócio do escritório Giamundo Neto Advogados.

  • é doutoranda e mestre em Políticas Públicas pela UFABC (Universidade Federal do ABC), especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Magistratura, bacharel em Direito pela PUC-SP e advogada do Giamundo Neto Advogados.

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