O que é fazer a coisa certa no direito previdenciário?
6 de novembro de 2024, 6h40
O livro que empresta título a este artigo é do professor Lenio Streck, “O que é fazer a coisa certa no direito” (uma adaptação!). Servindo de inspiração para grande parte das reflexões, tentarei responder para onde aponta a coisa certa em matéria previdenciária. Vou dividir o texto em três frentes.
No direito previdenciário, a tradicional fórmula civilista, que tem como orientação os princípios de equidade e justiça comutativa, é por demais simples diante da relevância do bem da vida em questão, o que enseja a necessidade de substituição de tais princípios por outros. Não estão em condições de igualdade segurado, INSS e empresa, sobretudo em matéria de provas — assim como numa relação de consumo e/ou trabalhista.
Aliás, existe um conflito de interesses em jogo, o que faz muitas empresas disponibilizar as melhores informações sobre o ambiente de trabalho (existem razões tributárias e trabalhistas razoáveis para isso), enquanto o INSS busca se beneficiar da própria torpeza, acenando com falhas nos formulários no curso da ação previdenciária. Por outro lado, o trabalhador, muitas vezes, deixa de questionar a empresa com receio de perder o emprego ou de não conseguir nova colocação no mercado de trabalho por estar litigando contra ex-empregador.
Deve ficar muito claro que a responsabilidade pela emissão do formulário PPP, na forma exigida pela legislação previdenciária, é da empresa, conforme artigo 58, 1º, da Lei 8.213/1991. Por outro lado, é função do INSS fiscalizar o preenchimento correto dos documentos entregues ao segurado para fins previdenciários, conforme artigo 125-A da Lei 8.213/91. Tal dispositivo estabelece a competência do INSS para realizar através dos seus agentes, quando assim designados, as medidas necessárias para a “verificação do atendimento das obrigações não tributárias impostas pela legislação previdenciária”.
A Lei nº 8.213/91, a chamada Lei de Benefícios, é o referencial normativo para saber quais são estas obrigações. Enfim, cabe ao INSS exercer seu poder de polícia e fiscalizar os respectivos empregadores, até mesmo como forma de garantir a arrecadação adequada das contribuições e da condição de vulnerabilidade do empregado na relação com o empregador. O sequestro dessa diferença poderá gerar significativo déficit protetivo, sobretudo para o segurado/beneficiário.
Justiça social é equilíbrio de forças
Tal pré-compreensão exige do julgador uma postura diferenciada. A justiça social é, exatamente, o equilíbrio de forças. No processo previdenciário, o juiz deverá restabelecer o equilíbrio das forças, colocando limites à força do INSS e da empresa, que são responsáveis pela produção de um documento que, se bom para o segurado, servirá de prova contra eles. É inútil afirmar que o ônus da prova é do segurado, ignorando as evidências sérias do labor especial, com a recusa aos laudos aplicados por semelhança (às vezes, resultantes de perícias na própria empresa) e o indeferimento da prova pericial.
É inútil concordar que o formulário faz prova da especialidade de determinando período, querendo desacreditar os períodos para os quais o mesmo documento não comprova o labor especial (o que beneficia o segurado numa coisa não exclui outra). É inútil reconhecer a exposição a agentes nocivos, mas afastar o tempo especial a partir da mera indicação de EPI é eficaz no PPP.
E, só para finalizar: É inútil tratar a coisa julgada como uma sanção ao descumprimento do ônus de alegar todos os agentes nocivos na primeira ação, mas não permitir a discussão, com pleno contraditório, sobre os riscos inerentes à função e/ou ao meio ambiente de trabalho (ou seja, não se consegue estabelecer o contraditório sobre as informações estampadas no PPP, que, não raras às vezes, omite determinados agentes nocivos). Tenta-se desacreditar tudo isso em nome do direito.
O segundo aspecto diz respeito ao papel do julgador no interior de um Estado democrático de direito. O julgador não pode impor sua vontade (consciência) aos desafortunados do INSS, vale dizer, a partir de uma linguagem privada. Para ficar só no exemplo: inconformado com o fato de um jovem de 17 não estar trabalhando, o julgador atribuiu a ele (membro da família) o valor ficto de um salário mínimo.
Detalhe: para negar o amparo assistencial com fundamento na renda per capta superior a ¼. Assim, benéficos rurais são negados sob os mais diferentes pretextos, desde a massa corporal (sim, o segurado não pode ser gordo!), passando pela ideia de que ele precisa ser miserável (baixa renda), até o argumento de que a família produziu demais (ninguém sabe a quantidade ideal, como se ela existisse!).
Normalmente, tais absurdos são justificados em nome de regras de experiência ou no princípio da verdade real (álibis retóricos)! Tem também aqueles que apostam na “essência” das coisas e/ou falam em “vontade do legislador” (frase feita para se dizer qualquer coisa como, por exemplo, “vocação rural”). O que as decisões têm em comum? Juízes céticos, que não acreditam no direito. A subjetividade dos julgadores está se sobrepondo àquilo que deveria ser interpretado, com a criação de critérios que não estão na lei (restritivos).
Dúvida é sempre a favor do segurado
Sobre o magistrado que transforma a decisão em mera escolha, Lenio Streck pondera: “Que segurança tem o jurisdicionado quando sabe que a decisão é dada conforme a consciência individual do decisor? Existe linguagem privada que pode se sobrepor à linguagem pública, para lembrar Wittgenstein, em suas Investigações Filosóficas?”[1]
Por fim, e talvez o mais importante, a coisa certa pode estar na dúvida — e esta deve ser computada a favor do segurado. A dúvida deverá ser sempre sopesada em favor do segurado.
Na prática, a dúvida poderá fundamentar a aplicação do princípio in dubio pro misero, com o reconhecimento do tempo de serviço rural remoto. A dúvida, também no sentido da incerteza científica, poderá justificar a aplicação do princípio da prevenção/precaução.
Não sem razão, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema 555, deixou registrado que, em caso de divergência ou dúvida acerca da real eficácia do equipamento de proteção individual, “a premissa a nortear a administração e o Judiciário é pelo reconhecimento do direito ao benefício da aposentadoria especial. Isto porque o uso de EPI, no caso concreto, pode não se afigurar suficiente para descaracterizar completamente a relação nociva a que o empregado se submete”.
A dúvida é capaz de justificar a necessidade-utilidade da prova pericial, quando presente indícios do labor especial. No Tema Repetitivo 1083, o Superior Tribunal de justiça consignou, de maneira expressa, que a prova pericial objetiva a proteção do segurado, “sem imposição de transferência de ônus pela ausência de indicação do nível de exposição ao agente nocivo no formulário PPP ou no laudo técnico de condições ambientais (LTCAT), visto que não impõe a este a obrigatoriedade de providenciar a correção no formulário, mas permite que a atividade especial seja demonstrada nos próprios autos da ação previdenciária” (EDcl no REsp n. 1.886.795/RS, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, julgado em 27/4/2022, DJe de 18/5/2022).
No reconhecimento do tempo de serviço especial, portanto, fazer a coisa certa não se relaciona bem com prejudicar o segurado, em razão de inconsistências no formulário PPP e/ou com fundamento na ausência de dados que poderiam ser supridos pela prova pericial, por exemplo. Tomar o formulário PPP (produzido fora do processo) como prova absoluta da não exposição a agentes nocivos é escolher no que acreditar, e não buscar/verificar a real situação do labor. É impossível, ao mesmo tempo, contentar-se com o PPP, como único caminho para se atestar o labor especial e pretender trabalhar com o caso concreto. Trata-se de caminhos que não se dão por acaso, pois, no caso concreto, pode ser absolutamente falsa a presunção de que o formulário reproduz com exatidão a realidade labor vivenciada pelo trabalhador.
_______________
Referências
Bah1: STRECK, Lenio Luiz. O que é fazer a coisa certa. São Paulo: Editora Dialética, 2023. p. 158.
Diego Henrique Schuster é advogado, professor, doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!